APL 2867 Lenda das Duas Pombas
Tinha um rosto simpático e alegre, a velhinha que me contou esta lenda. Eram azuis os seus olhos. Devia ter sido branca, a pele do seu rosto. Mas o tempo, o ar de campo, os Invernos sucessivos que teve de arrostar marcaram-na fisicamente. O espírito, porém, continuava jovem, como desembaraçados eram os seus gestos. Dizia-me ela:
— Pois é, meu senhor, lembro-me bem de ouvir contar esta história. Parece que tudo se passou há muitos anos, ainda antes de Cova ser povoação.
Compreendi tratar-se de uma lenda de Cova, freguesia de Vieira. Sorrindo, a velhota sublinhou:
— Olhe que isto foi verdade! Dizem até que vem nos livros...
Para a simpática velhinha, «vir nos livros» era a suprema consagração, a garantia de ser verdade...
Ela prosseguiu:
— Isto passou-se ainda antes da nossa terra nascer.
Indaguei:
— Qual terra?
— A de Portugal. Dizem que Portugal só veio quando um grande rei o conquistou.
Sorri à velhota que tanto se interessava pela nossa História, e pedi:
— Conte-me lá então a lenda de Cova.
E ela satisfez o meu pedido.
Num monte junto da Galiza, havia um homem muito poderoso que morava num grande palácio. Com ele, além dos escravos e inúmeros servidores que o rodeavam, vivia sua filha, a bela Marina, por quem toda a gente do palácio e arredores nutria excepcional respeito. Mas a bela Marina, embora fosse delicada para com todos os vassalos de seu pai, tinha um carinho especial por uma das suas escravas.
Uma tarde, quando Marina olhava de um varandim a largueza dos campos cheios de flores, voltou-se de súbito para a aia.
— Marta, vem cá.
A aia acorreu solícita.
— Minha querida ama, que desejais?
— Falar contigo... mas a sós.
Marta piscou os olhos.
— Algum mal do coração vos pesa?
Marina sorriu.
— Não, Marta. O coração não me dá cuidado.
— Mas ouvi dizer que o senhor Governador queria casar-vos.
Marina encolheu os ombros:
— Talvez. Mas por enquanto não me enfado pensando nessas coisas.
— Achais enfado pensar no casamento?
Marina deixou de sorrir. Fez mesmo um trejeito de amuo. E concordou:
— Sim, Marta, assim penso eu. Pelo menos quando tento ver na minha frente aquele que meu pai me destinou!
Marta ficou um momento silenciosa, olhando sem ver a paisagem bonita. Por fim deixou que os seus pensamentos viessem aos seus lábios:
— Compreendo-vos, minha boa ama. Isso significa que o amor ainda não vos buscou!
Marina fez girar docemente o rosto da sua aia para que esta a olhasse de frente, e perguntou de chofre:
— Marta! O amor existe?
A aia sorriu.
— Oh, minha querida menina! O amor existe, sim, mas é preciso saber onde ele está. Às vezes surge de um imprevisto. Outras... esconde-se...
— E se o encontrarmos?
— Então... devemos correr para ele e fazer por merecê-lo!
Gaiata, Marina perguntou ainda:
— E tu? Já encontraste o amor?
Marta mostrou-se embaraçada. Sorria, sem saber que responder.
— Ó minha querida ama… não falemos de mim que sou uma pobre criatura!
Marina retorquiu:
— Pobre, não, porque és a minha verdadeira amiga. Aquela que amo como se fosse minha irmã!
Marta corou enleada.
— Por Deus, não faleis assim! Se o senhor vosso pai vos escutasse...
— Ora! Que mal existe no que digo?
— Lembrai-vos de que sou uma pobre escrava.
— Para mim, és a minha grande amiga, aquela com quem mais gosto de conversar.
Embevecida, Marta nem sabia que dizer.
— É tanta a honra que me concedeis! Acreditai no meu eterno reconhecimento! Todavia...
Calou-se. O seu semblante anuviou-se um pouco. Marina reparou nessa mudança. Indagou:
— Que tens? Que ias dizer?
— Eu?
— Sim! Disseste: Todavia...
Marta mostrou-se ainda mais confusa.
