APL 2782 Lenda do Castelo de Marvão

Caía a tarde de mansinho. O sol punha rabiscos de fogo no firmamento azul-cinzento. No vale, onde algumas casas pequenas pareciam de brinquedo, vistas do alto do monte, uma jovem tocava harpa de um modo quase distraído. O seu rosto de belas feições gritava sem voz a aflição que a dominava. Perto, uma dama de meia-idade tecia. Também a sua expressão era triste, apreensiva...
De súbito, a jovem parou de tocar, deixando incompleta a ária de amor e queixume que até aí nunca deixara em meio. Gemeram as cordas da harpa, num soluçar dolente, ao abandono dos dedos da jovem. A dama de meia-idade ergueu a cabeça. Fitou a donzela e, numa voz bondosa, perguntou:
— Que tens, Maria? Porque não continuas?
A jovem suspirou. A sua voz soou baixa e fraca.
— Não posso! Perdoa-me, mas não posso!
Sorriu a dama, num sorriso que lembrava lágrimas.
— Sei o que te aflige: a demora de Marcelo. Mas pretenderás tu amá-lo mais do que eu, que sou sua mãe?
Novo suspiro de Maria, agora mais forte. Torceu as mãos, como a tentar dominar-se. Mas logo se levantou do cantinho onde estivera tocando e veio sentar-se aos pés da sua protectora. Deitou-lhe a cabeça no colo. Queria atordoar-se, esquecer que o tempo corria! A senhora acariciou-lhe os cabelos. Voltou a falar-lhe:
— Tem calma! Assim nada conseguirás. E torno a lembrar-te que não o amas mais do que eu...
Maria ergueu o olhar. Olhos rasos de lágrimas.
— Queres-lhe muito, bem sei. Tanto como eu. Mas eu e tu somos diferentes!
— Diferentes em quê?
— No sangue que corre em nossas veias! O meu não é igual ao teu. O meu não vem desse glorioso Viriato, símbolo deste povo não menos glorioso!
Voltou a senhora a acariciar os cabelos da jovem, sentada a seus pés.
— Criei-te de pequenina, minha filha, e ensinei-te a seres forte como todos os Lusitanos. Terás, pois, de ser como nós!
O nervosismo punha um estrangulamento na voz da jovem Maria.
— Sei lá qual será a minha origem! Grega?... Romana?...
— A tua origem, agora, pouco importa! Quando te encontrei abandonada no sopé desta montanha que se ergue à nossa frente, não quis saber quem eras, nem donde terias vindo. Eras uma criança que chorava com fome e tremia de frio!
Com arrebatamento, a jovem ajuntou:
— E hoje sou a futura esposa de Marcelo, o teu filho bem-amado!
— O meu único amparo moral, desde que os Romanos mataram o meu esposo! Tu ainda o viste. Mas eras pequenina quando o levaram daqui... Nunca mais soube dele, nunca mais! Nem sequer qual foi o seu fim, nem onde o enterraram!
A voz da senhora que falava endureceu um pouco e acrescentou:
— Por isso, minha filha, Marcelo tem uma dívida de sangue para com os Romanos!
A jovem ergueu-se.
— Eis o que me aflige ainda mais!
— Porquê? Não acreditas no destino? Que podes recear mais do que eu? O que está escrito terá de cumprir-se, queiras ou não queiras, soframos ou não!
— Não compreendo esse fatalismo.
O olhar da senhora iluminou-se.
— Escuta, Maria… Marcelo vem aí!
Levantou-se a jovem num sobressalto.
— Onde?
Baixo, quase num sussurro, olhos perdidos no espaço, a dama esclareceu:
— Algures. Mas vem aí. Pressinto-o mesmo à distância! Não descobres o mesmo? Não és mãe, Maria. Não podes sentir o que eu sinto!
Mas já a jovem, num impulso, a interrompia:
— Deixa-me ir ao seu encontro!
Num sinal negativo, a mãe de Marcelo abanou a cabeça.
