APL 693 Lenda do Caramulo
Então, tia Michaela, não nos conta hoje nenhuma historia?
— Vá, tia Michaela, conte, conte.
Era Inverno. O lume ardia na lareira vasta como um salão, conforme costuma ser nas cozinhas trasmontanas. Lá fóra o vento zunia pelas frestas. Um pote de ferro, enorme de bojo, fervia em cachão no meio do brasido. A’ volta da lareira corriam assentos de madeira, ennegrecida pelos fumos de tanto anno: aconchegavam as almas no conforto do lume.
A tia Michaela era um immovel de familia. Pertencia aos bens familiares. Foi ama de não sei quantas gerações naquella casa senhorial de velhas eras. E agora, velhinha, como um veterano gasto em antigas campanhas, vivia de pensão e gratitude na familia a quem não podia ser estranha.
Todas as noites as creanças da casa, os seus nètinhos, — consoante ella dizia na sua convicção innocente de que, mais que uma avó, era duas vezes mãe, por ter servido de ama ao «paezinho»,— obrigavam a tia Michaela a contar historias. Convencionaram chamar-lhe “tia” como ella lhes chamava nétos; era convenção de familia, a sellar o amor de todos em traço de parentesco de corações.
— Conte, conte, — insistiam as creanças aquella noite.
Bateram á porta do quintal. A creada, atarefada com o trabalho culinario da ceia, não se apressou a abrir. Uma voz de homem, voz conhecida, que fez saltar os petizes, cantou de lá com bom humor:
O’ Micas, abre-me a porta,
Que estou com os pés na geada;
Se me não abres a porta,
Não és Micas, nem és nada.
A tia Alberta, a cozinheira, “tia” tambem, se não tinha a edade de respeitavel monumento da tia Michaela, não lhe iria muito longe. Era cozinheira e mulher feita, ainda o pae das creanças não tinha dez annos. Para ajuda, metteram no verão a Micas, cachopa da aldeia, habituada á cozinha dos jornaleiros. Correu a abrir a porta ao hortelão, que entrou a esfregar as mãos e a aquecê-las no seu bafo.
— Boas noites lhes dê Deus!
— Viva, tio Joaquim. Frio, pois está?
— Se está, senhora Micahela! E julguei que me deixavam lá fóra ao relento. Está uma geada. que racha.
E, chegando-se á fogueira, o hortelão estendia as mãos com prazer para o lume.
— Valha-nos Deus, que está muito frio! — dizia elle. — E’ um dianho de um Inverno para herejes. Não me lembra outro assim.
— Mas que lhe havemos de fazer, tio Joaquim? Está ao lume, aqueça-se. O que lá vae, lá vae, nós estamos cá dentro no quente.
— E’ verdade, senhora Michaela, Deus seja louvado e abençoe os nossos patrões, que tanto o merecem.
O velho servidor, que servia a casa amanhando-lhe as hortas, curando-lhe das hortaliças e dos fructos do quintal, afagava as creanças.
— E hoje... muitas historias, já?
— A tia Michaela não quere contar, — respondeu a mais novita.
— Imaginem lá, nem uma só! — accrescentou a mais velha, muito senhora de si e da sua prosápia viçosa.
— Querem vêr como vae ser uma historia linda? Ella não quere contar? Pois conto eu. Valeu?
As creanças bateram as mãos de contentamento e assentaram-se no escanho de pau negro, para ouvirem melhor o conto promettido pelo hortelão.
*
O velho tio Joaquim, beirão de gemma naquelle solar trasmontano, começou a historia. As creanças guardavam silencio. Deante de elles o lume, de labaredas mansas e caladas, parecia escutar também.
“— Ha para a minha terra uma grande montanha escura, que chamamos Caramulo. Lá em cima, as pedras de pé chegam ao céo, que as cobre de neve assim como a toalha sobre um altar, onde o sol se vê desapparecer.
«Nessas serranías ha um monte chamado Monte-Lafão, que lembra um pão de dois bicos, como este que nós comemos... e está alli um, olhem — dizia elle apontando para o pão, do qual a Micas cortava fatias para o fervor do pote ao lume; — é um pão muito grande; cada bico é seu cabeço, arredondado como um camoés.
“Sobre um dos cabeços está a ermida branca da Senhora do Castello. Lembra um nicho de pomba no cimo da penedia. Entre os dois cabeços fica a estrada dos Mouros, por onde elles andavam e passeavam, quando eram ainda os senhores de tudo isto. Dizem que tiveram por alli um castello.
“Até lá se vê um penedo, que é trazido á cabeça por uma rapariga moura, encantada. Traz o penedo á cabeça e vem cantando, fiar na roca. Eu nunca vi semelhante coisa. O penedo, esse vê-se. Mas a moura? isso sim! Qual moura, nem meia moura.
“O certo é o castello dos Mouros, num dos cabeços do tal monte. Ha por lá muitas pedras das muralhas. Ficava no alto do cabeço.”
O velho ia contando, com a melhor attenção da pequenada, a historia dos Mouros do Monte Lafão, no Caramulo. A tia Michaela, que até alli se tinha habituado a contar as suas historias diarias de que possuia grossa abundancia e muitas repetições, deu comsigo a escutar como os netos a narrativa do hortelão. E, o que era mais curioso, gostava. Na quentura do fogo fazia-lhe delicias.
II
Os cabeços da historia do velho são ingremes e alcantilados. A penedia sobe-os aos montões. Em um de elles assentava o castello, de granito pardacento como as rochas, a recortar as ameias contra as nuvens brancas e no céo azul. As muralhas formavam em volta da Torre-Grande uma cinta defensiva, debruçada na penedia. No alto eirado da Torre batia ao vento o estandarte vermelho com o crescente de lua a branquejar-lhe no centro.
Era esse o castello do Rei Cid Alahum, mouro de raça, e rei valente. Ahi escondia elle as riquezas fabulosas dos seus thesouros. Defendia-os como toupeira, pois que só uma entrada havia no castelo. Para lá ir, o rei percorria os corredores infindaveis de uma galeria subterranea, que subia da planície ao cabeço.
Quando os Mouros vieram para a nossa terra, os Christãos, não podendo resistir, foram recuando, até chegarem ás montanhas do Norte. Ahi se fixaram, estabelecendo as suas cidades, e preparando-se para a guerra de exterminio, que expulsaria os Mouros odiados.
Um dia, já senhores de si, e pelo seu lado mui confiados os Mouros na sua força, que suppunham tão grande como a fraqueza dos Christãos, estes vieram lá do cimo das montanhas, precipitaram-se sobre os inimigos.