— Tomai conta… não vos expresseis assim diante dos grandes senhores...
— Ora! Os grandes senhores talvez não tenham um coração tão belo como o teu. Portanto… não serão mais do que tu.
Marta afligiu-se:
— Minha querida menina! Tende cuidado!
— Porquê?
— Porque... poderiam julgar... que...
— Vamos, continua!
— Que ouvis a Sua Divina Palavra!
Marina franziu a sua testa bonita.
— Que oiço o quê?
— Perdão! Não me pergunteis...
— Pelo contrário: quero saber... Parece que ouvi a palavra... de quem?
— Senhora... Vede como os campos estão bonitos!
— Sim… já vi. Mas não disfarces! Que me escondes?
— Nada...
— Olha para mim, Marta! Vês? Não consegues olhar-me de frente. Mentes à tua amiga, àquela que tanto te estima. Achas bem?
Marta quase chorava.
— Mas… eu não quero mentir-vos!
— Pois é o que estás fazendo quando dizes que nada me escondes!... E quase choras!
Marta baixou a cabeça.
— Senhora, perdoai-me! Não quero desgostar-vos!
— Mas é o que estás fazendo, repito! Tens segredos para mim?
Marta levou as mãos ao rosto. Chorava. Marina arredou-lhe as mãos. Espreitou-lhe a expressão aflita.
— Marta! Se és realmente minha amiga, conta-me tudo.
Marta implorou:
— Não me obrigueis a abrir-vos a minha alma!
— Porquê? Achas que o não mereço?
Marta olhou a sua ama. As lágrimas banhavam-lhe o rosto, mas já não parecia tão aflita.
— Pois seja, já que assim o desejais. Tenho, na verdade, um segredo. Um maravilhoso segredo!
Marina sorriu triunfante.
— Ah! Bem o tinha suspeitado! Tu encontraste o amor, não é verdade, Marta?
Marta concordou, sorrindo docemente:
— Sim, minha querida ama! Encontrei o verdadeiro Amor… no verdadeiro Caminho!...
Entusiasmada, Marina continuou perguntando:
— E como é ele? Novo ou velho?
A resposta deixou-a desconcertada:
— Ele é de todos os tempos!
— Que dizes?
— A verdade.
— E onde está?
— Onde nós queremos que Ele esteja.
— E é nobre, ou é escravo como tu?
— Junto d’Ele não existe escravidão. Somos todos filhos do mesmo Pai Todo Poderoso!
Marina piscou os seus olhos bonitos.
— Que pensamentos tão estranhos! Nunca ouvi tal! Esse homem deve ser bastante curioso. Onde está ele, Marta? Quero conhecê-lo. Trá-lo à minha presença.
Marta meneou a cabeça.
— Senhora... Ele já não vive entre nós...
Nova e viva surpresa de Marina:
— Não vive? Então… como dizes que ele está onde nós queremos que ele esteja?...
Marta voltou a mostrar-se embaraçada.
— Senhora... Eu não posso dizer-vos mais nada!
— Que misteriosa te mostras, Marta! Olha que desejo saber toda a verdade!
— Ele é a Verdade Infinita!
— Então, porque não está aqui connosco?
— Ele está em toda a parte e sempre junto daqueles que O amam!
— E... ele ama todos os que o procuram?
— Até mesmo os que O não procuram!
Marina meneou a cabeça.
— Marta... Marta, tu achas bem?
— O quê?
— Isso! Achas bem amar um homem… que... enfim… ama tanta gente ao mesmo tempo?...
Serena, Marta respondeu:
— A Sua capacidade de amor é infinita!
Marina começou a enervar-se.
— Não consigo compreender-te. Explica-te melhor. O amor desse homem é... como o de Vianeglio, o noivo que meu pai me destinou?
Marta sorriu e respondeu, feliz, num êxtase:
— Não, é muito diferente! O Seu Amor é só espiritual e abrange toda a humanidade!
Marina, cada vez mais intrigada, não se cansava de fazer perguntas.
— E pensas que possa existir alguém capaz de amar verdadeiramente toda a humanidade?
— Sim, minha querida menina.
— E porquê?
— Porque Ele é omnipotente!
Marina saltava de surpresa em surpresa.