— Não, Maria! Tu corres mais do que eu e chegarás a seu lado antes que eu o veja. E então... ambos se esquecerão desta pobre velha, que anseia, como tu, por ter notícias, embora saiba dominar-se! Não, Maria. Espera um pouco. Ele já vem perto. Não tardará!
Calou-se a dama. Mas o silêncio que as separou durou apenas alguns segundos. Já se distinguia o ruído de um cavalo correndo. Depois estacou. Marcelo desceu e entrou impetuosamente na sala onde as duas mulheres o esperavam. Correu para a mãe, beijou-a, mas logo a deixou para ir estreitar nos seus braços fortes a sua deliciosa, inquieta noiva. Com beça encostada ao peito largo do lusitano, Maria queixou-se:
— Como tardaste, Marcelo! Já estava em cuidado!
Ele tomando nas mãos a linda cabeça de fartos cabelos bem penteados, olhou-a, a fundo, nos olhos. A sua expressão era de amargura e a amargura soou também a sua voz:
— As notícias são péssimas! Cássio Longino tem vindo a destruir tudo por onde passa. É um homem rancoroso, mau, um monstro de ambição!
Serena, a mãe de Marcelo falou:
— Chegou talvez a nossa hora... Mas quem sabe se não terá chegado também a desse tal Cássio Longino?
Marcelo encheu o peito de ar, antes de responder:
— Tudo é possível agora, minha mãe. Mas uma coisa se torna urgente.
— O quê, meu filho?
— Pô-las a salvo antes que ele chegue!
A dama franziu as sobrancelhas. O seu rosto fechou-se numa expressão simultaneamente dura e dolorosa.
— Queres pôr-nos a salvo? Como?
Respirou de novo Marcelo, antes de responder.
— Mãe! Demorei-me, justamente, para encontrar o único meio de as livrar de Longino. Lembrei-me que o monte que nos deu a nossa Maria poderia talvez conservá-la agora longe de perigo.
Num grito, a jovem agarrou-se a Marcelo.
— Não quero separar-me de ti!
Mas a voz da velha senhora voltou a ouvir-se, serena.
— Talvez Marcelo tenha razão. Os homens não combatem com a mesma liberdade de espírito quando têm a seu lado a mulher que amam.
A jovem revoltou-se.
— E ele... ficará aqui, sozinho?
A mãe de Marcelo perguntou:
— Todo este povo, para ti, não representa nada?...
— Mas ele não é o chefe!
— O chefe é um velho e não tem filhos. Marcelo é o seu lugar-tenente. Não poderá agora abandoná-lo.
E acrescentou, voltando-se para o filho:
— Diz-nos onde se encontra o esconderijo que nos destinas, Marcelo, e eu própria conduzirei Maria até lá.
O jovem guerreiro levou uma das mãos à testa.
— Custa-me deixá-las partir sozinhas. Eles podem aparecer de um momento para o outro.
A mãe tornou:
— Por isso mesmo, deves ficar! Diz-me o caminho para chegar local que escolheste.
Marcelo fechou os punhos.
— Receio que não saibam encontrá-lo. É de difícil acesso e…
A velha senhora interrompeu-o, enérgica:
— Marcelo, diz-me o caminho antes que se faça tarde! É lá no cimo do monte?
— Sim. Mais ou menos no lugar onde encontrou Maria. Escute com cuidado…
E o jovem explicou em pormenor o difícil mas único caminho que levaria à salvação a mãe e a noiva.
Elas partiram por fim. Levavam poucos mantimentos e muitas apreensões.
 
Ainda não havia decorrido uma hora sobre a fuga de Maria e da mãe de Marcelo, quando o exército de Longino caiu sobre a pobre aldeia. A defesa estava entregue a um número inferior à centena. Quanto aos romanos, chegavam aos cachos, passando do milhar. Travou-se a luta. Luta de desespero, da parte invadida. Luta de vida ou de morte. Talvez porque os lusitanos estavam decididos a vender cara a vida, não querendo entregar-se nem morrer sem causar danos, o combate prolongou-se mais do Cássio Longino esperava. O facto enervou o procônsul romano. Mandou redobrar de esforço e crueldade. Os lusitanos, porém, continuavam firmes, embora cada vez em menor número, dispostos a morrer matando o mais que pudessem. Todavia, já reduzidos a uma vintena, o chefe consentiu na entrega da aldeia e dos seus homens em troca de liberdade das mulheres. E a luta cessou, com grandes baixas também do lado do invasor.