Iam os Mouros cedendo terreno. E por fim chegou a vez a esta região do Caramulo. O Rei Cid Alahum portou-se valentemente. Defendeu os seus remos com honra e gloria. Apesar de tudo, perdia batalhas sobre batalhas, não sendo bastante á sua causa nem a valentia nem a resistencia.
Chegavam os apuros. Cid Alahum, repellido sem cessar correu para o Monte-Lafão e refugiou-se no castello. As muralhas, grossas e altas, estavam suspensas e ameaçadoras sobre as ladeiras ingremes e sobre os precipicios da serra; fincavam-se nos rochedos que lhes davam firmeza e ar guerreiro. Podia o Rei fazer ahi a sua resistencia até se lhe exgottarem os meios ou chegarem os reforços reclamados. Ahi se recolheu com o melhor das suas riquezas, que andava por fóra do thesouro real, guardado no castello. Levou comsigo as tropas necessarias á defesa.
Poseram os Christãos cerco ao castello, e disposeram-se ao ataque. Em vão. Todos os esforços, todas as heroicidades, foram inuteis. Os Mouros tambem eram valentes, defendiam heroicamente o castello, tendo nelle uma posição admiravel. Após muitos ataques, cujos esforços se inutilizaram como succedera aos primeiros, viram-se os Christãos obrigados a usar de estratagema de campanha. O castello era inexpugnavel e só por habilidade ou engano podia ser tomado.
III
—De que se haviam elles de lembrar ?— preguntou o hortelão.
Não levantaram o cerco, mas prepararam a cilada. Não tomavam castellos de noite, pela treva? Não os assaltavam, gritando uns, ameaçando outros, surprehendendo as sentinelas? Tudo dava bom exito, quando as circunstancias se dispunham. Nada era alli possivel com um castello pequeno, bem defendido, e cujos guerreiros estariam melhor precavidos contra as insídias já afamadas, que os Christãos praticavam.
*
Nas serranias em volta do Caramulo, mas principalmente as que de elle sobem aos degraus até a Serra da Estrella, abundam os rebanhos. E’ uma multidão de gado meúdo, que, pelas encostas acima e nas chapadas ao longe, se confunde com os rochedos. Os pastores tem o aspecto antigo e os velhos costumes dos pastores de outras eras, naquelles mesmos lugares e naquella mesma vida; seria caso de dizer-se que são phantasmas vivos dos pastores e zagaes de algum dia.
A população dos campos nesses tempos estava espalhada por aldeias de lavoura e pelas herdades. Cavavam uns as terras ao seu senhor, outros pastoreavam-lhe os gados nas charnecas e nos montes. Bem o sabiam tanto os Mouros como os Christãos, e uns e outros assaltavam reciprocamente os campos e os rebanhos, quando as colheitas eram prestes e os gados estavam fartos.
Logo de isto se lembraram os Christãos, tanto mais que toda a região lhes pertencia, desde o Douro até alli, e já tinham conquistado, e portanto adquirido aos direitos de senhorio, todas as terras á volta do Caramulo. De resto só lhes faltava tomar o castello, onde se defendiam no ultimo recurso Cid Alahum e os seus soldados mais fieis e menos medrosos.
Quando alguem se lembrou de propôr o estratagema, que foi adoptado, já de antemão contava com as possibilidades de o pôr em pratica. Foi seguida a ideia e começou a realizar-se.
Um grupo numeroso de sitiantes foi apoderar-se de alguns rebanhos; escolhiam as cabras e deixavam os carneiros, levando-as bem guardadas da fuga ou de qualquer ataque dos Mouros escondidos algures, para a margem do rio Alfosqueiro no sopé do Caramulo. Ia no fim o periodo da lua, e por isso aguardavam as noites escuras.
Chegou emfim a noite apropriada. A terra estava immersa em profundas trevas. Era uma de estas noites negras, em que o céo parece mais alto, menores e mais longinquas as estrelas, das quaes não chega á terra a luminosidade vaga e mimosa em que ellas a embalam pelas noites leves, azues. A noite cedo envolveu a terra.
Foram-se os Christãos ao rebanho de cabras, por elles disposto e escondido á vista dos Mouros no valle do Alfosqueiro.
*
Emquanto corriam os dias e as noites se alongavam infindas á espera do momento opportuno de ser posta em pratica a realização do estratagema dos cavalleiros christãos, os guardas do gado e os pastores entretinham-se em conversa amigavel. Os pastores não eram arabes; muito longe de isso, mantinham a crença antiga dos Godos christianizados; eram irmãos de raça e de aspirações, elles e os guerreiros que sitiavam o castello dos Mouros. Por isso, formou-se logo perfeita harmonia na solidariedade espiritual de todos, os pastores pacificos e os guerreiros de Christo.
Aquella noite estava tão escura que despertava os medos e a superstição dos homens.
— Eh rapazes! — dizia um; que noite está! Está escura como o fundo de um poço!
— Irra! que se não vê um palmo deante do naris ! — exclamava outro.
— Devia de ser assim a noite do Diabo do Alfosqueiro,— bradou ainda um terceiro.
— Abrenuntio ! — exclamou um côro de vozes.
— Que historia é essa do Diabo? — preguntou um dos cavalleiros, curioso da historia.
— Pois não sabeis? — interrogou por seu turno o que tinha trazido á balha a lembrança do Diabo.
— Então não vedes que não sou de estes sítios!
— Tem razão, tem razão, — repetiram alguns.
— Então, se quereis, conto, — aquiesceu o outro; — eh rapazes, que vos parece? — tendes medo?... Conto?
— Conta lá, — consentiram os mais animosos. Realmente a noite infundia respeito.
O pastor contou então a lenda do Diabo da ponte do Alfosqueiro. A ponte é alta, e pula de um salto o rio fundo na cova dos montes. Quem na havia de fazer em tamanha altura senão o gynnasta das gynnasticas, que é o Diabo?
*
Appareceu uma vez o Diabo a um tal senhor, que era proprietario de terras vastas por aquelles sitios. Queixava-se o homem das difficuldades em atravessar o rio. Tendo elle terras fronteiras em uma e outra margem do rio, precisava de andar algumas leguas, para encontrar um vau de facil passagem. Nem era bom pensar em fazer ponte, que lhe servisse no lugar, onde a precisava de ter.
Era christão, mas pouco fundo tinha nos seus principios christãos. O melhor que desejava, consistia na satisfação das suas conveniencias.
