APL 648 O Muro do Lançarote
O inverno corria tempestuoso e agreste. Contra o que geralmente acontece, os cumes dos montes que delimitam as extensas Campinas de Idanha-a-Nova já nesse ano haviam sido visitados por um forte nevão.
Na Serra, como no Campo, a fome e o frio atormentavam a criação, e os lobos, que há muito não eram pressentidos, começavam a espreitar os rebanhos.
Desapareceram os primeiros borregos.
— Mau foi começarem, diziam velhos pastores! Ao assalto furtivo vai com certeza seguir-se a luta a descoberto! De nada valerá a resistência dos possantes e fiéis cães, a grita dos homens ou os braseiros e lumieiras acesos durante a noite!
Os assaltos repetiram-se, de facto.
Lavradores e pastores começaram a sentir a necessidade de encarar a sério a situação, de dizimar, de exterminar as feras que, ao que se dizia, eram em número elevado.
Fizeram-se convites aos caçadores das redondezas, começou a provisão de balas e zagalotes para a grande batida que limparia a região de tão ruim peste.
Nisto chegou à vila a notícia do desaparecimento de um dos melhores touros de uma das vacadas do termo; e se uns tinham como certo tratar-se de proeza de lobos, grande maioria não acreditava que um touro se deixasse vencer por aquelas feras.
O vaqueiro percorreu a Campina, inquiriu, perguntou debalde, por todos os cantos, pela melhor cabeça da sua vacada.
Se os lobos a tivessem comido apareceriam os ossos, o calhabouço!
E não obstante ter, como se disse, percorrido dum extremo ao outro todos os raros esconderijos das redondezas, nenhuns vestígios ou restos encontrou!
Passaram dias. Os rebanhos deixaram de ser atacados. À tempestade sucedeu a bonança. Pastores e lavradores começaram a estranhar a ausência das feras e, quando ainda procuravam uma explicação para o estranho desaparecimento do boi, surgiu um pobre e velho lavrador, com sete peles de lobos corpulentos, a contar que tendo acabado a colheita da azeitona resolvera, aproveitando o período de acalmia nos trabalhos agrícolas, visitar as suas colmeias, ir até ao seu muro (1). Ao transpor a porta, viu, com grande espanto, que dentro havia restos do esqueleto de um boi e, próximos, cinco lobos mirrados, esqueléticos, quase mumificados, além de dois já mortos. Com o varapau que o acompanhava acabou o martírio aos que ainda davam sinais de vida. E explicava assim o estranho caso:
— Os lobos atacaram o touro quando este estava desgarrado ou afastado da vacada. Próximo ficava o muro. O touro lutou e, seguindo o costume inato destes animais, encostou-se à parede para melhor se defender. A luta continuou, e o boi, sempre na defesa e sempre encostado, veio a achar-se junto da porta do muro, que se abriu. Recuando sempre, entrou, e os lobos, esfomeados, ululantes, avançaram ficando todos dentro do circo de altas muralhas que servia de abrigo às diligentes abelhas.
A luta era de vida ou de morte, e o touro, que recuando abrira a porta, igualmente, recuando e defendendo-se, fechou-a.
Feras e touro ficaram assim enclausurados no circo de altas paredes que era o muro.
A luta devia então travar-se formidável. O touro, a espumar, a urrar, a revolver o chão, os dentes das feras a cravarem-se-lhes nas ancas entumecidas, o sangue a jorrar e a ensopar o campo, os lobos, apanhados nas pontas do touro, a voar de um lado para o outro, as abelhas, cortiços em desalinho, a importunar os invasores da sua cidadela, a vitória devia, logicamente pertencer às feras.
Às arremetidas de uma alcateia esfomeada e ágil, ao ataque persistente de sete lobos esfomeados, o touro, sem comida nem bebida, devia necessariamente sucumbir. Exangue, espumante, enraivecido, as forças devem ter começado a faltar-lhe! A agonia, lenta, sofredora, chegou e logo, para os lobos, o festim, que deve ter durado alguns dias. Senhores do triunfo, estômago aconchegado, devem em todo o caso ter sentido, desde o primeiro dia, a ânsia de liberdade.
Mas, o muro era inexpugnável e a única porta de saída estava fechada! Olhavam-se e remiravam-se, mas sem remédio!
Comeram o que lhe restava, esburgaram os ossos do touro. A fome começou a dominá-los, passaram horas, volveram dias. Debalde fitavam o muro e o círculo de céu que ele deixava a descoberto! A morte aproximava-se lenta, inevitável; e por isso, dizia o lavrador: — Quando entrei no colmeial duas feras já estavam mortas e as demais sem forças. Por isso a minha acção limitou-se a acabar-lhes com a vida e a arrancar-lhes a pele.
O desassossego e sobressalto de lavradores e pastores acabou também, e o facto, como estranho e único na história das Campanhas de Idanha-a-Nova, é, ainda hoje, memorado e contado como se contam contos de fadas!
(1) Muro é um recinto fechado, de forma arredondada, com uma única porta, povoado de cortiços com abelhas.
- Source
- DIAS, Jaime Lopes Contos e Lendas da Beira Coimbra, Alma Azul, 2002 , p.35-38
- Place of collection
- Idanha-A-Nova, IDANHA-A-NOVA, CASTELO BRANCO