A manhã já vinha quando o procônsul romano mandou enfileirar os dezasseis homens que restavam, para virem à sua presença. Um a um ele ia ouvindo e poupando a vida aos que possuíam bens que lhe dessem em troca. Depois de ouvi-los, Cássio Longino fazia a sua escolha. E um a um, iam passando esses lusitanos fortes de corpo e alma, mais amargurados ainda por estarem vivos mas vencidos, ante a figura odiada do chefe romano, escutando a sua sentença de vida ou de morte. Até que chegou a vez do jovem Marcelo.
Longino olhou pouco à vontade esse rosto pálido mas de olhar duro e firme que o causticava. Para disfarçar ou para se vingar dessa ousadia falou-lhe:
— Tu eras o subchefe. Para salvares a vida precisarias de grandes riquezas. E, segundo me informaram, pouco mais tens que a tua casa e uma dúzia de cabeças de gado.
Altivamente, Marcelo respondeu:
— A minha vida não está à venda, creio!
Longino sorriu felinamente:
— És pobre e orgulhoso?... Olha que o teu chefe pagou cara a ousadia de falar-me como grande senhor! Não só o mandei degolar, como fiquei com todos os seus haveres!
Marcelo retorquiu, rápido:
— O mesmo te acontecerá um dia!
Longino rangeu os dentes e sentiu desejo de ferir, de marcar cruelmente o seu inimigo. Sabia que a morte não o afligiria, porque era bravo. Mudou de táctica.
— Se não fosse o preço da tua vida, creio que não resistiria a fazer-te desaparecer, e já!
Marcelo surpreendeu-se.
— O preço? Que preço? Acabaste de afirmar — e é verdade — que pouco mais tenho que uma dúzia de cabeças de gado e a minha casa. Isto basta ao teu espírito ambicioso?
Cássio Longino riu com maldade. Depois sublinhou bem a frase que iria ferir Marcelo:
— Tu nem sabes dar valor ao tesouro que possuías!
O lusitano alarmou-se.
— Que tesouro?
Amaia!
Marcelo, fora de si, gritou:
— Como sabes o seu nome?
Sorrindo sempre, Longino disse apenas:
— Foi ela.
— Ela?... Quando?
— Não grites, jovem louco!
— Quero saber quando te disse ela o seu nome!
— Ontem, quando chegámos... Ela ia a fugir...
Louco de dor e de fúria, Marcelo gritou mais:
— Onde a escondeste?
— Na minha tenda.
— Maldito! Não ouses tocar-lhe, porque te arrependerás!
Num requinte de cinismo, Longino vibrou o golpe maior.
— Amaia já não te pertence! A velha deu-ma em troca da tua vida; quando os meus homens as descobriram a caminho da montanha!
Quase possesso, Marcelo ia atirar-se ao procônsul, mas foi agarrado pelos soldados romanos. Alucinado, gritou-lhe:
— Mentes! Mentes, malvado! A minha mãe daria a vida por ela!
Sem alterar a voz, o romano tornou:
— E deu.
Os olhos de Marcelo abriram-se num ímpeto de loucura. Baixou a voz, tornando-a cava.
— Que dizes?
— O que ouviste. Depois de nos entregar a jovem Amaia, voltou a buscá-la, no mais aceso da nossa luta. Calcula que matou um dos guardas, essa velha de granito: libertou a jovem, e já iam de novo a fugir, quando foram descobertas. Os meus homens mataram a velha e teriam morto a outra se... se ela não me tivesse agradado tanto!...
Marcelo rugiu, agarrado pelos soldados:
— Maldito sejas enquanto viveres! Maldito sejas onde estiveres, seja na terra ou no mar!...
Enfadado já, Cássio Longino ordenou:
— Levem-no daqui!
Marcelo gritou de novo:
— Só depois de matar-te!