Ora um dia appareceu-lhe, como se disse, o “Senhor Diabo”, — tratamento que lhe dá o povo, para se não malquistar de todo com elle. Sempre é bom, justifica elle o seu conceito, estar a bem com Deus e com o Diabo. Devia-o conhecer perfeitamente o Diabo, para assim lhe apparecer e propor-lhe logo o negocio em questão. O homem dava-lhe a alma, o que era para o Diabo o prazer de roubar a Deus, o seu inimigo de morte, uma alma que lhe não devia de pertencer a elle, Diabo; este dar-lhe-hia em troca o presente ambicionado, a ponte sobre o rio.
O contracto alongou-se, porque, se o Diabo é matreiro, o homem era bom negociante. Por fim combinou-se o assumpto com garantias. O Diabo faria a ponte, mas te-la-hia prompta á meia noite do Natal; o homem fechava o contracto, escrevendo-o com o sangue tirado de uma veia do lado do coração. Assim se fez. A obra começou logo.
Das janelas de sua casa, o proprietario d’aquellas terras via a construção da ponte e andava alegre. Que lhe importava perder a alma, se ficava alli com a ponte, para uso seu, sem lhe custar dinheiro algum, facilitando-se-lhe assim as conveniencias? E toda a gente andava convencida de que a ponte se construia a expensas do ricaço. Era um prodigio de riqueza, diziam, e todos o admiravam.
O peor foi que o homem, conforme se ia adeantando a obra, mais se lembrava do terrivel contracto que tinha feito. Sentia-se já nas profundezas do Inferno a arder nos caldeirões de Pedro Botelho, com os diabos meúdos, sem respeito pelo dinheiro de elle, a atiçarem-lhe as brasas e a picarem-no com forcados e engaços, quando gritava e se torcia. Cheirava-lhe a fogueira, ouvia brados lancinantes; tinha sonhos horriveis. Mirrava de dia para dia. Arrependeu-se do que tinha feito.
As obras estavam quasi promptas; eram já proximidades do Natal. Avizinhava-se a data, em que pelo contracto a ponte estaria acabada. E cada vez mais aprehensivo andava o homem, já então muito capaz de dar todo o seu ouro e as suas terras pelo sossego da alma attribulada.
Pensava, tornava a pensar no que devia de fazer, mas não chegava a conclusão nenhuma. Promettera, tinha de cumprir a promessa; estava desgraçado.
Caminhava ao sol posto pela beira do rio, ao longo das propriedades, quando encontrou uma velhinha desconhecida, que elle se não lembrava de ter visto em qualquer sitio ou qualquer tempo, e lhe preguntou pelo que tinha. Em maré de confidencias como todos os desgraçados, que esperam consolações, abriu-lhe a sua vida e contou á velha toda a paixão, que o minava, matando-o de desespero.
— Cumprirá o que prometteu, se é homem de honra, como creio, — disse a velha; — é forçoso que cumpra como o Diabo, com quem se comprometteu, tem cumprido...
— Mas perder-me-hei, — atalhou com afflicção o homem.
— Quem nos diz que o Diabo cumprirá a combinação até o fim ? — preguntou-lhe a desconhecida.
— Está a ponte no fim! — foi unica resposta do homem, cuja afflicção subia de ponto.
— Falta o que falta. E nós...
— E nós? — bradou ansiosamente o desgraçado.
— Nós podemos obrigar o Diabo a não cumprir a palavra dada. Assim, de esta forma, quem falta é elle, e Vossê está salva. Resta-lhe, depois, contentar-se com a sua sorte e não se metter em segunda aventura.
— Mas, como?
— Enganando o Diabo, e a ponte não se fará.
— Está quasi feita!
— Não se concluirá.
—Como?
— Ouça-me, —disse descansadamente a velha. Ouça-me primeiro e falle depois. Vossê vae enganar o Diabo.
— Como posso eu enganar quem é mais esperto e ladino do que eu?
— Oh Senhor! por amor de Deus cale-se, e ouça... Ouça primeiro, que depois terá tempo de fallar e de trabalhar... Convença-se bem de isto; Vossemecê vae enganar o Diabo, para elle não cumprir o contracto, fechado entre os dois!
— E, se o não enganar?
— Tem de cumprir a sua promessa, e terá o Inferno á sua espera. Se elle fôr quem falta, como ha-de Vossê obrigá-lo a cumprir? Deixá-lo ir, e ficar satisfeito. Emquanto que, faltando Vossê, nunca mais terá descanso. Perdido por um, perdido por dois. Se não conseguir que o Diabo falte ao pacto, é homem ao Inferno. Que lhe parece?
— Estou por tudo, — disse por fim o homem, com desconsolo e cheio de desespero.
— Não lhe vae custar nada. Ouça.
Explicou-lhe o que havia de fazer. Na noite de Natal, elle ia buscar um ovo de gallinha. O prazo acabava á meia noite; pois bem, muito antes de essa hora, levava elle comsigo o ovo, dirigia-se á ponte, e atirava-o para o meio de ela; olhasse bem que não posesse o Diabo as derradeiras pedras, antes de o homem ter atirado com o ovo; para o engano sortir effeito, era necessario que a ponte não estivesse prompta de todo. Elle, então, atirado o ovo, que esperasse os acontecimentos.
Admirado por tão pequena tarefa lhe poder custar a libertação da alma, cumpriu á risca o plano. Seguiu as obras, quasi a terminar. Na noite de Natal, ahi pelas onze horas, faltava collocar a pedra do remate do arco da ponte. Ou se apressava a pôr em pratica o que a velha lhe tinha ensinado, ou estava perdido e tudo seria tarde, vendo-se obrigado a entregar ao Diabo a sua alma, para todo o sempre perdida.
Correu á capoeira, tomou o ovo mais sujo, e dirigiu-se á ponte. Sem lhe pôr os pés em cima, receoso do que aconteceria, atirou com o ovo, ainda quente, para o meio do taboleiro da ponte, e aguardou com a maior ansiedade da sua vida. Ouviu o bate do ovo no chão, e o ruido humido com que se desfez. A noite estava escura, como aquella em que o narrador contava a lenda. Subitamente, viu branquear no meio da ponte um gallo, que sahira do ovo quebrado; o galo empoleirou-se nas guardas da ponte, e com estridente alegria cantou, espanando as asas com prazer.
O Diabo, esforçado em collocar a ultima pedra que devia de ficar no seu sitio antes da meia-noite, ficou surprehendido com o cantar do galo, annunciador da meia-noite. Em vista de tal facto, o Diabo perdeu a partida, pois que devia de ter a ponte completa a essa hora. Fugiu espavorido, com a convicção real de ter chegado a hora e não poder cumprir a promessa. Corria como um gamo e breve desappareceu. O homem, tendo assistido á fuga, viu que o conselho da velha produzira o melhor resultado; foi una exito absoluto. Perdida a parte do Diabo, estava ganha a do feliz proprietario das terras, que ficava como de antes proprietario tambem da alma, em riscos de transferir á posse alheia. Apoderou-se da ponte, que lhe pertencia por direito.