— Não abuses da minha paciência, Marta! Dizes coisas tão estranhas! Traz-me esse homem!
— Já vos disse que Ele morreu.
— Como?
— Mataram-no!
— E porquê, se ele era capaz de amar toda a humanidade?
— Porque a humanidade é como uma criança inconsciente que nunca sabe o que quer.
— E porque o mataram?
— Porque Ele era o Amor e trazia o Amor para dar aos homens!
— Não te compreendo.
— Ele morreu por todos nós!
— Ouve, Marta: aceitemos o facto de os homens não terem compreendido esse a quem amas e de que o tivessem morto. Mas tu disseste que ele era omnipotente. Sendo assim, porque não conseguiu salvar-se?
— Porque o Seu sacrifício tinha de cumprir-se, pois estava escrito. Morrendo por nós, Ele ensinou-nos a obediência e abriu-nos as portas para a Vida Eterna!
Marina estava perplexa. Agarrou as mãos da aia.
— Marta! Estás a dizer-me coisas estranhas mas maravilhosas! Onde as ouviste? Quem as proferiu?
— Primeiramente foi Ele quem as disse. Depois… os seus discípulos!
— E onde estão os seus discípulos?
— Espalhados pelo mundo.
— E onde os encontraste pela primeira vez? Diz-me depressa… não vês a minha ansiedade?
— Encontrei-os já há algum tempo... quando estivemos em Roma.
— Tu viste esse homem extraordinário?
— Não. Mas vi aquele que Ele designou para o representar na Terra!
Marina não pôde conter-se. Gritou quase:
— Marta! Marta! Tu viste e ouviste tudo isso e ficaste calada! Como o pudeste ocultar de mim?
Marta suspirou:
— Senhora, tendes razão! Eu devia ter-vos contado logo esse facto extraordinário da minha vida. Mas acreditai que, se o não fiz, foi receando por vós!
— Recear por mim? E porquê?
— Porque aqueles que são por Ele são tão perseguidos como Ele o foi e continua a ser!
— Continua a ser perseguido depois de morto? Como é isso possível?
— Ele ressuscitou ao terceiro dia!
— Mas isso não é humano!
— Não. É divino!
— Marta! Diz-me depressa como se chama esse homem para que o meu coração jamais o perca!
— Chama-se Jesus Cristo!
Marina olhou fixamente a paisagem. Meditava. Estava pálida, de olhos brilhantes, coração batendo mais apressado. Voltou-se subitamente para a aia.
— Marta! Diz-me: os adeptos de Jesus Cristo… são os cristãos? Aqueles que Nero atirou às feras?
— Sim, minha querida ama!
— E tu? Tu és cristã, não é verdade?
Marta inclinou-se, submissa.
— Perdoai-me se o não confessei há mais tempo! Mas acreditai, senhora: eu sou felicíssima!
Marina voltou-lhe as costas e exclamou com firmeza:
— Ingrata!
Marta olhou a sua ama.
— Compreendo-vos. Julgais que vos atraiçoei.
— E atraiçoaste!
— Mas não me condeneis, senhora, sem me ouvir!
— Fala!
— Se soubésseis como a Sua doutrina é admirável!
Marina voltou-se. Encarou Marta e replicou:
— Por isso mesmo! Porque a guardaste só para ti?
Marta olhou a ama. Julgou não ter ouvido bem. Mas a jovem sorria-lhe. E ela, louca de alegria, deixou que as lágrimas voltassem a inundar-lhe o rosto.
— Senhora! Não estais zangada comigo por eu ser cristã?
— Estou zangada apenas por não teres partilhado comigo a tua felicidade... Foi preciso que eu te chamasse, foi necessário o meu coração adivinhar que havia qualquer coisa de maravilhoso dentro de ti, para saber a verdade!
— Esse facto é já Ele a operar dentro do vosso coração. É o chamamento! Como eu me sinto feliz!
— Pois bem. Que é preciso fazer para ser cristã?
— Primeiro, conhecê-Lo e amá-Lo. Depois... praticar a cerimónia do baptismo.
— Pois prepara isso depressa. Ensina-me melhor a conhecê-Lo, porque, a amá-Lo, creio que já comecei!
