APL 2802 Lenda das Rosas de Guimarães
Naquele dia de Primavera, as rosas floriam quase espontâneas por todo o campo de Guimarães. Rosas aveludadas, de perfume suavíssimo, tons esbatidos e espinhos fracos. Guimarães dir-se-ia um jardim. Mas um jardim convertido em prisão dos seus habitantes: Henrique de Trastâmara viera pôr-lhe cerco. E o rei D. Fernando, ao receber tal nova, afligiu-se pelos estragos que o seu rival vizinho tentava produzir no seu reino. Depois de Braga, D. Henrique viera sobre Guimarães. Aí, porém, encontrara forte resistência. Mas qual a duração da resistência humana? Inquieto, el-rei D. Fernando tomou armas, saiu de Coimbra, passou o Douro e acampou junto a Guimarães. E então enviou um mensageiro secreto ao alcaide da cidade sitiada.
No castelo havia alvoroço. O mensageiro de el-rei D. Fernando rompera o cerco e chegara à fala do alcaide. Vinha ofegante, mas satisfeito consigo próprio: cumprira a sua missão. Junto dele, o alcaide deu-lhe a palavra:
— Dizei qual a ordem que el-rei D. Fernando nos envia. Nem que seja a vida que ele nos peça — cumpri-la-emos!
— El-rei está perto, pois saiu de Coimbra logo que soube do cerco que sofreis. E deu-me a honra de vir lembrar-vos que deveis resistir o máximo até que ele possa agir. E Guimarães continuará nossa!
— Que el-rei fique ciente que o de Castela só entrará em Guimarães quando os seus validos deixarem de existir! O cerco continuará enquanto vivermos!
O mensageiro inclinou-se, numa vénia.
— Sabei, senhor, que em breve tudo ficará esclarecido. Consta no nosso arraial que el-rei D. Fernando vai pedir ao de Castela um combate singular para decidir a sorte de Guimarães.
— Um combate singular? El-rei vai assim expor-se? Creio ser temerário esse gesto. De qualquer modo, não me cabe censurá-lo. Dizei-lhe, senhor, que pode contar connosco. E boa sorte!
Pálida, trémula de pavor, a jovem Isabel nem sabia chorar. Escondida num recanto da grande sala, ouvira o que o mensageiro acabara de transmitir. Mordia os lábios, na inquietude de quem não encontra imediata solução para o problema que a aflige. Sentia a necessidade imperiosa de impedir esse combate singular. Necessidade que punha calafrios no seu corpo e ardor no seu coração. Mas como voltar a embainhar a espada que o seu rei iria desembainhar? Quem era ela, afinal, a quem o seu rei mal conhecia, mal notara?!...
Isabel fechou os olhos. Nesse instante reviu o seu primeiro encontro com o rei de Portugal. Fora em Lisboa. Ela acompanhava D. Maria Teles, que por seu turno era dama de honor da infanta D. Brites, irmã de el-rei D. Fernando. Assim, tornara-se frequente ver o jovem rei entrar nos aposentos da irmã. Revia a sua esbelta figura, o brilho dos seus olhos, a elegância das suas maneiras, a sua voz bem timbrada, calma, o seu olhar doce, sereno e profundo. Mas ele nunca reparara nela. Todas as suas atenções se voltavam para D. Maria, cuja beleza era flagrante. Depois... Depois surgira, certa tarde, vinda da Beira em visita à irmã, a esbelta D. Leonor Teles de Mendonça. E desde esse momento... o rei não tivera mais olhos para outra qualquer mulher!
Um suspiro fundo cortou as recordações da jovem D. Isabel. Jamais soubera tornar-se objecto das amabilidades reais. Todavia, amava em segredo o seu rei. Amava-o como homem e como senhor do seu país. Fugira então de Lisboa e viera para Guimarães, onde seu tio era alcaide do castelo. E agora ali estava ela, quase morta de medo com a resolução de D. Fernando: um combate singular com o rei de Castela! Como dissuadi-lo de tal loucura? Não era a sorte de Guimarães que ela temia, mas a do seu rei. D. Fernando era valente, mas menos forte que D. Henrique de Trastâmara.