— E ficou dono da ponte, que o Demo fez! — exclamou o pastor, dando a historia por acabada.
— Eia, rapazes, assim é que é ser esperto! — bradou animado outro dos pastores. — Esse é cá dos meus.
— E se nós tivessemos ahi com esta noite o Diabo a fazer das suas? “Va de retro”, Satanás!
— Cala-te, cala-te, que elle arma-as, e nós te mos ahi os Mouros ao pé, quem sabe se a ver-nos!
*
O bom do velhote ia contando a sua história como se a ella tivesse assistido. Animava-se. Reproduzia os dialogos no tom em que teriam sido ditos, acompanhando-os com gestos imitativos, em attitudes theatraes e com entonações differentes, adaptadas ás personagens.
*
Tinha o pastor acabado a narrativa, quando chegou um grupo de cavalleiros, que vinha buscar as cabras. Iam aproveitar a noite e executar o plano preparado.
Guiaram os rebanhos ao longo do rio, afim de desnortear os Mouros cercados. Apenas chegaram ao sitio escolhido, principiaram a dispôr tudo, para que o estratagema tivesse todo o exito. Prenderam nas hastes das cabras, quantos archotes previamente conseguiram juntar e, logo que todos os animaes estavam guarnecidos, accenderam-lhes os fachos.
Assim se formou inesperada procissão nocturna, que muito deu de pensar aos Mouros. Continuou o rebanho a mover-se ao longo do Alfosqueiro. De longe produzia surprehendente espectaculo. Era em verdade admirável, nessa noite escurissima, vêr a multidão de luzes, que se moviam como estrellas cahidas, e bordavam á superfície da terra aquella constellação extraordinaria. Era este o estratagema, que serviria de isca aos Mouros no anzol premeditado pelos Christãos.
Cahiriam os Mouros no logro? Quem se não arriscou, — diz o povo, — não perdeu nem ganhou. Era uma armadilha. Ver-se-hia o resultado. Pelo sim, pelo não, disposeram os Christãos fortes grupos de guerreiros em locaes, de onde rapidamente podessem acudir a qualquer necessidade.
A marcha das luzes mysteriosas seguia lentamente. Vêem-na logo os Mouros, Ora, observaram que este phenomeno se não dava dos lados do acampamento dos Christãos. Por alli não os haveria por certo àquella hora. O descanso nestas circunstancias a curiosidade que os ansiava por descobrir o estranho caso, levou-os a sahir do castello. Uma chusma de guerreiros mouros abandonou as muralhas e as torres, assim enfraquecidas pela ausencia dos defensores.
As vigias dos Christãos deram logo pela, sortida. Tinham ordem de não atacar nem sequer, dar signaes do descobrimento da operação; o que ellas tinham de fazer era informar o acampamento, onde todos fingiam dormir a somno solto. As informações chegaram; o plano principiava a cumprir-se a com exito favoravel.
Sahiram os Mouros e desceram a serra, na direcção do valle. Viam na sua frente a multidão movediça das luzes. Já talvez distinguissem o rebanho, e tivessem dado pelo engano, quando os grupos emboscados abandonaram os esconderijos da penedia e cahiram sobre os Mouros; destroçaram-nos.
— Não ficou um para a amostra! — explicava o hortelão ás creanças, que o ouviam attentamente.
Ao mesmo tempo, emquanto a peleja ia rija perto do valle, a gente do acampamento ergueu-se e fez o assalto ao castello. A ausencia dos que tinham descido ao valle e a surpresa esmagadora com que foram colhidos, enfraqueceram a defesa, e o castelo cahiu finalmente em poder dos sitiantes. Valeu-lhes aos Christãos o estratagema.
Alguns Mouros ainda fugiram pela passagem subterranea do monte. Esses salvaram-se, indo entre elles o Rei com algumas das riquezas alli escondidas. Levavam a esperança de voltarem um dia, e então recolheriam o que lhes havia, pertencido.
Nas torres viam-se agora os Christãos. E a Torre Grande, remoçada como a moça que revê o seu namorado, ostentava no eirado altaneiro a bandeira da Cruz.
IV
Voltaram os Mouros? Vontade tinham elles, e, quando sahiram expulsos daquellas terras, levaram consigo a esperança de voltarem. Colhidos por toda a parte e perseguidos pelo esforço constante dos Christãos, foram-se dirigindo para o mar e embarcaram para a Mourama.
— E’ por isso, — explicava o tio Joaquim, — que as moçoilas cá da terra contam aquella historia que diz que nem os Mouros da Mourama...
— “Faziam o que tu fezestes”... — atalhou a Micas, como que acordando.
— Sábe-la, Micas? — preguntou-lhe o velho.
— Oh se sabe! que é que as raparigas de agora não sabem! — commentou lá do seu canto, pachorrentamente, a tia Michaela.
— Oh se sei! pois então? — foi a resposta da Micas, já muito esperta da modorra, em que ouvia a historia do hortelão.
— Canta, canta, Micas, — pediram as creanças.
A rapariga ageitou-se no banco, tomou ares e cantarolou a meia voz:
“Fostes ao Senhor da Serra,
Nem um annel me trouvestes;
Nem os Mouros da Mourama
Faziam o que tu fezestes”
—Nem mais nem hontem, é assim mesmo, — aplaudiu o velho, — e agora vamos á historia.
A maior paixão dos Mouros era terem deixado os seus ricos thesouros cá. Então aquelle castello do Lafão era mesmo um armazem de riquezas: as melhores joias, espadas de ouro, muitos anneis, pulseiras, braceletes, collares, diademas, cintos; rubis, brilhantes, esmeraldas; em cofres de marfim e ouro, em arcas de bronze esmaltado; em estojos de louça preciosa com guarnições de ouro e joias, e de formas caprichosas.
É verdade que tinham cá deixado tambem a guardar os thesouros as mais lindas e mimosas raparigas. Mas, coitadas de ellas, essas mouras estavam encantadas, e, se as riquezas não sahiam dos esconderijos, tambem ellas de cá não voltavam para a Mourama, onde os paes, os irmãos, os noivos as esperavam com amargura. A cada thesouro estava de sentinella uma de essas meninas. Por isso tantas eram as mouras encantadas.
