APL 3007 Lenda da Mata da Rainha
A oeste de Pedrógão existiu em tempos que já lá vão um rei que tinha uma filha de rara beleza. E tão encantadora era a jovem que dois príncipes apostaram que só com ela casariam.
Um deles era alto e forte, moreno, de olhos negros. O outro, alto também mas de excessiva magreza, era loiro e tinha uns olhos verdes maravilhosos.
Encontraram-se os dois príncipes frente a frente, perto da morada da jovem princesa. Disse o loiro ao moreno:
— Porque vos esforçais? Podeis conhecer de guerras melhor do que eu... mas do coração das mulheres ninguém me leva a palma!
— Que quereis dizer com isso?
— Que li nos olhos da princesa o seu carinho por mim. Sei que ela me corresponde!
O príncipe moreno agarrou a espada, dizendo com firmeza:
— Pois aposto a minha vida em como li amor nos seus olhos quando ontem lhe falei!
O loiro teve um sorriso indefinido.
— Desafio-vos a provar o que dissestes!
— Estou pronto a satisfazer-vos. No entanto...
— No entanto… o quê?
— Pareceis-me tão ciente da vossa verdade como eu da minha. Sendo assim... talvez fosse melhor falarmos com o rei.
O jovem loiro aceitou.
— Seja! O rei decidirá por um de nós.
Foram os dois jovens falar ao rei, que os ouviu com atenção. Ambos os pretendentes lhe agradavam e a nenhum deles desejava desgostar. A firmeza com que cada um deles pugnava pela sua causa punha-o num tal embaraço que resolveu fazer o que logo à primeira vista se afigurava mais lógico: consultar a princesa sua filha. Comunicou aos dois jovens a sua ideia e pediu-lhes que voltassem no dia seguinte.
Na sala onde a jovem princesa foi ao encontro do rei seu pai estavam também dois dos seus conselheiros. Quando ela entrou, fizeram-lhe uma vénia respeitosa. A princesa correspondeu com um sorriso. E, dirigindo-se ao pai, perguntou serena:
— Senhor meu pai, dizei o que vos preocupa.
O rei olhou-a fixamente.
— Minha filha! Os dois príncipes que foram nossos hóspedes estão ambos apaixonados por vós e pediram a vossa mão. Como qualquer deles me agrada e a nenhum desejo desgostar, creio que só o vosso coração poderá escolher.
A jovem ouviu de olhos baixos o discurso do pai. Quando ele terminou, ela soltou um profundo suspiro. Depois, olhando o soberano, declarou embaraçada:
— A resposta que me pedis não saberei dá-la.
— Porquê? Acaso não reparastes bem nos príncipes?
— Reparei, sim, senhor meu pai.
— E que vos pareceram?
— Ambos me pareceram belos, valentes e galantes. Ambos demonstraram o maior afecto por mim. E os seus anseios de conquistarem a minha afeição tornaram-me feliz!
O rei olhou mais intensamente a princesa.
— Sois muito jovem, minha filha, e receio bem que não entendais o que pretendo. Ora olhai um pouco para dentro de vós. Qual dos dois pretendentes vos parece melhor? Qual vos dá mais alegria quando vos fala?
A princesa sorriu e juntou as mãos, num entusiasmo.
— Senhor, o que se passa comigo é muito estranho. Não posso ver um dos príncipes que não pense no outro. Ambos me arrebatam o coração quando de mim se abeiram.
O rei levantou-se.
— Cuidado! O que dizeis é grave! Acaso amais os dois príncipes?
A jovem tornou a baixar os olhos. O rei insistiu:
— Olhai bem para dentro de vós! Tendes de escolher um... apenas um!
Ela meneou a cabeça, sorrindo.
— Não posso, meu pai! Creio que amo os dois de igual modo.
O rei perdeu a paciência.
— O que dizeis é uma tolice! Tendes de escolher apenas um!
A princesa permaneceu em silêncio alguns momentos, enquanto os dois conselheiros se entreolhavam. Depois, erguendo o rosto, declarou:
Tenho uma ideia.
O rei interrogou, interessado:
— Qual?
— Dar uma oportunidade a ambos.
— Como?
— Permitindo que ambos disputem o meu amor. Aquele que vencer será o escolhido!
O rei suspirou. Meditou um pouco. Depois voltou a olhar a filha.
— É esse o vosso desejo?
— Sim, meu pai.
— Pois seja! Hoje mesmo mandarei que os dois jovens príncipes venham falar comigo. Ide para os vossos aposentos e aguardai!
Chamou el-rei os dois príncipes. A ideia do combate não lhe sorria. Mas uma outra havia surgido no seu espírito. Uma ideia que lhe pareceu difícil de realizar. Mas seria, talvez, a solução do seu problema político. Se a princesa se visse forçada a não aceitar nenhum deles, os príncipes não teriam de queixar-se do rei ou da princesa. O rei fez aos dois jovens, que ansiosamente o escutavam, a seguinte proposta:
— Um de vós construirá um chafariz suficiente para abastecer as minhas terras e a população que está a meu cuidado. O outro construirá uma torre que sirva de vigia a todo o meu reino. Aquele que primeiro terminar a sua obra receberá como prémio a mão de minha filha.
