APL 1645 [O rapaz possesso]
Um rapaz de Santa Leocádia, caixeiro em Guimarães, vinha já depois das Trindades pelo Cano e vendo uma figura estranha em cima do tanque com uma luz na mão, atirou-lhe uma pedrada. A figura desapareceu dando um estoiro. Desde esse momento o rapaz, que teria cerca de doze anos, tornou-se endemoninhado. O patrão não o aturava; o pai veio ver se o corrigia, mas ele ameaçou-o, e quanto mais o pai lhe batia, ele declarava que mais forte se sentia para o matar. O pai teve de retirá-lo de casa do patrão e levá-lo para a sua. Mas ele quebrava a louça, fugia para os montes, como uma besta brava e defendia-se com unhas e dentes contra os que queriam trazê-lo de lá. Chamou-se um homem de Garfe, perito em cozer os corpos abertos. O rapaz pressentiu a presença do homem, mas por fim foi operado. O homem leu-lhe o livro de S. Cipriano; acabou por “fechar-lhe o corpo” com uma chave do Sacrário (há muitas; compram-se chaves que sirvam num Sacrário; pede-se a um padre que abra e feche com elas três (?) vezes o Sacrário, e eis como não faltam as tais chaves), e disse ao rapaz — i.e. ao espírito — que lhe havia de dar uma prova de que saíra daquele corpo. O homem atirou então uma coisa ao lume que deu um estoiro.
Disse ele que, se o rapaz, em vez de atirar com a pedra à figura que viu sobre o tanque a atirasse para diante de si, dizendo:
“Vai pedra no ar
Leva essa alma perdida!
Que me quer matar.”
— nada lhe aconteceria.
A moléstia do rapaz tornou-se contagiosa, pois que uma rapariga de Santa Leocádia apareceu logo depois dele no mesmo estado. Quando o benzedor “fechou o corpo” do rapaz, quiseram que ele fizesse o mesmo à rapariga; mas esta fugiu e ele declarou que não podia fechar dois corpos no mesmo dia.
- Source
- SARMENTO, Francisco Martins Antígua, Tradições e Contos Populares , Sociedade Martins Sarmento, 1998 , p.139-140
- Place of collection
- Briteiros (Santa Leocádia), GUIMARÃES, BRAGA