A moura do castello era linda. Pequenina como um beijo, tinha nos cabellos côr do sol, e os olhos reflectiam em si o mais puro e brilhante azul do ceo. Cabia dentro do calix com que o Senhor Prior diz a Missa. E, ao fallar em Missa, todos se ergueram numa reverencia familiar. Viam-na ás vezes andar de noite pelo cabeço do castello; na escuridão da noite lembrava uma açucena, muito branca, luminosa como se tivesse dentro a “estrella da manhã”; se havia lua, e o luar batia nas encostas chapadas de luz, a moura, sobre as muralhas do castello, erguia-se como a nevoa da madrugada a esfiar-se dos montes e dos pinhaes.
E nunca fizera mal a ninguem. Encontravam-na ás vezes nos caminhos a fiar na roca e a cantar como aquella gente não sabia. Não fallava a ninguem, fingindo que a ninguem via, para depois desapparecer e a não verem tambem então.
V
Os Mouros roubavam quanto podiam aos Christãos, que lhes pagavam na mesma moeda. Já depois de expulsos, vinham de noite ás povoações das fronteiras do Sul, ou por mar ás terras da costa. Levavam riquezas e prisioneiros, creanças, homens e mulheres, que depois na Mourama vendiam como escravos. Os Christãos faziam-lhes guerra e davam-lhes caça na terra e no mar.
— Eram maus os Mouros! — exclamou indignada uma das meninas.
— Eu ouvi, quando era pequenina — disse a tia Michaela —
—Ih, ha quanto tempo! — atalhou a rir o hortelão.
— Olhem o moço! Pois não fostes! Diz a panella á certã: tira-te para lá, não me enfarrusques. Ora o traste do velharrão! Quem é mais velho? Por ahi sou eu!
A tia Michaela abespinhava-se a valer, sempre que alguem lhe troçasse da edade. O tio Joaquim, com as liberdades que dão os annos approximados, aproveitava todas as occasiões opportunas para a ver zangada.
— Lá está Vomecê escamada; deixe lá; conte, conte, — intervinha a tia Alberta, a cozinheira encartada, que formava com os outros dois a mais completa e harmonica trindade domestica de este mundo.
— Que foi que ouviu, tia Michaela? — pediram as creanças.
— Era uma xácara d’esses Mouros, que roubavam a gente. Era assim: — e recitava, meio cantante:
— “A’ guerra, á guerra, Mourinhos,
Quero uma christã captiva.
Uns vão pelo mar abaixo,
Outros pela terra acima.
Tragam-m’a christã captiva,
Que é para a nossa Rainha”.
Uns vão pelo mar abaixo;
Outros pela terra acima.
Os que foram mar abaixo,
Não encontraram captiva;
Os que foram terra acima,
Tiveram melhor atina.
Deram com o Conde Flores,
Que vinha da romaria;
Vinha Já de Santiago,
Santiago da Galliza.
Mataram o Conde Flores.
A condessa vae captiva.
Mal que o soube a Rainha,
Ao caminho lhe sahia:
— “Venha embora a minha escrava,
Boa seja a sua vinda;
Aqui lhe entrego estas chaves
Da dispensa e da cozinha,
Que me não fio de mouras,
Não me dêem feitiçaria.”
— “Aceito as chaves, senhora,
Por grande desdita minha;
Hontem condessa de Flores,
Hoje moça de cozinha!”
—Eu sei de outra de um “Dom Gaifeiros”, a quem os Mouros roubaram a senhora, — interrompeu a tia Alberta, animadissima e sarocoteante, por poder mostrar o que sabia ; — a senhora chamava-se Melisendra, levaram-na para a Mourama. E’ elle que diz assim:
— “Sete annos a busquei, sete,
Sem a poder encontrar;
Os quatro por terra firme,
Os tres por cima do mar.
Andei por montes e valles,
Sem dormir, nem descansar:
O comer, da carne crua,
No sangue a sede a matar;
Sangue vertam meus pés,
Cansados de tanto andar.
E os sete annos cumpridos,
Sem a poder encontrar!”
E mais deante depois de muito andar, vae ter á Mourama.
Andando vae Dom Gaifeiros,
Andando de bom andar.
Por essas terras de Christo,
Até a Mourama chegar.
Ia triste e pensativo,
Cheio de grande pesar:
Melisendra em mão de Mouros,
Como lh’a ha-de sacar?...
—E encontrou a Melisendra, tia Alberta?— preguntou uma das meninas.
—Se encontrou! Viu outro christão e preguntou-lhe por Melisendra. E elle respondeu-lhe assim:
“Que a dama, que andas buscando,
Em palacio deve estar”.
Foi Dom Gaifeiros ao palacio do Rei, faltou a uma senhora que estava á janela. Reconheceu a Melisendra e ella conheceu-o a elle. Diz assim:
Palavras não eram ditas,
Os braços lhe foi a dar.
Ella do balcão abaixo
Se deitou sem mais faltar.
— E depois, e depois? Morreu? — interrogaram quasi á uma as creanças.
— Fugiram foram os dois no cavallo de Dom Gaifeiros. Correram os Mouros atrás de elles, mas mataram muitos... e prompto.
*
Era constante a lucta.
Um dia, um homem de Villa Nova, là para perto do Monte-Lafão, embarcou em um barco do que faziam navegação ao longo da costa, e eram guardados por alguns, tão pequenos uns como outros. Elle ahi vae mar fóra, costa abaixo. Mas vem uma tempestade medonha. O vento levanta o mar.
O barco anda já no cimo das vagas, altas como torres, aguçadas como cristas de montanha. A chuva augmenta. O vento ainda é maior. Trôa o trovão e faiscam os raios no céo côr de chumbo. O ruido é de ensurdecer! As ondas; o vento; a chuva grossa a chicotear a agua; e as ondas encastelladas; os trovões, que rebentam sobre o barco, e arrastam pela immensidade do mar o estrondo cavo e arredondado, lento. Tudo confuso, era um inferno. O barco andava já sem governo; as vellas rotas cahiam dependuradas; os mastros, quebrados, ruiam sobre o navio. Faltava, no meio da destruição e da morte, a voz de Deus, que o salvasse.
Amainou a ventania. Aquietou-se o mar. O trovão ainda se ouvia, mas lá muito longe, como um echo a lembrar os perigos passados.
A tripulação do barco, essa não tinha ainda acabado as horas de desgraça. A embarcação estava desmantelada, não podia guiar-se. A costa era longe; tinha-os affastado o mar, para o largo, áquelles pobres marinheiros errantes; não lhes permittia a distancia que se abeirassem de terra ou se mettessem a nado para ella. Seria uma temeridade sem nome e sem vantagem. Assim pois, hia o barco, á mercê do vento e da corrente, cada vez mais para o Sul.