Os príncipes entreolharam-se, surpresos. Esperariam tudo, menos o que acabavam de ouvir. Todavia, nenhum deles sentiu desejo de se dar por vencido. E assim, o príncipe moreno afirmou com aparente serenidade:
— Senhor, eu construirei o chafariz!
Logo o outro afirmou:
— E eu erguerei a torre!
O rei replicou, contente:
— Vejo que nenhum de vós desanimou!
O moreno sorria intencionalmente, ao acrescentar:
— Apesar de saber que nestas terras não existe água, pelo menos à superfície...
O rei também sorriu, ao atalhar:
— Também não existe granito que permita erguer uma torre com segurança... Portanto, a competição não será desigual.
Numa vénia e sem fazer mais comentários, os dois príncipes despediram-se do rei. A competição ia começar...
Noite e dia as ferramentas não mais pararam. Na verdade, não constava que houvesse por ali granito bastante para levantar uma torre, nem água para abastecer um chafariz. Todavia, o amor faz milagres: com tanto afã os príncipes procuraram o que necessitavam, que acabaram por encontrar. E um belo dia, no palácio do rei, os dois jovens voltaram a ver-se frente a frente. Ambos tinham concluído a sua obra e ao mesmo tempo!
Diante de tão imprevisto resultado, a princesa pediu para falar a sós com o pai. E então perguntou:
— Senhor, porque modificastes a minha ideia? Assim, encontramo-nos como no ponto de partida.
O rei suspirou:
— Filha, tentei evitar um derramamento inútil de sangue! E o que eles fizeram é prodigioso!
— Decerto. Mas agora como vamos decidir? Não achais que neste momento é mais difícil escolher?
— Que pensais, então?
— Entregar a escolha ao destino, numa luta corpo a corpo!
— E o que primeiro for ferido… não continuará no vosso pensamento?
Decidida, a princesa retorquiu:
— Terá de ser uma luta de vida ou de morte!
Calou-se o rei. A princesa saiu do aposento e entraram os príncipes. Então el-rei comunicou-lhes que deveriam cavalgar até à mata próxima, onde encetariam uma luta da qual só um poderia voltar...
De novo os príncipes se entreolharam. Mas nenhum deles — ambos valentes — deu parte de fraco. Sem qualquer comentário, como da primeira vez, os príncipes retiraram-se numa profunda vénia.
Entretanto a jovem princesa, vendo-os cavalgar direitos à mata, sentiu que a sua vaidade a tinha levado longe demais. Agarrou uma das mãos da sua aia e suplicou:
— Depressa, vai arranjar-me um cavalo! Eu vou descer ao pátio!
A aia abriu os olhos num espanto.
— Senhora, que ides fazer?
— Impedir que eles se matem! Terei de salvá-los, custe o que custar!
Para ganhar tempo, ela própria desceu dos seus aposentos, procurou um cavalo, montou ligeira, e ligeira partiu a caminho do bosque. Quando lá chegou, porém, era já tarde. O duelo começara entre os dois príncipes e qualquer deles punha todo o seu amor, toda a sua honra de cavaleiro no gume das espadas e na destreza dos braços.
De súbito, uma voz soou:
— Parai! Não quero que se matem!
O moreno, sem interromper a luta, gritou:
— Escolhei então, Senhora!
Mas ela, chorando, confessou sincera:
— Amo-vos aos dois!
Ouvindo tal, a luta redobrou de intensidade. Alarmada, a jovem correra a interpor-se entre os dois rivais, para impedir que continuassem o combate... E foi atingida de morte por dois golpes simultâneos! Não quisera escolher entre eles, e o Destino dera-lhe a sorte que lhes fizera correr, levada pela vaidade num momento de tentação.
Atirando as espadas para longe, os dois apaixonados ajoelharam junto do corpo da princesa, cuja vida se esvaía.
O príncipe loiro agarrou-lhe uma das mãos, suplicando:
— Senhora! Senhora! Não nos abandoneis!
Desesperado, o moreno, pedia:
— Antes morra eu mil vezes, do que vós!
Com uma lágrima correndo pelo rosto, peito arfando, voz quase inaudível, a princesa ciciou:
— É Deus quem me chama! Que Ele possa perdoar-me... a vaidade que senti… com o vosso amor!... E daqui em diante... só vos peço que sejais grandes... grandes amigos!
Não responderam os príncipes. A jovem havia acabado de expirar, olhar perdido no espaço.
Fechou-lhe os olhos o príncipe loiro. Depois olhou o companheiro, que parecia esperar esse momento para se abraçarem. Declarou:
— Satisfarei o pedido da nossa rainha. Daqui em diante, tereis em mim um irmão!
O príncipe moreno, por sua vez, murmurou com voz mal segura:
— Seremos para sempre escravos da nossa rainha!
O loiro concordou:
— Sim, tendes razão. Depois de morta, ela ficará a ser a nossa rainha! E agora vamos levar ao palácio a triste nova!
Ainda hoje existe perto de Penamacor a canalização em pedra que — segundo a tradição popular — servia o chafariz. E o povo chamou a certa mata, a Mata da Rainha, perto da qual se erguiam os restos de uma velha torre: a Torre dos Namorados.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 81-85
- Place of collection
- Pedrógão De São Pedro, PENAMACOR, CASTELO BRANCO