APL 999 O véu de casamento
Havia dois irmãos muito chegados vivendo ao lado um do outro. A vida a um corria-lhe bem; a do outro era um sem número de arrelias.
À esposa do que a sorte menos bafejava, crescia-lhe de dia para dia uma inveja do tamanho de um poço pelos cunhados. Era uma mulher seca, demasiado fria e calculista.
Isso não lhe chegava, no entanto, para endireitar as finanças da casa. Um dia meteu-se-lhe na cabeça tentar transferir a sorte dos familiares para si. Consultou uma bruxa. Esta, que deitara as cartas e vira a sua miséria, aconselhou-a a levar-lhe uma peça de roupa do casal. Sem isso não poderia fazer nada. – Que peça? – perguntou. Uma qualquer serviria. Mas se fosse um véu de casamento, o trabalhinho ficaria muito mais bem feito.
A mulher tentou aceder ao quarto dos cunhados onde sabia estar guardado numa caixa o vestido de casamento. Até que conseguiu alcançar a caixa. Por pouco era apanhada pela cunhada. Escondeu o véu debaixo do avental e ainda esteve na cozinha a contar da sua desgraça com a raiva e a ira nos olhos que transpareciam mel.
No dia seguinte, voltou à bruxa. Esta, experiente em práticas esotéricas e conhecedora das receitas de São Cipriano, deitou ao véu um ar de inveja.
E o cunhado começou a mirrar como planta sem água. Largou o trabalho e caiu de cama. Era uma corrida para os médicos e o hospital, caixas e caixas de medicamentos, mas piorava cada vez mais e os clínicos não lhe atinavam com a doença. O véu, entretanto, foi posto no sítio pela cunhada, que andava alegre como tudo a apoiar na tristeza a família do doente.
Por instâncias de um vizinho, a família decidiu levar o doente à consulta de um bruxo famoso na arte dos contra-feitiços. Os médicos tinham-no já desenganado. E quando o bruxo o viu, disse-lhe logo que estava por dias. O homem, que só se segurava nas pernas graças ao amparo da mulher e de um dos filhos, compreendeu então que ia morrer. O bruxo, porém, disse-lhe que nem tudo estava perdido. Deitou as cartas e viu o véu numa dama de copas. – Que véu? – perguntaram todos. – O véu de casamento que a sua cunhada levou a uma bruxa. Foi com ele que o empeceram. Tragam-me cá o véu quanto antes. A ver se ainda vamos a tempo de o salvar.
Um dia depois lá apareceram com o véu que encontraram bastante engelhado na caixa. O bruxo fez os preparos devidos, voltou a botar as cartas e despediu o doente com um saquinho de ervas silvestres – alecrim, alfazema, verbena... – para queimar pela casa toda recitando a seguinte oração:
Em louvor do Santíssimo Sacramento do Altar o meu corpo estou a defumar para que Deus para bem tudo possa modificar. Saúde, sorte, sossego, paz de espírito, no meu lar possa entrar e que todas as pragas, invejas, ódios e espíritos maus possa afastar em louvor do Santíssimo Sacramento do Altar. Rezar três padre-nossos e três avé-marias. Fazer nove vezes.
Assim o tentaram. Percorreram todas as divisões e recantos da casa com o defumador das ervas ao mesmo tempo que rezavam o cânone recomendado para purificar o mau olhado e o ar de inveja. Depois levaram as cinzas ao rio próximo cobertas com um quilo de sal e um dente de alho.
O doente, a partir daí, começou a ganhar cores, a vir-lhe o apetite, até se levantar
com força e energia para reiniciar o trabalho. Na casa ao lado voltava-se o feitiço contra o feiticeiro. Era a mulher a mirrar até uma morte que todos atribuíram à tuberculose.
- Source
- AA. VV., - Literatura Portuguesa de Tradição Oral s/l, Projecto Vercial - Univ. Trás -os-Montes e Alto Douro, 2003 , p.B12
- Year
- 2000
- Place of collection
- Semelhe, BRAGA, BRAGA
- Collector
- José Leon Machado (M)
- Informant
- Maria da Conceição Machado Barbosa (F), 56 y.o., Semelhe (BRAGA),