APL 882 A Porta do Sol
Na terra de Valença que reclama de Ulisses e de Viriato a fundação, e que outrora também se chamou Contrasta, vivia uma princesa que por ser tão bela, valente e pura, herdou o nome desta esplendorosa terra. Contrasta era uma das duas princesas filhas de um rei muito velhinho que aqui reinava.
A beleza da princesa era exaltada pela paisagem verdejante que a rodeava, de tal forma os montes e vales ostentavam uma fertilidade generosa. Parecia que a natureza se prolongava no brilho que os raios de sol reflectiam no olhar de Contrasta. Por todas estas maravilhas, cada dia que passava, a princesa era mais cobiçada por todos os que conheciam o perfume da sua presença.
Ora um dia, um terrível príncipe Mouro que por ali passava, não conseguiu resistir aos seus encantos. Juntou numeroso e experimentado exército, e atacou a paz e alegria dos que ali moravam. Travaram-se duras e difíceis batalhas, foram dias e dias de sofrimento atroz, de lutas e cruéis chacinas, até que o rei cansado pela velhice, e triste por se ver incapaz de suster o avanço do Mouro, fugiu envergonhado, refugiando-se em seus frondosos jardins, que circundavam todo o palácio.
Escondido no meio das flores, o pai de Contrasta viu pétala a pétala..., folha a folha..., as flores a cair. E, ao cair, as pétalas transformavam-se em pedras, que, sobrepondo-se, formaram grandes e nobres muralhas que sepultaram o cadáver do nobre rei, transformando a sua sepultura numa fortaleza dominante e intransponível.
O príncipe Mouro queria encontrar o velho rei para reclamar a glória da vitória, bem como as riquezas do palácio e a mão de Contrasta. Mas apesar de percorrer no seu corcel toda a muralha que entretanto se formara, não encontra qualquer indício do rei nem das riquezas! Levado pela ira e furioso por se ver sem despojos, bate em retirada, destruindo tudo o que encontra pelo caminho. Estava já a sair da fortaleza quando encontra a princesa mais nova. Esta fita-o com um olhar sofrido, desamparado de toda a força, apesar de nele soltar-se ainda a ternura que lhe ia no mais íntimo da alma. Não se abandonou a qualquer escrúpulo o príncipe tresloucado, que mal viu a jovem, pegou na espada para a trespassar friamente, levando a princesa à morte cruel e dura. Foi de tal maneira cruel o gesto, que a própria natureza sentiu aquele golpe cobarde. Os pássaros voaram sobre o cadáver da princesa moribunda cantando e falando como nunca os homens tinham alguma vez escutado: “Tu á bela, que tanto nos acarinhastes..., Tu serás a Rainha do Sol!” Naquele mesmo instante o dia, antes tenebroso e frio, transformou-se em intenso sol ardente, que a tudo iluminou, envolvendo a princesa em mil sóis. Quando a luz brilhante foi perdendo força, havia desaparecido o corpo da jovem, agora transformado num belo portal a que depois chamaram de «portas do sol».
Entretanto, aos gritos da irmã mais nova acorreu aflita Contrasta, princesa herdeira do reino vencido. O Mouro ao ver chegar a sua antiga paixão não teve coragem para suplicar o perdão ou forças para justificar o seu gesto bárbaro. Perdido da razão e desejoso por dar fim a jornada tão violenta, pegou naquela que vira desaparecer a irmã e levou-a para junto de uma frondosa árvore. Ali acabou o que antes havia começado: martirizou Contrasta, deixando-a em lenta agonia debaixo da árvore que muitas vezes lhe servira de sombra repousante. Caíam-lhe as folhas sobre o rosto desfalecido, segredando-lhe baixinho: “Serás coroada..., serás coroada, tu que foste uma princesa valente e tão bondosa!”
E sobre as «portas do sol» desceu a coroa que lembra como a barbárie destruiu bondades e belezas tão prometedoras. Aquelas que a natureza protegeu pela beleza e graça, alcandorando-as aos lugares de destaque, não ficaram sem que a mesma natureza desse resposta ao actor do hediondo crime. Todas as forças se uniram para lançar o guerreiro Mouro no findo do vale, transformando-o em rio. E ainda hoje corre aquele a quem chamam de Minho, vergado aos pés das princesas assassinadas. Por vezes bem ele procura alcançar os muros da fortaleza, como suplicando perdão pelos seus actos, mas lá volta ao seu leito, resignado pelo poder e beleza das «portas do sol».
- Source
- CAMPELO, Álvaro Lendas do Vale do Minho , Associação de Municípios do Vale do Minho, 2002 , p.161-163
- Place of collection
- VALENÇA, VIANA DO CASTELO