APL 229 Lenda de Gaia
Ao aludir a narrações lendárias que tiveram curso nas terras da velha Calle não podemos deixar de fazer referência à famosa Lenda de Gaia que serviu de fundo a um poema de Almeida Garrett.
Existe no lugar do Castelo um grande morro fronteiro a Miragaia, onde em tempos se fixou um castro, que veio a ser castelo árabe, onde se diz ter vivido um dos reis de Leão, porventura o da lenda.
No referido lugar existe uma rua com o nome do Rei Ramiro e também uma fonte, embora mudada de lugar.
Há ainda uma quinta magnífica, muito arborizada, com um pequeno palácio e uma torre antiga, outrora designada como Paço de D. Ramiro.
Mas, o facto militar que parece certo foi a tomada do castelo numa expedição marítima de surpresa, quando estava ocupado por um rei mouro, levada a cabo por cavaleiros cristãos.
Todo o resto deve constituir reminiscência de uma lenda amorosa de Salomão, que teve certa popularidade na Europa e tomou vulto através dos ciclos cavalheirescos medievais.
Até chegar à península tal narração deve ter sido adulterada pelas tradições dos povos que a transmitiram e possivelmente adaptaram.
Mas, esta lenda do Rei Ramiro, acabou por ter depois grande divulgação.
Na Portugália Monumenta Histórica encontramos narrações desse conto ou espécie de romance.
E pode ver-se que, da recolha da 1ª versão para a 2ª, se alterou bastante o tema, aparecendo com mais detalhes na última.
O Rei Ramiro era casado com unia rainha (Gaia) de que teve um filho, D. Ordonho.
Um rei mouro, Abencadão, foi raptar um dia a rainha em Salvaterra, quando Ramiro era rei das Astúrias.
Abencadão trouxe a raptada para um castelo existente no lugar de Gaia e, quando Ramiro regressou a casa e não encontrou a mulher, teve nisso muito desgosto.
Combinou com o filho e outros vassalos realizar uma expedição para libertar a rainha e castigar o mouro raptor.
Embarcados em naves vieram até à Afurada, cobertos com panos verdes para se confundirem com as árvores das margens.
Fixaram um ardil para vencer Abencadão e, no seu desenvolvimento, D. Ramiro disfarçou-se de romeiro, levando com ele, ocultas, a sua espada e uma buzina.
Estabeleceu com os seus companheiros de armas que acorressem ao castelo quando o ouvissem tocar a buzina. Seguindo depois pela ribeira e por entre as árvores, deixou dentro das naves apenas! os homens precisos para as fazerem navegar.
Ramiro quedou-se junto de uma fonte, perto do castelo.
Uma donzela que servia a rainha, Ortiga, vejo pela manhã à fonte buscar água de mando dela.
Aí, encontrou o romeiro, sem o reconhecer. Ele pediu-lhe água para beber, desejo que ela satisfez.
Aproveitando a oportunidade, Ramiro lançou no recipiente da água a metade de um anel que havia em tempos repartido com a rainha.
Quando Ortiga deitava água nas mãos da rainha, nelas caiu a metade do anel.
A rainha, confundida, quis saber que pessoa tinha a donzela encontrado.
Ortiga negou e a rainha afirmava que ela mentia e, com insistência, acabou a serviçal por relatar que tinha encontrado um mouro doente que lhe pedira água.
A rainha ordenou que o procurasse e lho trouxesse à sua presença, o que foi cumprido.
Ao ver o romeiro, a rainha inquiriu das razões que o conduziram até lá.
Ele esclareceu que fora o amor dela.
Então, a rainha mandou-o recolher na câmara, até que Abencadão chegou.
Perguntou-lhe a rainha:
— Se aqui tivesses: D. Rarniro que lhe fazias?
Respondeu o rei mouro:
— O que ele me faria. Matava-o.
A rainha intimou Ortiga a apresentar D. Ramiro, trazendo-o da câmara.
O rei mouro estabeleceu depois com D. Ramiro o seguinte diálogo:
— És tu o rei D. Ramiro?
— Sou eu.
— A que vieste aqui?
— Vim ver a minha mulher que me roubaste, traiçoeiramente... Tu tinhas tréguas comigo e não suspeitava de ti.
Abencadão retorquiu:
— Vieste para morrer, mas. quero perguntar-te: Se me tivesses em Salvaterra que morte me darias?
Disse D. Ramiro:
— Dava-te um capão assado e uma regueifa com um copo de vinho. Depois abria as portas do castelo e chamaria todas as gentes para verem como morrerias. Fazia-te subir a um padrão e tocar uma buzina até que perdesses o fôlego.
Abencadão decretou:
— É essa a morte que te quero dar.
Cumprido todo o programa, o rei Ramiro, do alto do castelo, começou a tocar o corno.
Acorreram seu filho Ordonho e os outros parceiros de armas, entrando no castelo sem dificuldade em vista das portas estarem franqueadas.
À chegada dos expedicionários, Ramiro lançou mão da sua espada para a eles se aliar na luta para liquidação dos mouros, surpreendidos com o golpe. Não ficou pedra sobre pedra.
D. Ramiro levou sua mulher para as barcas, com as damas que a serviam. Lá chegado, deitou-se a dormir no regaço da rainha para se refazer daquelas emoções.
A rainha, quando as naves se afastavam, começou a chorar olhando o castelo onde fora feliz.
As lágrimas, caindo no rosto de Ramiro, despertaram-no.
Perguntou ele porque chorava ela, vindo a saber que era por amor do bom mouro que tinha sido morto.
Ordonho, que ouviu a resposta, disse ao pai que não a levariam e Ramiro, atando-lhe uma pedra ao pescoço, lançou-a às águas (Mira-Gaia).
O rei cristão acabou por baptizar Ortiga e veio a casar com ela, pondo-lhe o nome de Aldara, nascendo desse enlace um filho, Alboazar. Eis em resumo os traços fundamentais da lenda que ainda hoje perdura e anda mesmo no brasão de armas da terra.
- Source
- VALLE, Carlos Revista de Etnografia, Tradições Populares de Vila Nova de Gaia , Junta Distrital do Porto, 1965 , p.132-135
- Place of collection
- VILA NOVA DE GAIA, PORTO