Passaram a noite a bordo. Horrivel noite aquella no meio do mar immenso, ignorantes do caminho, que a graça de Deus lhes fazia seguir! O mar balouçava-os, não como berço, mas como esquife, onde elles morreriam, se no afogados, certamente enfraquecidos e exgottados pela fome. Triste fim!
Ao clarear a alvorada, não viam terra pela pôpa, e corria o barco velozmente para outra terra, que viam pela frente. Não explicavam a mudança mas era assim. Era terra. Ao menos sahiriam em solo firme, e, fosse o que fosse, não era o mar ameaçador a tentar tragá-los no sorvedouro terrivel.
O barco foi encalhar na areia e logo um magote tumultuoso de homens corria para a praia. Ainda os da embarcação mal pensavam a sorte que os esperava, só ansiando por se salvarem. Apenas chegaram a terra, viram o destino que iam soffrer. Cahiram nas mãos dos Mouros, e estavam na Mourama.
Assim que os tripulantes do barco poseram pé em solo firme, precipitaram-se os Mouros sobre elles e discutiam-lhes a posse. Da praia os levaram para os mercados de escravos, onde foram vendidos. Só do homem de Villa Nova se soube o paradeiro. Por um acaso curioso, foi comprado pelo administrador da casa do Rei Cid-Alahum, aquelle principe do castello de Lafão, sem que um ou outro o soubessem ou se reconhecessem.
VI
Tinha um trabalho insano o triste escravo. Foi applicado á lavoura. Ainda o dia vinha em casa do Senhor, já elle estava a pé; e ai de elle, se ao irem busca-lo, estivesse ainda no somno ou se não apressasse a sahir! A cama eram uns torgos a um canto da estrebaria, cobertos por leve camada de palha de milho. Como lhe havia de custar a dormir, apesar de tão cansado pelos trabalhos do dia!
— E que trabalhos esses! — dizia com pesar o velho, recordando as miserias do escravo.
Todos os dias o jungiam á canga com um boi e o obrigavam a trabalhar assim. Era um animal. O boi e o escravo completavam a junta de irracionaes, dois animaes de carga e lavoura. De semelhante modo, a par um do outro, mettidos na mesma canga, lavravam a terra. Parava o homem, quando parava o boi. Ao lado, um mouro espicaçava os dois, se demoravam a marcha ou erravam a direcção.
Nesse trabalho doloroso, quantas vezes elle lembraria as ceifas, as vindimas, todas essas festas do campo e todas as tarefas da lavoura! As lagrimas queimavam-lhe a cara. O suor crestava-lhe o corpo. De elle só restava a memoria, com que recordava as noites da sua serra, noitadas de serão á lareira; trabalhava á noite em familia, debaixo de telha, como de dia em pleno ar livre trabalhava sem descanso e de boa vontade. Quanto isso era doce na saudade! Agora, então, não passava de um animal!
Davam-lhe por comida as papas grosseíras, aspérrimas, de milho britado á pressa na cova de uma pedra com outra pedra. Aquelles serões das descamisadas como lhe lembravam! Quem lhe diria que o milho das milharadas, esses bagos do milho-rei, as espigas assadas, lhe haviam de fazer tão maus amargos de bocca!
— Milharadas! oh as escamisadas, que bellas que são! — exclamava a Micas.
— Espigas assadas? — preguntou uma das meninas.
— Espigas sim, assadas no dia da escamisada, quando o bago está molle e é gostoso.
— Lá diz a cantiga, — torna a Micas e canta depressa, com o compasso mais rapido, meneando a cabeça:
Quem me déra cá o verão,
Ao tempo das ‘scamisadas;
Para dar ao meu amor
Duas espigas assadas.
Por essas e por outras, de tanto se recordar com saudades, e de tanto soffrer, lastimava-se elle desoladamente um dia.
— Ai, meu Deus ! Valha-me Santo Amaro do Portello ! — dizia elle comsigo entre soluços, com a cabeça nas mãos.
Ora o Portello ficava entre o Monte-Lafão e o Castello, e diz-se que houve ahi, ha já muito tempo, uma capella de Santo Amaro, de muita estima nos
povos dos arredores.
Passava pelo escravo uma moura, já velha, que o ouviu bradar pelo Santo. Parou, sem que o homem désse pelo facto. Surprehendeu-se a moura com a invocação, e ia certificar-se da suspeita.
— Olhe cá, homem, — disse, —Vossemecê fallou em Portello?
— Fallei, sim, senhora. E depois? — respondia o escravo, mal humorado.
— Sabe onde é esse Portello?
— Ora essa! Que pregunta! Sou de aquelles lados, por alli nasci. Como não havia de saber? Lafão, castello,... Eu sou de Vila Nova.
— E Vossemecê queria voltar para lá?
— Quem me dera já lá! — exclamou elle, erguendo-se e levantando a voz: — Quem não quer voltar á sua terra? Meu Santo Amaro, não hei-de eu querer tornar a ver-vos !
— Vou fazer uma combinação com Vossemecê. Diz-me logo se aceita ou não aceita. —Fallava a moura velha. — Mas deve agradar, já que Vossemecê não está satisfeito com a sua vida, e quer voltar á terra.
— Diga, diga, — exclamou elle como o naufrago, que se agarra á ultima táboa; estendia para dia os braços supplicantes, com as mãos abertas. A moura deu-lhe a conhecer o plano, para executar o qual era necessario o regresso do escravo, já então livre, ás serranias do Caramulo. Esplicou-lhe as intenções e forneceu-lhe os elementos precisos para bem cumprir o plano.
*
No dia seguinte o homem teria alli perto um cavallo á sua disposição. Elle sahiria do campo, onde estivesse a trabalhar e dirigia-se ao local em que o esperava o cavalo. Era um cavallo branco. No arção da sella encontraria um pão. Que se livrasse ele de tocar nesse pão; deveria ser sagrado. Apenas montasse o animal, este ia conduzi-lo pelo ar, sem mais detenças, á sua terra.
Logo que chegasse, devia dirigir-se ao Portello. Junto da capella de Santo Amaro, tão da fiel devoção do captivo, encontraria uma pessoa a quem entregaria o pão. E recommendou-lhe mais uma vez o especial cuidado de não tocar no pão; entrega-lo-hia intacto, como lhe era entregue a ele.
Tudo succede á risca, em conformidade com as instruções da moura. O homem encontrou o cavallo, o arção guarnecido e com o pão promettido; montou e, por ares e ventos, breve se encontrou no Caramulo. Aqui é que não cumpriu logo, como devia, as ordens recebidas na Mourama.
