APL 3282 Da milagrosa Imagem da Senhora das Necessidades de Alcantara
Pelos annos de mil & quinhentos, & noventa & nove, ouve na Cidade de Lisboa huma taõ terrivel peste, & mortal contagio, que delle morriaõ cada dia setecentas, & mais pessoas; por cuja causa, todos os que puderaõ fugir da Cidade a lugares sadios, & livres deste cruel acoute do Ceo o fizeraõ; entre estes havia dous casados em a Freguesia dos Anjos, & ambos tecelões, os quaes com o temor de que aquella cruel parca lhes tirasse as vidas, como havia feito a muitos dos seus resenhos, deixando o seu pobre cabedal se retiràraõ à Ericeira, aonda assistiraõ por alguns tempos. Frequentavaõ estes dous consortes huma Ermida de Nossa Senhora, que em algũ tempo devia tambem ser casa da Saude, & a Santa Imagem, que nella se venerava, era invocada tambem com o titulo da Saude: (feliz presagio de que lha havia de conservar illesa, para com ella a servirem) devia ser a Ermida pobre, & estava em parte muito solitaria. Aqui hiaõ os dous casados a encomendarse à Senhora, que era Imagem de grande fermosura, & devoçaõ, se bem mal assistida, & servida com pouco culto, & muita pobreza; & por esta causa lhe fizeraõ voto, que se os livrasse do contagio, a serviriaõ, & seriaõ seus perpetuos ermitães.
Passada aquella tribulaçaõ, & serenados os ares daquella maligna infecçaõ, se resolvèraõ a voltar à sua terra. Lembravaõse do voto, & desejando cumprilo, assentàraõ consigo levar a Senhora, para que em Lisboa lhe pudessem fazer huma Ermida onde fosse venerada; & para a poderem fazer mais a seu salvo, a recolhèraõ em hum saco, para assim disfarçarem (sem duvida) melhor o furto, & a puzeraõ em hum jumento, trazendoa a ermitoa diante de si; & com esta perola preciosa, & mais rica que todas as que se colhem nos rios da costa da Pescaria em o Oriente, se sahiraõ das prayas da Ericeira, & se vieraõ de mandar outra vez a Cidade de Lisboa, assentando em os arrebaldes do Occidente aonde chamaõ a Pampulha. Aqui (ao que se entende movidos por Deos, que assim o dispunha, para mayor manifestaçaõ das suas misericordias) escolhèraõ o sitio de Alcantara, em que ao presente he venerada; no qual morava huma devota Matrona chamada Anna de Gouvea; buscáraõna os dous consortes, & deramlhe conta do seu intento, pedindolhe para execuçaõ delle, fosse servida de lhes dar um pedaço de chaõ em que pudessem levantar à Senhora huma Ermida; & como era piedosa, veyo facilmente em tudo oq eu lhe pediaõ; & muito melhor o faria vendo a belleza, & fermosura da Santa Imagem.
Alcançada a licença tratàraõ de lhe erigir casa, que seria sem duvida de esmolas; & ainda assim sahio bem pequena, & limitada. Feita a Ermida, collocáraõ nella a Santa Imagem; & deliberando no titulo que lhe haviaõ de dar, achàraõ que seria muito proprio o das Necessidades; & foraõ tantas as que logo remediou, & os milagres que fez, que podemos crer foy ordenado tudo pelo Ceo. À vista das maravilhas que Deos alli obrava, começou a concorrer a gente, & tambem algumas esmolas, com que os pobres Ermitães remediavaõ a si, & acudiaõ ao altar, & à alampada da Senhora. Entre os milagres que o Senhor alli obrou, & o primeiro que se pintou, & que ainda hoje existe pendurado na Capella, he este que agora referirey. Havia em Lisboa hum tofador de panos, chamado Antonio Rodrigues; tinha este huma filha menina de sete annos de idade; a esta lhe deu em o de 1610. hum acidente de parlesia taõ cruel, que a menina ficou naõ só tolhida, mas sem falla; & assim perseverou por espaço de seis meses com grande magoa de seus pays: no fim deste tempo, parece lhe appareceo a Senhora, & lhe fallou, mandandolhe dissesse a seus pays, a levassem a Nossa Senhora das Necessidades de Alcantara; assim o fez, & foy a primeira vez que a ouvirao fallar depois do accidente: mas dito isto, ficou muda como até alli estivera. A o outro dia resolveraõ os pays consigo irem à Senhora, a pedirlhe as melhoras de sua filha; levaraõna nos braços, & chegando à porta da Ermida da Senhora, & reconhecendo que mostrava algum alento, a puzeraõ no chaõ, & ella se levantou, & foy pelos seus pès atè o altar da Senhora, aonde acabou de receber perfeita saude, & a sua falla.
Este milagre (que por incuria, & descuido proprio da nossa Naçaõ se naõ autenticou) fez com que se accendesse com mais fervor a devoçaõ para com a Senhora. Outra maravilha succedeo logo depois desta; & foy, que vindo huma mulher muy lastimada a encomendarse à Senhora, & a pedirlhe remedio em huma grande necessidade em que se via; & pedindo à Ermitoa lhe quizesse abrir a Ermida para molhar no azeite da alampada hum lenço, nunca a Ermitoa o quiz fazer, desculpandose com estar muito occupada, & que naõ podia. A vista disto se foy a mulher, & posta de joelhos à grade da janelinha que entaõ tinha, & ainda agora tem, começou a chorar, & a pedir à Senhora lhe valesse. Reparou esta, que a alampada se havia apagado: & assim voltou outra vez à Ermitoa dizerlho, & que a fosse accender, para que a Senhora naõ estivesse sem luz; o que ella logo fez, dizendo, que só o ir accender a alampada a obrigaria a deixar o q’ fazia. Foy, & abrio a porta, & depois de entrarem ambas, viraõ accenderse a alampada por si mesma (tanto como isto he a piedade daquella misericordiosa Mãy, em beneficio daquelles, que com devoçaõ, & fé a buscaõ em suas necessidades; pois para que aquella sua devota se naõ fosse desconsolada, dispoz tudo isto) & que o azeite della começava a ferver em tal fórma, que derramandose do vidro, & depois da taça da mesma alampada, que brevemente encheo, se começou a derramar na Ermida em tanta quantidade, que correo até a porta em rego.
Muito se celebrou este milagre, mas tambem se naõ autenticou; contudo de entaõ ate hoje se faz todos os annos huma festa à Senhora em meoria delle na primeira oitava do Espirito Santo, que se intitula a festa do milagre do azeite, & no Sermaõ se refere sempre a maravilha.
- Source
- AGOSTINHO DE SANTA MARIA, Fr. Santuário Mariano Alcalá, Imperitura, 2007 [1711] , p.Tomo I, Título XLIX, pp. 243-246
- Place of collection
- Alcântara, LISBOA, LISBOA