APL 2847 Lenda da Serra de Monchique

Em pleno século XIV e após a conquista do Algarve, o povo vivia inseguro nas terras algarvias, pois contavam-se constantemente as histórias mais fantásticas a respeito dos mouros que ali haviam ficado escondidos ou das suas almas penadas. De todo este emaranhado de histórias resultaram algumas lendas bastante curiosas. Esta é a lenda da moura da Serra de Monchique.

A tarde começara a cair, e com ela o calor que abrasara durante o dia. A terra continuava quente e a água morna. Nem a brisa soprava. Na serra, o silêncio assentara arraiais.
António, jovem pescador que sofrera um naufrágio e ficara algum tempo em terra a recompor-se, subia num vagar amolecido. Caminhava ao acaso, esquecido que teria de voltar para trás e que a noite poderia surpreendê-lo no caminho. Ia de olhos perdidos na linha arredondada do horizonte. Sonhava coisas fantásticas e confusas. De súbito, estacou. Não foi o medo que o fez parar. Antes o receio de que a sua presença pusesse em fuga a linda aparição. Junto a um rochedo, uma jovem toda vestida de branco parecia, também, contemplar a paisagem. Estiveram assim, estáticos, alguns segundos. Depois, a jovem teve como que a percepção de que estava a ser observada e voltou-se. Tinha o rosto descoberto e era lindíssima. Deu um grito abafado e velou o rosto, num movimento rápido. Depois falou:
— Aproxima-te! Quero ver-te bem, já que entraste nos meus domínios.
O rapaz chegou junto dela. Olhava-a com deslumbramento. E pediu:
— Não podes voltar a descobrir o rosto?
Ela respondeu numa voz suave:
— Hoje, não. Mas tu hás-de vir aqui mais vezes e então... far-te-ei a vontade.
Ele sorriu-lhe e perguntou, resoluto:
— És uma das mouras que têm conseguido viver aqui escondidas?
A jovem respondeu indirectamente:
— Meu pai tinha um palácio lá em baixo... Fazíamos festas tão lindas! Vinham trovadores cantar... e eu... também tocava lira...
— E porque não tocas agora?
— Às vezes… quando estou triste...
— Mas onde vives?
— Moro aqui, sob esta pedra.
— Debaixo do chão?
— Sim. De que te admiras?
— Não tens luz!
— É o que te parece.
— Mas... onde está o teu antigo palácio?
— Os teus arrasaram-no!
— Os meus?
— Sim… os da tua raça!
— Mas... não dei porque houvesse lá em baixo nenhum palácio!
— Dos mais belos destas redondezas!
— E tu viveste no palácio?
— Sim… até virem as hostes do teu rei.
— As hostes? Mas... o meu rei... não tem andado por aqui!
— Sim. Vi-o, altivo no seu corcel negro!
— Sabes o seu nome?
— Ouvi que lhe chamavam Afonso.
António levou as mãos ao rosto como a querer certificar-se de que não sonhava. Depois voltou a olhar a linda loura. Havia uma certa palidez nas faces do jovem pescador. Perguntou quase a medo:
— Sabes... se esse rei cristão… era Afonso III
— Esse mesmo!
— Pois esse rei morreu muito antes de eu ter nascido! Como podes tu tê-lo visto, se aparentas ter a minha idade?
A jovem moura ficou uns momentos silenciosa. Parecia embaraçada. O rapaz tornou:
— Deves estar enganada.
— Talvez. Não penses mais nisso. Olha, está a anoitecer. Volta para a povoação, mas não te esqueças de vir aqui mais vezes!
O rapaz, um tanto perplexo, nem respondeu logo. Ela recomendou, levantando-se e encaminhando-se para o rochedo que estava perto:
— Não contes a ninguém o nosso encontro!
Ele sorriu:
— El-rei D. Afonso IV anda agora em guerra com a Espanha. Talvez te deixe viver lá em baixo. 
Ela desapareceu por detrás da rocha. António contornou-a — e nem o rastro da moura descobriu.
Desceu a serra pensativo. Chegou a casa já noite. Não ceou, não dormiu. Vendo-o assim, a mãe tentou saber a causa do que se passava. Mas António mantinha-se calado. Deixou de ir à pesca. Subia todas as tardes, com o Sol a pino, a serra de Monchique e só voltava à noite para casa. Os companheiros notaram a falta do António. Foram a casa dele. Mas a mãe do António não sabia senão chorar. Então eles prometeram-lhe que, no dia seguinte, dois dos pescadores seguiriam o António, para ver se descobriam o seu segredo. E se bem o prometeram, melhor o fizeram.