A ausencia tinha sido grande e maiores as agruras de essa ausencia por longínquas terras. Não admira que elle, tão depressa chegasse a Villa Nova, fosse antes visitar a familia; era natural que preferisse os seus á tal personagem mysteriosa e para ele secundaria, que tinha de ir procurar no Portello, afim de lhe entregar o pão.
Foi uma alegria louca a d’aquella casa. Quem esperava tornar a ver o pobre captivo, cujo paradeiro era desconhecido? Sabia-se que fôra para o mar; elle próprio sahiu de casa com esse fim; sabia-se depois que o barco em que fôra para o mar, tinha sido apanhado pela tempestade furiosa; sabia-se por fim que nem ele, nem os companheiros de infortunio, appareceram mais. Apparecer agora em casa são e salvo, era de considerar-se um milagre do ceo. E, milagre assim, foi para a família surprehendida.
Como os trabalhos na Mourama o enfraqueceram e ele mal dormia, chegou muito cansado. Além de isso, a viagem, tanto pela rapidez como pelas sensações soffridas de vir pelos ares, molestou-o a valer e roubou-lhe as ultimas forças. Por isso, em casa, logo que satisfez o encanto de ver os seus filhos e sua mulher, deitou-se a dormir um somno reparador.
Recommendou porem com toda a insistencia á mulher que não tocasse no pão, que trazia da Mourama. Ela jurou e tornou a jurar que lhe não tocava, mas faltou como todas as mulheres.
— Ora o figurão!... Pois então, não querem ver! — protestou a tia Michaela, logo seguida pela cozinheira.
Ella já sabia tudo que acontecêra ao marido. Cortou-se-lhe o coração de o ouvir contar a viagem, a tempestade, a arribada á Mourama. O que mais a fez penar foi o captiveiro do desgraçado. Ainda lhe não tinham seccado de todo as lagrimas, quando elle adormeceu. Ficou a remoer-lhe a consciencia aquelle mysterio do pão em que se não tocava. Um mixto de curiosidade e de ciumes levou-a a infringir o cumprimento da promessa jurada de não tocar no pão. Foi vê-lo e as tentações augmentaram. Pensava se não seria recordação de amores, que elle tivesse deixado por lá, pela Mourama, em terras e gentes infieis.
—Santo Amaro do Portello me perdoe, mas vou ver o que isto aqui tem dentro! — resolveu ella.
Tirou o pão. Mirou-o, remirou-o. E por fim, com um gesto repentino, em uma hallucinação, vae buscar uma faca, espeta-a no pão e corta-lhe um pedaço. lmmediatamente começa a cahir sangue do pão, e a mulher, devéras assustada com o caso extraordinario e inesperado, tenta reunir bem as duas partes cortadas, operação que faz como pode, e vae collocar o pão no mesmo sitio, onde o encontrára.
Quando acordou, o homem, convencido de que tudo estava bem, nem por sombras desconfiando da infidelidade da palavra da mulher, não verificou se o pão estava intacto.— Devia de estar, ia elle pensando. Agarrou n’elle, e sahiu de casa, levando-o para cumprir a palavra que dera á Moura velha, lá nas terras pavorosas da Mourama.
Elle ahi vae para o Portello, todo elle cheio de curiosidade por desvendar o mysterio.
VII
O homem de Vila Nova chegou ao Portello e dirigiu-se á capella de Santo Amaro. Como ninguem estivesse alli, sentou-se em uma pedra e esperou; não esteve só porém muito tempo. Breve appareceu uma rapariga, que se approximava de elle, convencendo-se o homem de que realmente ella se lhe dirigia.
Era linda. Pequenina como um beijo, tinha os cabellos côr do sol, e os olhos reflectiam em si o mais puro e brilhante azul do ceo. Cabia dentro do calix com que o senhor Prior dizia a missa.
Chegava junto do logar, em que o homem estava, quando este se ergueu e lhe disse atabalhoadamente:
— E’ a Vossemecê que tenho de entregar aquella coisa da Mourama?
— E’ a mim, é, — respondeu ella com voz pequenina.
Elle então tirou de um saco o pão, muito embrulhado em uma toalha branca de neve, e entregou-o á desconhecida, que era nem mais nem menos a Moura do Castello, guardadora encantada dos thesouros, deixados nos esconderijos dos subterraneos das muralhas e torre dos Mouros.
A moura recebeu o pão. Uma nuvem de profunda tristeza invadiu-lhe a alma, e perturbou-a. - Cheia de amargura, examinando bem o pão, fallou ao aldeão com o maior desgosto.
— O pão, que me trouxeste, foi minha mãe que t’o deu nas terras da Mourama; era minha mãe aquella Moura! Este pão seria o meu desencantamento, e seria a tua felicidade. Não cumpriste o que prometteste. Vê. Olha para este pão. Entregas-m’o intacto como o recebeste das mãos de minha mãe? Vês bem que não.
Passou de novo o pão ao homem, que o examinou com cuidado e, mais que isso, com curiosidade. De facto, logo deu com o corte de um pedaço.
— Não sei como isto foi, — exclamou elle muito compromettido.
— Como foi! — tornou a moura.— Vieste aqui procurar-me, logo que chegaste?
— Não, senhora.
— E que fizeste, enquanto cá não vieste?
— Dormi para descançar.
— Contaste a tua mulher tudo quanto te succedeu !
— Tudo, tudo.
— Ja vês! Despertaste-lhe a curiosidade,— explicava a moura, — Fallaste-lhe no pão, prohibiste-lhe que tocasse n’elle. Era de esperar. Havia de ir vêr o que trazias assim tão escondido, e como um pão, em vez de servir para comer, tinha de ir não sabia para quem e para onde.
— Que culpa tenho eu?
— Não vieste logo aqui, e com a tua indescrição abriste-lhe o apetite do mysterio. E ella cortou um pedaço de pão, porque queria vêr o que tinha por dentro e se era em verdade pão de comer.
— E agora? — preguntou, depois de tudo, o homem de Vila Nova. — E agora? — Agora? — respondeu a moura. — Agora nem eu saio de estes sitios do meu encanto sem fim, nem tu levas de cá as riquezas, que seriam tuas, se cumprisses á risca tudo quanto minha mãe te disse.
