APL 873 A Velha de Bico

O Sr. Emílio, em tempos de juventude, passara por muitas terras como pintor. Ia percorrendo as freguesias de Paredes de Coura pintando ora casas ora capelas, sempre preocupado em fazer o melhor serviço, para agrado daqueles que requisitavam os seus serviços.
 Mas, por obra do mafarrico, com frequência era presenteado com a visita das bruxas! Umas vezes ele próprio as via, outras eram os vizinhos que sofriam a suas perversidades. Na tenra idade, uma sua vizinha, a ti Mariquinhas, bem lhe dizia que até algumas mouras encantadas eram feiticeiras, mas ele não acreditava.
 - Isso não existe, Ti Mariquinhas — afirmava ele a pé junto.
 - Ai não? — fixava-lhe os olhos a pobre vizinha. - Havias de ver o que aconteceu ao meu tio António! Uma altura, muito cedo, foi ele soltar uma água d’uns poços, numa Quinta que trazíamos, e apareceram-lhe umas meninas a dançar diante dele! Diante daquele espectáculo, ele assustou-se, mas uma veio pegar-lhe na mão e levou-o para o meio delas. Então uma delas agarrou-o, e desceu-lhe as calças, puxando-as para baixo. Trouxe-o assim até àquela poça, à beira da estrada, e «chapolou-o» lá! No fim, pô-lo na beira da estrada, e ele veio-se embora! Chegou a casa a tremer. “Que tens António?... o que é que tens tu, homem de Deus?” E ele contou-me tudo o que lhe fizeram. Um sobrinho nosso, perguntou-lhe: “Foi mesmo verdade isso?” “Foi menino, foi verdade! Deus queira que não te aconteça o mesmo a ti quando fores grande!”
 Neste episódio pensava o pobre do Emílio quando estava, já homem feito, na casa de um lavrador. Encontrava-se ali há alguns dias, a trabalhar como pintor. As raparigas da casa não paravam de lhe falar de feiticeiras:
 - Ai Emílio se tu soubesses o que elas me fizeram — dizia uma. Acrescentava logo a outra: - Tinha uma roupa ali no soalheiro, e tu nem sabes o que aconteceu! E lá foram elas relatando fizeram isto... fizeram aquilo...”
 O Emílio agradado pela companhia, lá ia fazendo coro com elas e, meio a brincar meio a sério, acrescentou:
 - Olhai que quem tiver esta noite roupa estendida nos arames, fora da porta, vai ver que elas vão fazer mal!
 No dia seguinte, o pobre do pintor nem queria acreditar! As suas calças apareceram cortadas! Com sete facadas, cortaram as perneiras e tudo o que era na frente!
 - Ó Deolinda — chamava agora por uma das raparigas. Arre bruxa, arre diabo! Olha para as minhas calças!
 - Ai Jesus! Foi de termos falado nelas! Elas não gostam que falem delas!
 A partir desse dia, Emílio nem queria ouvir sequer mencionar o nome «bruxa», quanto mais contar-lhes as façanhas! Mas senão as chamava, elas vinham a ele! Um dia, estava ele a pintar a capela de S. Bento, em Bico, e chegara a hora de descansar para o almoço. Ainda tinha acabado de descer, para se sentar numa pequena pedra ali ao lado, quando viu vir na sua direcção a Sr.ª Casimira.
 A tia Casimira era uma mulher muito velha, feia, magra e má! No seu íntimo, o Emílio sentiu que lhe acabara de chegar alguma desgraça, e disse muito baixinho: “tens tudo de mau, o Senhor me perdoe!”. O povo cismava com ela. Ninguém a queria ver por perto! E lá veio ela:
 - Ó Emílio..., é a tia Casimira!
 - Estou a descansar um bocadinho, Sra. Casimira — respondeu, tentando não provocar a mulher.
 Mas ela em vez de continuar o seu caminho, como seria do agrado do pobre homem, veio sentar-se mesmo ali ao lado.
 - Olha, vim dar uma voltinha! A minha nora, agora, só quer que eu coma migas. E eu que gosto de um bocadinho de café! Vou ali à loja buscar umas pedrinhas de açúcar, e... réu catrapéu, ficou ali a falar sem parar...
 Eis então que aparece um homem, com um carro de vacas carregado. Vinha o pobre do homem descansado e com o gado sossegado, quando, ao dar a volta, a mulher deu com os olhos nas vacas.
 Ninguém queria acreditar no que estava a ver! As vacas começaram aos saltos, e fugiram com o carro carregado, pelo caminho acima, virando toda a carga! O pobre do lavrador, vendo o que acontecera às vacas, voltou-se para a velha, gritando:
 - Ó sua velha! Sua bruxa!
 O Emílio só teve tempo de se levantar e colocar no meio dos dois.
 - Zé, olha lá o que fazes! Olha lá o que fazes, homem...! Ainda matas a mulher!
 Veio a vizinhança toda, chamada pela gritaria. A tia Casimira aproveitou a confusão para fugir para casa, enquanto alguns dos presentes tentavam segurar as vacas, que mais pareciam ter besouros a picar nelas.
 No fim, alguém lembrou: - olha Emílio, é dos olhos! Era ela moça, segundo dizem, e já fazia mal com os olhos!
 Emílio não esquecia estas coisas, por mais tempo que passasse, nem daquilo que acontecia aos afilhados daqueles que se enganavam no credo! Mas isso eram outras histórias. Agora havia que fazer o seu trabalho, na graça de Deus, e sem conversas que provocassem os achacados desses males.

Source
CAMPELO, Álvaro Lendas do Vale do Minho , Associação de Municípios do Vale do Minho, 2002 , p.129-131
Place of collection
PAREDES DE COURA, VIANA DO CASTELO
Informant
Emílio Barreiro (M), 96 y.o., PAREDES DE COURA (VIANA DO CASTELO),
Narrative
When
20 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography