APL 1391 A rapariga que queria ser feiticeira
Era noite de Inverno, tava frio de rachar. Os vizinhos tinham-se juntado numa casa próximo do Terreiro da Calheta, pra passarem o serão à volta do lar, onde o lume estava aceso com sabugos e um pau de faia.
Naquela altura juntava-se muitos poderes de gente.
A tia Leal contava casos antigos, outros narravam coisas de arrepiar os cabelos, passados com “lambusães” e feiticeiras. A certa altura um dos vizinhos disse:
— Minha mãe contava que as feiticeiras passavam do Pico para S. Jorge numa bacia.
Uma rapariga de dezoito anos que tava a ouvir estas aventuras, exclamou:
— Quem me dera também ser feiticeira!
E o serão continuou, animado por contos e histórias vividas, até que, por volta da meia-noite, os vizinhos começaram a despedir-se e saíram.
No fim da pequena canada, (se é que aquilo se chama canada, é mais uma vereda) que tinham de passar para chegar da casa da tia Leal até ao caminho, uma mulher já madura chegou-se à rapariga e disse-lhe em voz baixa, para que mais ninguém ouvisse:
— É mesmo verdade que queres ser feiticeira?
A rapariga, que já nem se alembrava do que tinha dito “imentes” ouvia as histórias, começou a gaguejar, mas respondeu que sim. Então, como por milagre, lá foram as duas num instante, até ao Pico Ruivo, sítio que ficava a uns três quilómetros de distância e por caminhos muito somenos.
Era aí que se ajuntavam as feiticeiras, que foram chegando, pouco a pouco, vindas de todas as bandas. Já eram muitos poderes e formaram um grande grupo que começou a balhar, cumprindo, uma a uma, o ritual de beijar o cu de um bode, que era o protector delas.
Todas estavam muito satisfeitas porque era a iniciação de uma novata e o demónio, disfarçado de animal, presidia à cerimónia.
Chegou, por fim, a vez da moça que queria ser feiticeira cumprir o ritual. Sentiu nojo e gritou, arrepiada:
— Valha-me Nosso Senhor, o que eu tenho de fazer!
Mal disse estas palavras, todo o encanto se quebrou e a rapariga sentiu-se despida e atirada para uma silveira.
De madrugada passaram por ali uns homens que iam para a costa e, quando viram a rapariga despida, caída no meio dos silvados, toda arranhada e engatanhada de frio, logo a conheceram. Cobriram-na com um casaco e foram levá-la a casa.
- Source
- FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.234-235
- Place of collection
- Calheta De Nesquim, LAJES DO PICO, ILHA DO PICO (AÇORES)