E diz a lenda velhinha que daí em diante, no mistério da noite, Marta e Marina saíam escondendo-se nas sombras para se juntarem à multidão de escravos e alguns legionários que iam assistir ao Santo Sacrifício.
E o dia do baptismo de Marina foi marcado.
Ora aconteceu que entre os servidores do palácio havia um que recebia dinheiro do jovem Vianeglio, o indigitado noivo de Marina, para a vigiar. Começara a suspeitar que algo de estranho se passava. E cedo descobriu o verdadeiro motivo dessas misteriosas saídas do palácio. Desorientado com tão imprevista revelação, o homem que seguia Marina correu a contar a Vianeglio que a sua noiva se fizera cristã. Indignado, correu este por sua vez ao palácio do governador. A sua exaltação era tanta que falou alto com o homem a quem pagava. Uma sentinela cristã ouviu-o e fez avisar Marina e a escrava Marta. Alarmadas, as duas mulheres fugiram. Então o governador ordenou que buscassem a filha e a trouxessem à sua presença, para a obrigar a desdizer-se. Mas quando os guerreiros do palácio lhe disseram que ela e a sua escrava favorita, Marta, haviam abandonado o palácio, o governador, possesso de raiva, chamou os seus soldados e correu em perseguição das fugitivas.
Andaram por montes e vales, correndo em busca de Marina e Marta. E quando já desesperavam de encontrá-las, foram descobri-las numa cova do Monte Oliveira, perto de um rio. Alucinado, o governador elevou a voz:
— Sai daí, filha maldita que desonraste o teu pai!
Marina apareceu, serena.
— Senhor! Por obediência, aqui estou.
— Vem comigo! Quanto a essa mulher que te acompanha e te enlouqueceu, diz-lhe que a morte a espera!
Marina não se surpreendeu, mas não avançou mais. Retorquiu:
— Meu pai, a sorte de Marta será a minha sorte. Se achais que ela deve morrer, acreditai que a minha culpa é igual à dela.
O governador gritou:
— Mas ela é uma cristã e tu…
A jovem interrompeu o pai.
— …e eu sou, também, uma cristã.
A cólera do governador subiu ao rubro.
— Mentes! Tentas salvá-la, e mentes!
Serena, embora numa voz débil, Marina voltou a afirmar:
— Sou cristã, juro!
— Então foste instigada!
— Senhor meu pai! A minha verdadeira culpa foi ter seguido sozinha, sem tentar trazer-vos comigo pelo Caminho da Verdade!
— Filha, tu enlouqueceste! As tuas palavras podem trazer-te a morte!
— Também Cristo foi morto!
— Odeio-te pela mágoa que me causas!
— Lastimo-vos, meu pai!
— A tua desobediência perdeu-te!
— A minha Fé me salvará!
Desesperado com tanta firmeza, o governador olhou os seus soldados que, de máscara impassível, aguardavam ordens. Então o governador ordenou:
— Soldados! Matem-nas! Que morram as duas, já que as duas viveram sempre juntas!
Marta, de joelhos, orava baixinho:
— Senhor! Tomai as nossas almas e fazei que o nosso sangue sirva para que outras almas sem luz possam ver o Seu Caminho!
Marina ajoelhou ao lado da companheira. Murmurou apenas:
— Que o meu sacrificio sirva para finalmente me encontrar contigo, ó Jesus, no teu Reino da Glória!
Nesse mesmo instante os soldados catam sobre as duas cristãs. Tingiu-se de sangue inocente o aço brilhante das lanças dos sem-Deus. Na cova que antes as tinha escondido caíram os corpos das duas jovens. E, de súbito, duas pombas alvíssimas elevaram-se nos ares, voando pelo espaço fora. Uma delas, antes de desaparecer, roçou ainda, ao de leve, com uma das asas, as mãos do velho governador. Mudo e quedo, ele contemplou esse esvoaçar da pombinha branca que assim havia aparecido sem explicação. E, desde então, o local do maravilhoso acontecimento tomou o nome de Cova. E a lenda das duas pombas brancas ficará a perpetuá-lo pelos séculos dos séculos.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 89-96
- Place of collection
- Cova, VIEIRA DO MINHO, BRAGA