Quando António subia a serra, apressado, na ânsia de chegar perto daquela que já enchia toda a sua vida, mal sabia ele que era seguido de perto por dois companheiros de companha. Ao chegar perto da rocha encarniçada por onde a moura saía, António chamou:
Zuleima!
Os companheiros esconderam-se, a coberto com o mato da serra. O nome que ele chamava era o de uma mulher, e moura! Mal tinham feito esta reflexão, os olhos arregalaram-se-lhes. Uma mulher muito bela, de rosto descoberto e envolta num manto branco que lhe pendia da cabeça, surgia por detrás da rocha onde o pescador havia parado. António tentou agarrá-la, mas ela impôs-lhe serenidade:
— Espera, António! Ainda não é tempo de desceres comigo ao meu palácio subterrâneo. Talvez amanhã. Antes, quero que me tragas um pedaço de terra onde está a tua casa. Outrora era aí uma mesquita.
Ele mostrou-se surpreendido:
— Como o sabes?
— Porque ia lá muitas vezes.
— Mas a minha avó já nasceu naquela casa!
— A tua avó deve saber o que me aconteceu. Pelo menos ouviu falar.
— E que te aconteceu?
— Meu pai, antes de chegarem os teus homens, trouxe-me para aqui e... encantou-me!
— Encantou-te? Então...
António estava perplexo. Só nesse momento compreendera que a jovem que via na sua frente não era como outra qualquer das moçoilas do seu lugar. Fez-se terrivelmente pálido. E declarou:
— Agora compreendo tudo quanto me tens dito! Tu és uma jovem moura encantada. E para que o teu encanto desapareça terei eu de perder a minha alma. É muito o que me pedes!
Ela ficou triste.
— António! Se vieres comigo para o meu palácio, serás poderoso como o meu pai e meus irmãos.
O pescador estava verdadeiramente amargurado. Um suor fino e frio tombava-lhe da fronte. Desculpou-se:
— Não poderei deixar a minha mãe, que é doente!
A moura animou-o.
— Sob esta pedra existe um caudal de água que fará curas maravilhosas! Se me trouxeres a terra, dirás à tua mãe que venha aqui depois de amanhã banhar-se na água que vir correr.
O jovem estava pensativo. Ela aproximou-se. Quase lhe tocava. A sua voz era cariciosa.
— Promete-me que voltarás aqui amanhã! Promete-me, pela vida de tua mãe!
Ele meneou a cabeça negativamente. Ela censurou-o:
— Afinal… não gostas de mim!
Foi pronta a resposta de António.
— Amo-te, bem o sabes. Contudo...
Zuleima voltou a interromper o rapaz:
— Não... não me amas! Vai-te, e outro jovem como tu há-de amar-me e será poderoso. Vai-te embora e não voltes mais!
O rapaz afligiu-se:
— Zuleima! Deixa-me provar-te o meu amor!
— Então jura-me pelo teu Deus que me trarás ainda hoje a terra que te pedi e hoje mesmo entrarás comigo no meu palácio subterrâneo.
Ele voltou a hesitar.
— E... se eu entrar... o teu encanto ficará desfeito?
Ela iludiu a resposta.
— Se entrares... serás o homem mais poderoso destas redondezas! Mas é preciso que jures...
— Zuleima eu...
Um grito forte cortou a palavra ao jovem António. Dois dos seus companheiros saíram por detrás dos arbustos. Um deles gritou:
— António! Não jures!
O pescador olhou-os com perplexidade. Mas, de súbito, um estampido enorme soou. O penedo junto do qual estava a moura encantada estalou e dele começou a sair uma água morna que escorria pela serra. Nesse mesmo instante Zuleima havia desaparecido. Então, um dos rapazes que haviam seguido o pescador falou-lhe como a despertá-lo da semi-inconsciência em que tinha ficado:
— Desperta, António! Ias perdendo para sempre a tua alma! Mas Deus salvou-te, inspirando-nos para te seguirmos até aqui!
O jovem passou as mãos pelo rosto.
— Parece-me tudo um sonho!
— Talvez! Mas foi um sonho mau, que acabou bem ao acordares!
— Pensam que se eu... tivesse jurado... perder-me-ia?
— Decerto! Ela está encantada há muitos anos e não voltará à vida normal. Levar-te-ia para o reino da treva!
António fechou os olhos. Depois, suspirando, disse apenas:
— Obrigado por terem vindo!
E reparando na água que escorria do penedo:
— E esta água? Ela disse que sob esta rocha estava água capaz de fazer curas maravilhosas!
— Talvez. Podemos experimentar. Mas agora ela já não poderá tentar-te mais!
António apertava a cabeça nas mãos. Tudo aquilo lhe parecia irreal. Os companheiros aproximaram-se.
— Vamos! Tua mãe espera-nos. Não voltes aqui sozinho! Nós te acompanharemos amanhã e traremos a tua mãe. Se a água a curar, faremos daqui umas termas para alívio dos doentes!
António começou descendo a serra, cabisbaixo. Depois murmurou:
— Que pena! Ela era tão linda! Tão linda! E evaporou-se como fumo!
— Mas deixou-te aquela fonte de água quente.
— Sim... deixou algo... que me obrigue a pensar nela... enquanto viver!

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 321-325
Place of collection
MONCHIQUE, FARO
Narrative
When
14 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography