APL 2721 Lenda da Terra do Anjo

Antes, muito antes, tudo aquilo era um imenso areal. E só pescadores ali viviam em cabanas toscas que faziam frente ao rio.
Um deles, já velho e cansado, sofria fundo desgosto. Desgosto que o matava lentamente. Desgosto que era toda a sua obsessão: o desgosto de não ter um filho...
E nas noites longas de insónia, quando se encontrava em terra, na paz da sua humilde cabana, triste e silenciosa, o pobre velho pescador elevava as suas preces fervorosas à Mãe do Céu:
— Minha Nossa Senhora, por tudo vos peço que eu possa vir a ter um filho!... Fazei, Senhora, que eu encontre uma companheira e que essa companheira me dê um filho!... Ou fazei, ao menos, Virgem Santíssima, que eu encontre um menino sem família e que para fazer desse menino o meu filho... Fazei, Senhora, o que vos peço, e eu vos darei em troca tudo o que me pedirdes!

Mas o tempo ia passando, e nada acontecia. Os amores passageiros do velho pescador resultavam inúteis para o seu sonho. Triste, cada vez mais desiludido, ele abria-se em confidências com o rio seu amigo:
— Ah, meu irmão rio... Creio que a Mãe do Céu não quer escutar, de modo algum, os meus rogos... Tu, sim, tu é que me compreendes, rio amigo e bom... As tuas águas são iguais às minhas lágrimas. Não secam, ficam sempre à mercê da vontade de Deus. E Deus não nos ouve. E Nossa Senhora não quer saber de nós...
 
Mas enganava-se. Certa manhã, ainda muito cedo, mal o Sol aparecera a dar os bons-dias à Terra, quando o velho pescador se preparava, como de costume, para descer o rio no seu barquito, tão velho e tão gasto como ele, descobriu qualquer coisa à superfície das águas que o deixou verdadeiramente atónito. Quase sem fala. Quase sem movimento.
E só daí a momentos conseguiu expandir o tumulto de alegria que lhe encharcava a alma.
— Valha-me Nossa Senhora!... Mas que estou eu a ver? Oh, meu Deus!... Pois não é mesmo uma criança… um menino recém-nascido... a boiar sobres águas... tal e qual como dizem que apareceu Moisés?...
E erguendo as mãos ao céu gritou, excitado:
— Milagre! Milagre dos Céus! Este é com certeza o filho que sempre tenho pedido a Nossa Senhora... Obrigado, Virgem Santíssima, mil vezes obrigado!
Apressou-se a retirar das águas o recém-nascido, que o olhava, sorrindo. O velho pescador abraçou-se a ele, a chorar. A chorar de alegria.
— Meu lindo menino!... Meu adorado menino Jesus!...

E desde então, conforme se tem contado e recontado pelos tempos dos tempos, o velho pescador viu realizado o mais belo sonho da sua vida: tinha um filho!
Um filho que foi crescendo, que se fez rapaz, que um dia começou também a pescar nas águas do rio Vouga...
 
— Ah, meu filho, quando te vejo crescido, forte e saudável como és, lembro-me sempre da manhã em que te encontrei, a boiar aqui mesmo no rio…
O rapaz olhava-o admirado. Admirado e duvidoso.
— Mas eu apareci assim sem mais nem menos, meu pai?
O velho nem lhe respondia. Levantava os olhos ao céu e repetia o mesmo agradecimento de sempre:
— Foi um milagre! Um verdadeiro milagre de Nossa Senhora!

Mas um dia, o rapaz, hesita que hesita, resolveu pôr abertamente o problema que lhe torturava o cérebro.
— Se o pai não se aborrece, eu gostava… enfim, eu queria saber… quem foi minha mãe… como se chamava ela… onde vivia?...
O velho pescador baixou a cabeça. Apertou as mãos com força. Os seus olhos humedeceram-se.
— Olha, meu filho tenho perguntado isso a mim próprio, muitas vezes… e nunca encontrei resposta!
Calaram-se. Depois, vagamente, soturnamente, o velho repetiu num eco!
— Nunca encontrei resposta!
Olhou o filho. Viu-o triste, abatido, distante. Teve medo. Medo de que ele se afastasse, que fugisse. Aflito, buscou uma ideia. Como quem busca, uma bóia de salvação.
— Talvez o senhor Prior da cidade nos saiba dizer alguma coisa... Vamos lá hoje... Queres?
O rapaz voltou-se para ele. Parecia outro. Decidido e satisfeito, respondeu:
— Quero, sim, meu pai. Quero saber a verdade!

E nesse mesmo dia, depois de arrumados os apetrechos da pesca, lá foram de longada até à cidade, à procura do senhor Prior, que tinha fama de saber muitas coisas que os outros homens não sabiam.
Mas, diante do estranho problema posto pelo velho pescador e por seu filho, o senhor Prior limitou-se a sacudir a cabeça e a dizer:
— São desígnios do Altíssimo, meus filhos!... Que valemos nós, míseros humanos, para querermos descobrir os segredos de Deus?
Levou-os até à porta, de mansinho, e despediu-os com um sorriso de bondade.
— Segui a vossa vida e não penseis mais nisso. Deus e Sua Santa Mãe lá sabem porque resolveram assim...
E o velho pescador e o seu filho voltaram à cabana tosca do areal. Agora ainda mais tristes, mais pensativos. Sem coragem para voltar a falar no assunto...
 