E, lutando, tentou libertar-se dos braços que o seguravam, na ânsia de desfazer o procônsul romano. Mas Longino gritou:
— Segurem-no bem! Parece um tigre!
De rastos, Marcelo foi levado da sala. Mas gritava ainda:
— Amaia nunca será tua! Sei que preferirá morrer! Sei! Compreendes?...
Como resposta, Longino ordenou em voz mal segura:
— Que se aproxime o que estava atrás desta fera que saiu. Vamos continuar! Tu? Não tens bens?
— Não.
— Pois serás degolado! O outro a seguir? Ah! Já sei... já me disseram… Tu és rico... Está bem... Ficarás preso até sairmos desta aldeia… O outro?
Um homem de meia-idade adiantou-se.
— O que tenho não te chega, decerto, porque não lhe sabes dar valor.
— Que possuis?
— Honra!
— Degolem-no! Agora o último. Já começo a estar cansado disto! Que tens para me dar em troca da tua vida?
Cerrando os dentes, o último homem da fileira dos prisioneiros declarava:
— Ódio! Só ódio para te dar! Mas esse é muito, muito!
Sem esperar mais, Longino ordenou:
— Degolem-no também!
E levantando-se da sua cadeira de espaldar, a cadeira do chefe aldeia, declarou:
— Vamos buscar Amaia e ver o que havemos de fazer dessa fera que foi subchefe do inimigo e deverá morrer! O ar aqui pesa-me... Sigamos para outras terras, quanto antes!

Quando Cássio Longino chegou à porta da tenda onde ficara Amaia vigiada por dois soldados, viu esta abandonada. Entrou nela e achou-a vazia. Alucinado, chamou os seus homens.
— Rebanho de imbecis! Onde está Amaia?
A medo, um dos soldados explicou:
— Quando trazíamos Marcelo, este conseguiu libertar-se e fugir para aqui. Então lutou contra nós quatro, ajudado pela rapariga. Dois dos meus camaradas morreram, outro está cego e eu... escapei porque viera buscar reforços...
Foi a vez de Longino rugir:
— Cambada de poltrões! Um homem desarmado vencer quatro soldados!... Para onde fugiram?... Vamos! Reúnam cinquenta homens e sigam-nos! Devem ter ido para a montanha!
Logo se formou o batalhão que iria buscar os fugitivos. A montanha silenciosa e austera era o objectivo. Mas a busca começou a tomar-se difícil. Longino gritou:
— Têm a certeza de que passaram por aqui?
Um dos soldados informou:
— Cássio Longino... Vi-os subir aquele escarpado à beira do precipício. Não vale a pena procurá-los. Não irão longe… porque por ali... mal vão!...
Gritou de novo, o procônsul:
— Mal vão, porquê?
— Porque encontrarão a morte entre os rochedos...
 
Mas a montanha silenciosa e austera deu abrigo aos fugitivos. Ali ficaram Marcelo e Amaia, lado a lado, corações batendo em uníssono, cheios de dor pela perda da que tudo sacrificara por eles. E os homens de Cássio Longino abandonaram a perseguição ao jovem casal e seguiram para outras terras, espalhando sempre terror e desolação. Mas a maldição caiu sobre Cássio Longino. Quando este, mais tarde, regressava ao seu país natal, encontrou a morte no mar, onde ficou sepultado com todas as riquezas que adquirira durante as lutas com os Lusitanos.
Entretanto, lá no alto da montanha silenciosa e austera, Marcelo e Amaia foram construindo, pedra a pedra, a sua casa. E os seus descendentes, dessa pequena casa fizeram um castelo — o castelo de Marvão — grito que ecoado pelas penedias e levado pelo vento chegou aos ouvidos dos que ficaram quando os soldados romanos diziam dos fugitivos:
— Mal vão! Mal vão!...
Esta é a lenda do castelo de Marvão, que chegou a ser pertença dos Mouros, mas que, finalmente, D. Sancho II conquistou, para o limpar da gente inimiga e dar de presente a Portugal.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 159-166
Place of collection
MARVÃO, PORTALEGRE
Narrative
When
-1 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography