APL 464 Os bruxedos da carembicha
Gertrudes: A minha irmã mais velha também foi morta por mal de bruxedo. Foi a primeira mulher do mê marido, que só mais tarde veio a casar comigo.
Eu tinha uma tia que morava ao pé da gente. Eu morava mais abaixo. A minha irmã e aqui o Joaquim moravam mais perto dela. E essa tia teve uma criança. E foi o Joaquim que foi padrinho dela e mais a minha irmã. Eu era uma rapariguinha, teria aí os meus treze, catorze anos e gostava muito desses tios que eram muito nossos amigos. E essa minha tia, depois que teve a criança começou a sofrer dum pêto e mal, mal, cada vez mais mal, sem saberem o que era, vá de mézinhas ao pêto, vá de mêzinhas ao pêto e a mulher muito doente.
E então, era na Quaresma, eu vinha do trabalho e mais um irmão meu, que era só o que estava em casa, e fomos vê-la e daí disse-lhe assim então, tia, comé que está? Olha, eu ‘tou muito mal, Estrudes, eu ‘tou muito mal, logo diz à tua mãe que venhem até aqui, as noites são muito grandes e eu custa-me muito a passar as noites e vocês venhem, rezem aqui o terço.
Eu vim e disse esse recado à minha mãe. A minha mãe lavava roupa alheia d’Alvor, foi como ela criou os filhinhos dela e então só à noite é que abalámos. Ceámos, que naquele tempo era a ceia e fomos até lá.
Eu, como já a tinha visto antes, naquela noite na fui lá ao quarto, entrê p’rá cozinha, fazia-se fogo de lenha naquele tempo no chão e eu fui pró pé do mê tio e dos mocinhos. E a minha mãe entrou lá no quarto e fez-lhe assim comadre, atão com’é que ‘tá hoje? Olhe, a mulher começa a falar mal, falou tã mal, tã mal, tã mal, dizia tudo quanto era ruim. E a minha mãe disse assim, ó compadre José, traga lá a luz (estavem às escutas), que a comadre está mal traga lá a luz. Olhe, ela custava-se a mexer na cama. Naquela noite assantou-se na cama, enjoelhava-se, arramatava, pedia a Deus que lhe desse saúde, p’rá gente rezar todos, dizia cruzes diabo, cruzes diabo, cruzes diabo, olhe, aquilo meteu-me tudo um medo, eu nunca vi uma coisa assim e Deus queira que já nunca veja na minha vida uma coisa tão medonha. Foi mesmo uma coisa medonha. A mulher punha assim as mãos, diguem todos Santíssimo Sacramento, Santíssimo Sacramento! Dai, punha as mãos ao ar e dizia cruzes diabo, cruzes diabo, cruzes diabo! Olhe aquilo era, sei cá, foi uma coisa horrivel.
Bom, aquilo passou-se, no outro dia o mê tio abalou logo, viu que aquilo na era coisas geradas só pela doença, abalou, foi dar passos. A gente na soube de nada.
Dali talvez p’rái coisa dum mês começou a minha irmã a sofrer. Começou a sofrer, a sofrer, a sofrer, ela’tava gráveda, teve essa criança, já na dêtou pinga de sangue. A criança tinha p’rái um mês quando morreu e a minha irmã nunca mais gozou um dia de saúde.
Este foi, correu seca e meca, p’rás bruxas, foi buscar uma que havia ali em Lagos, todas as noites, às quintas ou às sextas feiras lá ia ele buscá-la p’ra tratá-la, que a minha mãe ‘tava tratando dela, mas eu na podia, tinha de lavar tanta roupa.
Joaquim Valamatos diz: Saía daqui à meia noite p’ra ir buscá-la a Lagos, ia numa égua. Mas nada, na melhorava.
Gertrudes: Foi então que o Joaquim ouviu falar nessa tal fulana, a Carembicha, soube que ela curou um rapaz além p’rá banda da Nave, que já ‘tava desenganado dos médicos e o Joaquim foi lá buscá-la, pra ver se ela valia à minha irmã.
Diz o Joaquim Valamatos: Mas calhou ser logo nessa noite que ela foi apanhada pelos males que fazia. O administrador, ou regedor, na sei bem, só sei que era autoridade, tinha vindo de Monchique e estava à espia dela lá p’rá prender e viu-me a vir com a égua ali naquela direcção e foi ter comigo. Eu, como conhecia-o porque era filho do senhor Correia que era alveitar do gado e era ferrador e era muito amigo do mê pai, descobri, disse-lhe ao que ia. Ele disse é mesmo por isso qu’eu ‘tou à espera dela, tem feito muitas e agora vai presa.
Ora ‘tava ele ali a conversar comigo e eu vi-a vir por aí abaixo,
vinham-na trazer lá duma casa ond’ é que estava, tinham ido buscá-la lá, ora ele chegou a ela, jogou-lhe as unhas e foi a caminho de Monchique. Pronto, nunca mais se soube nada dela.
Diz a Gertrudes: Isto foi p’rái há uns sessenta e tal anos. E houve pessoas um vizinho ali dessa tal minha tia, que ficou curada, que tinha ido com o mê tio dar esses passos à dita Carembicha. Esse homem chegava a casa e perguntava assim à mulher como é que está além a prima Maria Estrudes (era a minha irmã) e a mulher respondia ela ‘tá mesmo mal, coitadinha, ‘tá na desgraça.Vinha outro dia, o homem perguntava o mesmo. E dizia-lhe assim coitadinha, ela morre, que só o qu’eu ouvi e Deus é que sabe. Más nunca descobriu o que lhe ‘tavam fazendo. Se ele tivesse decobrido logo, más ele pensou que daí podia haver brigas de mortes ainda pior, foi o que o homem pênsou. So Joaquim soubesse, pois na tinha nada a ir matar o outro, o mê tio, que foi dar passos à Carembicha que dispôs o mal da mulher dele p’rá minha irmã. Diz que tinha de passar o mal p’ra uma pessoa das mais amigas que tivessem. E diz que o mê tio falou à bruxa na gente todos. A gente era quatro, com a minha irmã. Falou numa irmã minha que já era casada tamem, a Luisa, a bruxa disse que não. Falou no mê irmão, disse que tamem não. Falou na minha irmã, que era a mais perto que tinha porque morava ali ó pé, a essa disse que sim. E o mê tio diz que disse que tinha muita pena porque era sobrinha da mulher e compadres de águas bentas, madrinha dessa miudinha pequenina. E a bruxa disse quanto mais amigos, melhor, quando nã se tratandem, sendem inimigos é q’essas coisas são más de fazer. Disse que quanto mais amigas as pessoas são, mais fácil é fazer esses males passar duma p’rá outra. Ele entregou-lhe uma roupa que a minha irmã tinha dado à mulher dele. Disserem qu’era um esprito mau que ela tinha, a gente sabe lá dessas coisas. Contanto que o mal dela foi p’rá minha irmã. A minha irmã chegou a pontos de fazer o mesmo qu’ela fazia, gritar, gritar. Só o que tinha era na falar mal. Mas chegou a levar duas noites e dois dias a cantar, quase morta na cama, sim senhora, até arrepiava ouvi-la.
Esta aconteceu com a gente.
- Source
- TENGARRINHA, Margarida Da Memória do Povo Lisbon, Colibri, 1999 , p.33-36
- Place of collection
- Mexilhoeira Grande, PORTIMÃO, FARO
- Informant
- Gertrudes dos Santos (F), born at Mexilhoeira Grande (PORTIMÃO),