Até que uma terrível epidemia caiu sobre todas as terras daquela região. O próprio rio transformou-se por completo, revolvendo-se em fúrias insuspeitadas e invadindo os campos, numa ânsia brutal de destruição.
Parecia um castigo ou uma praga. A tranquilidade desapareceu, engolida pelo vapor. E a epidemia foi alastrando cada vez mais cruel. Cada vez mais mortífera.
A cabana tosca do velho pescador não escapou. O rapaz, que fizera prodígios para acudir aos que necessitavam, foi tocado também pela marca sinistra. Por tentar salvar a vida dos outros, a sua vida ficou em perigo.
Desesperado, o pobre velho gemia, à beira da enxerga onde o rapaz delirava com febre:
— Filho! Meu filho... porque não seguiste os meus conselhos... porque não te afastaste dos outros que já estavam contaminados?...
Com voz débil, arfando pesadamente, o rapaz somente podia dizer:
— Pai... era necessário salvá-los... Eu tinha de os salvar, meu pai!
Mas o velho pescador mal o ouvia. Ele gastava-se em preces e em interrogações. Interrogações que lhe doíam como se fossem chagas abertas.
— E agora que vou eu fazer?... Agora que tu caíste também, que posso eu fazer?... Que devo eu fazer, meu Deus...
 
Passou por ali o senhor Prior, na sua visita de conforto e alento aos que sofriam.
— Há que ter resignação, meus filhos!... Deus assim o quer... Lá tem as suas razões!
O velho pescador, porém, martelava insistentemente as mesmas palavras:
— Que devo eu fazer, senhor Prior? Que posso eu fazer?
O sacerdote olhou-o fixamente. Colocou-lhe as mãos sobre os ombros, a acalmá-lo.
— Tem fé, homem!... Confia em Nossa Senhora, a quem tu pediste tanto para ter um filho...
E assim fez o pobre pescador. Logo que o padre saiu, continuando a sua viagem de calvário, ele caiu de joelhos junto da enxerga, onde o filho parecia cada vez pior.
De mãos apertadas com quanta força tinha, o velho pai gritou:
— Minha Nossa Senhora, valei-me!... Dai-me um sinal da Vossa presença!

E diz-se que, nesse mesmo instante, a porta da cabana tosca se abriu de par em par, e surgiu uma estranha figura de mulher envolta em neve. Deixando um rasto de luz, ela avançou devagar e disse apenas:
— Aqui estou.
O pobre velho pescador escancarou os olhos cheios de espanto.
— Mas... Senhora... quem sois vós?
E ela respondeu com uma pergunta:
— Não chamaste por mim?
O velho estremeceu.
— Chamei, sim... chamei... Mas... mas não esperava… que Vós aparecêsseis assim... toda coberta de neve...
Ela sorriu. E quando sorriu a claridade tornou-se maior.
— É a neve da Natureza, meu bom devoto!
O velho gaguejou nova pergunta:
— E... que vindes fazer, Senhora?
— Venho buscar o teu filho.
Calma, segura, doce mas imperativa, a resposta fê-lo desequilibrar-se e ficar prostrado aos pés de Nossa Senhora. Mesmo assim gritou, num acesso de revolta.
— Como?... Que dizeis?
Com um simples gesto, ela ergueu-o suavemente. E suavemente lhe falou:
— Sim, venho buscar o teu filho... Não te lembras já da tua promessa?... Pediste-me para eu te dar o filho que querias... E tu me darias depois o que eu quisesse... Recordas-te?
O velho pescador fez que sim com a cabeça.
— Pois eu venho buscar o teu filho... Ele vai para a Corte dos Céus, onde será um dos meus anjos.
— O meu filho, Senhora?
Ela sorriu de novo. E de novo a luz se tomou mais forte.
— Sim, o teu filho, bom velho pescador... Ele ficará a ser o Anjo da Guarda desta terra!
O olhar do pobre homem balançou entre a figura da Senhora e a enxerga onde mal distinguia a figura do filho, também a desfazer-se em luz. Compreendeu então que já não lhe pertencia. E disse, num tom de resignação que mais parecia chorado que falado:
— Pois levai-o, Senhora… já que o quereis... Vós mo destes, vós mo tirais... Anjo seja para todo o sempre! Anjo seja!

Rapidamente a notícia se propagou por todas as terras em redor. A epidemia começou a debelar-se, também com espantosa rapidez. E tal facto atribuiu-se desde logo à intervenção do filho do pescador, agora e para sempre anjo da guarda daquele lugar, junto de Nossa Senhora.
Aliás, o pobre pai não se cansava de repetir.
— Acreditai, meus amigos... Foi Nossa Senhora das Neves que o veio buscar... Nossa Senhora das Neves! E ele agora está no Céu... Anjo seja o meu filho… o meu querido filho!... Anjo seja!

E, aos poucos, a mesma ideia foi-se enraizando no espírito das gentes que começaram a correr àquele local, como terra abençoada por Nossa Senhora. Assim nasceu uma povoação bonita e progressiva, onde fora apenas um areal imenso. E desde logo a nova terra ficou a chamar-se a Terra do Anjo Seja, até que se transformou na actual Angeja, a Terra do Anjo, ali, na margem direita do rio Vouga, apenas a nove quilómetros da estação de Aveiro.

 

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 259-263
Place of collection
Angeja, ALBERGARIA-A-VELHA, AVEIRO
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography