APL 73 O poço da liteira
Quem a deshoras passar pela veiga de Fontão, e ouvir de espaço a espaço barulho soturno, afaste-se para longe: são as ondas do inferno, encapellando-se e refervendo lá dentro, no fundo de um poço rodeado de limos, tão escorregadios como as paixões dos homens. Aquella cruz de pedra que alveja proxima serve a relembrar tristissimo caso, e quem sabe se para conservar em respeito os vagalhões no infernal precipicio.
Viajeiro que ides percorrendo a margem direita do rio Lima, fitai os olhos na cruz e segui avante.
*
Ha muitos annos chegára a Vianna um rico e esbelto moço, de que ninguem sabia a origem. Não se atreveram a perguntar-lha os mecanicos, deslumbrados com tão desusadas pompas; não a indagaram as donzellas da mais pura nobreza da villa, que enfeiticára logo com requintes de galanteio, a que não estavam acostumadas as filhas dos heroicos navegadores do novo mundo; e os cavalleiros seus irmãos, motejando dos escrupulos dos pais, que não encontravam nos livros de linhagens o appellido do avendiço, porfiavam em se apresentar mais galhardos e tafues nas cavalhadas e torneios que o descontiecido Alvaro Peres inventava para os attrahir.
O velho Ruy de Sousa fôra talvez unico em não acceitar os reiterados convites do aventureiro, nem lhe franquear entrada no seu palacio, em que vivia com sua filha D. Mecia, a mais bella e recatada fidalga de Entre Douro e Minho, e, talvez por isso ou pelo seu nome e haveres, a mais pretendida tambem.
*
É passado pouco mais de um anno. Tocára já a silencio no convento de Sant’Anna, e comtudo, se alguma freira mais ousada parasse junto da cella da abbadessa, não precisaria escutar muito para logo perceber que o salutar preceito não fôra guardado aquella noite pela que mais obrigada era a respeital-o. Mas, se levada pelo mau espirito da curiosidade apurasse o ouvido e espreitasse para dentro da estreita quadra, perdoaria de certo a falta, olhando á gravidade do motivo. A respeitavel prelada, D. Guiomar de Sousa, ora severamente reprehendia, ora afagava com brandura sua sobrinha Mecia, que ajoelhada a seus pés lhe contava entre lagrimas e soluços o martyrio do noviciado e os escrupulos que dia a dia mais a enredavam. A abbadesa conhecia a historia d’aquella desventura; segredra-lha seu irmão, em demorado colloquio na grade do mosteiro, e fôra ella quem no convencêra a atalhar quanto antes o grande incendio que Satanaz havia ateado no coração da donzella, desde que em má hora avistára Alvaro Peres. Não teve Ruy de Sousa muita dificuldade em persuadir a filha a entrar em religião quando esta soube a terrivel verdade: enamorára-se de um judeu!
Resignou-se a desditosa moça a trocar os sonhos de vida que o primeiro amor lhe entrelaçára na mente, pela contemplação de uma boa morte, — o grande ideal dos conventos. A imagem do homem a quem dera a sua alma inteira compozera-a ella com taes primores de traço e colorido que não podia antepôr-lhe a de outrem que não fosse a do Esposo celestial. Tomou pois o veo de noviça, e foi o modelo das companheiras na apparente obediencia á regra; comtudo — dizia-o ella agora a sua tia — nem uma só vez na oração mental deixára de lhe parecer que era a Alvaro e não a Jesus que dirigia as suas supplicas de desposada! Ia amanhecer dentro em breve o dia da sua profissão, e naquella tarde fôra tão horrivel a tentação do inimigo que, passando ás Ave-Marias pelo ante-coro, imaginára enxergar no vão de uma janella o vulto do infiel. Depois d’essa visão aterradora decidira-se a falar a sua tia, pedindo conselho para tão repetidos assaltos de Satanaz. Consolou D. Guiomar a attribulada benedictina, propondo-lhe exemplos de grandes santas, que tanto mais caminhavam na senda espiritual, quanto o anjo das trevas mais se empenhava em perseguil-as; e industriou-a com alguns botes certeiros, só conhecidos das almas longamente experimentadas naquellas luctas entre o embuste e a piedade.
