APL 1954 [Cantar com o Diabo]

Nas Cabanas, era pastor e ele agarrou, à noite, que era quando costumava encerrar o gado e ia para a Foz do Sabor, para a taberna beber uns copos. Ali tinha taberna, nas Cabanas, nas de Baixo e nas de Cima. Ele era natural das Cabanas de Cima.
E passava das Cabanas de Cima, pelas de Baixo e ia para a Foz, porque antes a Vilariça era um lugar de muita gente e depois havia muito movimento e havia lá uma taberna, era uma que se chamava "Tia Balbina", e ele ia para lá. Tinha lá violas, tinha lá guitarras, ia para lá muita gente de um lado e de outro, e começavam a cantar o fado. O tal Dionísio cantava muito bem, bebia os seus copinhos; o homem já era alegre e começava a cantar o fado. Diziam os outros:
- Ó Sr. Dionísio, você é terrível.
- Pois sou.
- Para cantar o fado não há como você, não há quem o bata. Até hoje não houve quem o batesse, pelo menos por aqui. Pode haver muitos cantadores mas como ele, por aqui, ainda não houve nenhum que o fizesse calar. Então cante lá mais uma.
- Ele canta com todos. Aquele que quiser saltar...Vamos um fado.
Começa o homem a cantar, chega outro que diz:
- Aquele Dionísio é danado para cantar.
- Ó rapaz, eu até sou capaz de cantar com o diabo à meia-noite.
E diz ele:
- Era capaz de cantar com o diabo à meia-noite, isso é um modo de falar.
O homem chegou as onze horas, fechou a taberna. Ele agarra, fica um bocadinho a conversar com os amigos e lá se mete das Cabanas de Baixo, e das de Baixo para as de Cima. Mas, antes de chegar às Cabanas de Cima, há ali uma quinta que lhe chamam a "Quinta da Vila Maior" e há lá um ribeiro escuro, tem muitos arbustos, muitos salgueiros... e ele ao passar do ribeiro aparece-lhe ali um homem, uma figura e diz-lhe assim:
- Então, ó patrão, traz lume?
- Por acaso trago.
- Então dê-me lá lume, que eu quero acender o cigarro.
Acendeu o cigarro, olhou-lhe para as patas e viu-lhe as patas de cabra. Era o diabo. O homem cheio de medo já é repeso daquela palavra da Foz: que era capaz de cantar à meia-noite.
Devia de ser mais ou menos meia-noite, ficou um bocado atrapalhado. Mas, ele como era artista do fado, cantava bem, lembrou-se de uma cantiga e começou a cantar.
- Então canta lá tu uma cantiga – o diabo para ele.
- Não, não, canta lá tu primeiro.
- Não, não, hás-de cantar tu primeiro – o tal Dionísio.
O Dionísio lembrou-se então de cantar uma cantiga:
"E Jesus, valha-me Deus
Não sei que palavra eu dei
Que fiz tremer o infemo
Quando de Jesus Cristo falei."
Aquilo desapareceu e o homem continuou a andar para a terra, para as Cabanas de Cima.
Chegou a casa, meteu-se na cama, esteve lá três dias sem comer quase nada, não saía dali cheio de medo. Mas, nunca mais cantou cantigas dessas, nunca mais deu-lhe para essas coisas.

Source
AA. VV., - Arquivo do CEAO (Recolhas Inéditas) Faro, n/a,
Year
2000
Place of collection
Torre De Moncorvo, TORRE DE MONCORVO, BRAGANÇA
Collector
Vera Fernandes (F)
Informant
António Dias (M), 75 y.o., Torre De Moncorvo (TORRE DE MONCORVO),
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications
Types
ATU [813] Uma palavra descuidada invoca o diabo

Bibliography