— Então que era esse pão, que trouxe? A moura explicou-lhe o que elle desejava. Dentro do pão vinha o cavallo, que lhe mandava da Mourama sua mãe, para ella o montar; esse animal transportá-la-hia a casa dos seus, na patria ansiadamente desejada. A mulher do aldeão de Villa Nova, cortando com a faca esse pão, decepou uma perna ao cavalo, e assim manco falhava á missão a que o destinavam. Ella não voltava á patria e ao lar de sua familia. Alli ficaria encantada até que outro emissario viesse e cumprisse á risca a palavra dada, o que este de Villa Nova não fizera. Mas tambem ele não teria nenhuma de aquellas riquezas, as joias e magnificencias escondidas, que ella guardava, e lhe seriam entregues a ele, se tivesse seguido a primor, corno devia, as instruções recebidas da velha moura na Mourama.
— E’ o que faz ser imprudente, e faltar á promessa, a que nos obrigamos, — rematou a moura com indignação e amargurada tristeza.
Antes de o mandar embora, a moura tirou, de um cofrezinho de sandalo e marfim, que trazia consigo e o aldeão cobiçava desde começo, certo tecido muito fino e de côres variegadas.
Admirava-se o homem. Não atinava como de caixa tão pequena sahisse panno tão comprido. E o panno ia sahindo, desdobrando-se lentamente. As côres eram brilhantes, alternavam-se, multiplicavam-se, vivas, depois mais suaves, logo mais vibrantes. Parecia um arco-íris, que iria subir das mãos da moura gentil e pequenina, para o ceu azul limpido, lá muito alto, que lhe invejava os olhos.
— Toma esta faixa, que darás a tua mulher, como lembrança minha. Leva-lha.
Deu ao homem a faixa. Grande como era, não lhe pesava na mão mais que uma penna. Mirou-a e remirou-a, antes de dizer á moura o “muito obrigada” do seu estylo aldeão. Foi necessario que ela, com um adeus de quem parte ralado de saudades e mortificação se retirasse, para que elle se decidisse tambem a regressar á aldeia.
Pelo caminho levava a faixa, que o encantava, nas mãos estendidas, como creado que leva a bandeja a servir, com ceremonia e cuidados de equilibrio, a commodidade e bom tom do seu senhor. Não via o caminho; apenas se lhe enchiam os olhos com as côres alegres e abertas da faixa seductora. Na verdade ia seduzido pela dadiva da moura.. Dir-se-hia que estava mais encantado do que ella. Que faria ele, se em vez da faixa, o simples presente de um farrapo de côres brilhantes, tivesse ganho o direito ás riquezas lá de longe promettidas?
VIII
Ia muito satisfeito, caminho fóra, o aldeão de Villa Nova. Cahia a tarde, e o ar estava leve. Viam-se as aldeias até muito longe. Lá no fundo, o Alfosqutiro saltava de pedra em pedra aos borbulhões de espuma. E, para lá, sobrepunham-se montanhas a mantanhas, a formarem degraus por onde o coração subia com os olhos até o ceo, sereno e límpido.
O nosso aldeão continuava a admirar a belleza, nunca por elle vista, da faixa da moura.
— Que linda vae ficar minha mulher com isto! — disse consigo.
Já nem se lembrava das riquezas, que tinha perdido, para se enthusiasmar com aquelles metros de panno listrado. Vangloriava-se do presente.
Parou, junto de umas oliveiras. Desdobrou a faixa, suspendendo-a no braço; estreitou-a a si, a toda a extensão do braço, admirando a combinação de côres. Mas quis ver mais e melhor. Chegou-se a uma das oliveiras, e dobrou a faixa em torno do tronco.
— Vamos a ver como fica!
Depois de posta assim, como ficaria em volta da cinta da mulher, foi-se afastando da arvore e virando-se para trás a observar o effeito da faixa.
— Como é linda! Como vae ser linda minha mulher com ella!
Afastava-se mais, e de novo contemplou a belleza decorativa da faixa. Novas exclamações proferia, a cada observação feita.
— Que inveja vae causar ás amigas!
Mais uns passos. Repetiu esta mesma operação algumas vezes, sugestionando-se mais e mais. Até que, a uma razoavel distancia já e quando tencionava levantar a faixa e ir-se embora, fica mudo de espanto e pavor. Os cabellos em pé, os olhos estarrecidos, estava pregado ao chão, como se os sapatões, que calçava, fossem de chumbo.
Em vez da faixa e no logar de ella, tendo-se esta transformado, viu uma serpente enorme, enroscada na oliveira, a silvar como a sereia de um comboio. Sentia-se o esforço que o animal fazia, apertando a arvore nos anneis formidaveis do seu corpo. A oliveira tremeu; agitava-se, como se um machado potente a batesse, para a prostrar; a copa oscillava largamente, e nenhum vendaval a sacudia; rangia o tronco rijo, como se o estivessem a triturar. A serpente apertava-se na arvore, esmagava-a contra si; via-se-lhe o dorso a erguer-se num apoio para esforço maior. Por fim, num sacão poderoso, a um silvo maior, talvez um brado selvagem de victoria, a oliveira estalou, soltava aquelle grito pavoroso das arvores na derrocada, como se lhes nascesse no momento supremo uma alma sensivel, que num canto primeiro e ultimo se despedisse da vida de uns instantes, e cahiu com fragor no chão pedregoso.
Era noite, quando ao piar da coruja, o homem acordou do seu turpor. Como estatua, não tinha vida. Ficaram-lhe os olhos naquella tragedia, cujo unico espectador fôra elle. Nem ate alli pensára sequer no que aconteceria se, em vez da arvore, a faixa cingisse o corpo da mulher. Só depois, voltado a si, elle repetiu em espirito o que tinha presenceado. Convenceu-se de que o presente da faixa era a vingança da moura. E apressou mais o passo, não fosse ella mandar-lhe outro presente, ou enviasse contra elle alguma prova do seu odio sem limites nem moderação.
E aqui está, minhas meninas, a historia de hoje, — conclue o velho.
— E a serpente? — preguntou uma das creanças.
— Desappareceu. Nem o homem viu por onde. Cahiu a arvore, e prompto. Se fosse a mulher, em vez da oliveira, tinha morrido, toda desfeita.
— Que medo!
*
Está a ceia na mesa. Meninas, a mamã chama-as.
A creadita vinha á porta da quadra, quando chamou. O lume estava menos vivo. A candeia amortecêra. Andavam no ar os aromas da culinaria, que abriam apetites. As meninas correram para a sala, sem ao menos na ingratidão infantil e innocente haverem agradecido ao velho tio Joaquim a historia da Moura do Caramulo, uma das mais bellas narrativas de mouras, encantadas na nossa terra.
— Boa noite! Boa noite! — dizia elle com pena de as ver partir, — as “suas meninas”, como lhes chamava enternecidamente.
- Source
- CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisbon, Livraria Universal, 1924 , p.161-202
- Place of collection
- São Vicente De Lafões, OLIVEIRA DE FRADES, VISEU