*
Mecia, confortada e cheia de animo, resolveu-se a passar toda a noite em oração; como os cavalleiros de sua familia quiz velar suas armas; foi para o côro Haviam-se acabado todos os receios e hesitações: d’ahi a poucas horas seria esposa do Senhor. É verdade que não teria os grandes contentamentos que scismára, nem os triumphos que lhe promettia a sua belleza sem par; viveria porém tranquilla esperando a salvação eterna …
Pareceu-lhe ouvir leve ruido; sobresaltou-se; mas, olhando em volta, nada viu.
Era o vento que entrava pelas frinchas das janellas, o vento que zinia lá fóra em tempestade assustadora. Como ella se sentia bem naquelle retiro do mundo! E a sua phantasia de nervosa levou-a a comparar o horrivel concerto da natureza livre com a placidez do claustro, — bem frisante contraste! Assim eram o coração da mulher do seculo e o da religiosa: as alegrias ruidosas da primeira assemilhavam-se áquelles relampagos brilhantissimos, intervallados de longos espaços negros com trovões medonhos; a vida compassada da freira tinha o que quer que fosse da luz tenue, mas serena e constante, da alampada que alumiava a igreja…
Novo rumor ainda, e agora figurou-se-lhe ver mexer a cortina que encerrava um grande crucifixo de marfim.
Ergueu-se muito assustada; mas, recuperando animo, approximou-se resoluta da cortina e abriu-a…
A luz de relâmpago, que nesse momento illuminou o templo, viu Alvaro Peres, saindo placidamente do esconderijo para o meio do côro. Espavorida e suppondo visão infernal, abraçou-se ao crucifixo, ficando ali immovel a fitar a sacrilega apparição.
Se aquelles rapidos momentos podessem ter durado seculos, a lenda haver-se-ia transformado na mais bella historia de um milagre de estatuaria, e a christandade iria ainda hoje em piedosa romaria venerar a celeste imagem da Virgem angustiada!
Mas em frente d’aquelle finissimo e bem esculpturado marfim não estava um artista; era um judeu perverso quem estava ali. Foi por isso que este se atreveu a cortar o silencio, em vez de ajoelhar e converter-se.
— Venho arrancai-a d’este sepulchro— disse, e, enlaçando a cintura da donzella, procurou erguel-a da postura humilde e supplicante. Não resistiu Mecia á seductora pressão, que a pouco e pouco a foi chamando á realidade; e, ao desabraçar-se do crucifixo, este caíu, despedaçando-se com enorme estrondo. Uma das estatuas volvêra a ser carne, a outra partia-se para sempre!
A noviça, acordando de vez do seu pasmo, apertou febrilmente o braço do mancebo, e, apontando para os destroços, exclamou:
— Os meus desposorios com Deus estão desfeitos... Cumpra-se a minha sina... leva-me, leva-me já, e eu serei o que tu quizeres que eu seja!...
* *
D’ahi a poucas horas galopavam em todas as direcções soldados de cavallaria, procurando os fugitivos.
Ao troço que seguiu o caminho de Ponte do Lima, entrando na veiga de Fontão, pareceu-lhe divisar uma liteira, que deveria andar perdida no meio das extensas leiras; dirigiu os cavallos para aquelle ponto desviado, mas, estacando de repente, empinaram-se amedrontados os mesmos brutos, ouvindo tremenda praga saida da liteira. Qual foi, nunca se pôde saber; os que a ouviram, jamais quizeram repetil-a.
Os cavalleiros viram abrir-se a terra lançando labaredas, e depois uma grande fumarada com cheiro nauseabundo. Cravaram os acicates, e de salto chegaram ao sitio.
A liteira desapparecêra nas profundezas da terra, e á superficie ficára para signal o charco immundo que hoje se conserva.
Um dos homens-de-armas apeiou e seguiu afoito por entre os limos. Instantes depois voltava, trazendo o veo da noviça.
O symbolo da castidade não encontrára logar entre as chammas eternas!
- Source
- BERTIANDOS, Conde de Lendas , Hospital Conde de Bertiandos, 1993 [1898] , p.127-135
- Place of collection
- PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
- Collector
- Conde de Bertiandos (M)