Passos apressados soaram no lajedo do claustro. D. Isabel estremeceu. Encolheu-se mais a um canto. Depois saiu para o corredor externo e espreitou o campo através de uma fresta. O cerco continuava. E a ideia firme de atravessar esse mesmo cerco e falar com o rei tomou-a em absoluto. Nesse momento, contudo, ela não confessava a si própria se a força que a impelia a forçar o cerco, sozinha, tendo de arriscar-se tanto, era somente para tentar dissuadir o rei dessa louca ideia de um combate singular, ou apenas para corresponder ao seu grande desejo de tornar a ver D. Fernando, que ela sabia tão próximo! Só para lhe falar durante uns momentos seria capaz de tudo arriscar: honra e vida!
Caía a tarde de mansinho, como adolescente a espreguiçar-se. A mancha rubra do Sol poente punha reflexos dourados nos cabelos de D. Isabel. Um manto negro cobria-lhe a cabeça, o corpo e parte do rosto. Nos braços cingia um braçado de rosas colhidas nos campos de Guimarães. Caminhava a medo. Receava as sentinelas do seu próprio exército e a guarda dos homens que acampavam a poucos metros da linha defensiva. Como iria romper essa linha? Como passar pelo inimigo sem ser notada e procurar o acampamento do seu rei, a uma boa légua dali?
Com o coração pulsando, a jovem esgueirou-se pela verdura, cobrindo-se com os arbustos. O ruído de vozes de portugueses e espanhóis chegava aos seus ouvidos, tão perto eles estavam. Por momentos deu-se conta da loucura que estava a cometer. Ela, a jovem tão respeitada e amimada, estava ali, sozinha, sabia Deus para que fim! Para o tio, apenas deixara um enigmático recado, dado à sua camareira. Na hora dramática em que o rei de Portugal iria jogar tudo por tudo, ela sentira forças para igual façanha!
Seria nesse momento que as forças iriam abandoná-la? O passo mais difícil estava dado. Só lhe restava ir para a frente!
No acampamento do rei D. Fernando havia certa agitação. A ideia do combate singular tinha-se espalhado. E os fidalgos portugueses mostravam-se apreensivos.
De súbito, alguém falou a Aires Gomes da Silva.
— Senhor, dizei ao nosso amo, el-rei D. Fernando, que uma jovem de Guimarães pede audiência.
Foi logo transmitida esta nova. E imediatamente, também, D. Fernando mandou que a jovem fosse introduzida na tenda real. Ao ver a sua estranha figura envolta num manto negro, pediu, sereno:
— Podeis mostrar o vosso rosto?
Como se esperasse apenas esse pedido para mostrar-se, a jovem deixou cair o manto e beijou a mão do rei. D. Fernando inclinou-se. Os seus olhos bonitos pousaram silenciosos sobre os da jovem que o fitava com certa audácia e manifesto encantamento. Foi o rei quem primeiro falou:
— O vosso rosto não me é estranho. Já alguma vez nos encontrámos?
Ela sorriu.
— Muitas vezes, meu Senhor!
— E onde?
— Em Lisboa, quando visitáveis vossa augusta irmã D. Brites.
Sorriu o rei.
— Sei agora quem sois: D. Isabel de Lira!
— Para vos servir, meu Senhor!
— Vejo rosas suspensas por outra rosa... Serão para mim?
— Para vós as colhi.
— E viestes de Guimarães?
— Rompendo o cerco e sujeita à minha sorte.
— E que me quereis? Dar-me as boas-vindas? Sabei que o caso será em breve resolvido. Desafiei Henrique de Trastâmara para um combate, no qual a sorte de cada um de nós decidirá a sorte de Guimarães. E espero em Deus que vencerei!
D. Isabel escutava-o, empalidecendo à medida que ele falava. E logo que ele silenciou ousou defrontá-lo.
— Senhor! Para impedir esse combate é que vim, expondo a honra e a vida.
Sobressaltou-se D. Fernando.
— Que dizeis? Impedir-me?...
A jovem baixou o olhar. Não podia sustentar a expressão irónica daquele que era tudo para ela.
— Senhor! Venho implorar-vos que desistais desse combate, que honra todos os habitantes de Guimarães mas simultaneamente os aflige. Se tivermos de morrer para que a vossa vida se mantenha, fá-lo-emos de bom grado!
Franziu o rei o sobrecenho.
— Foi o alcaide quem vos mandou?
Silêncio embaraçoso se seguiu. E a pergunta surgiu de novo:
— Foi o alcaide quem vos mandou?
Ela abanou a cabeça numa negativa, sem forças já para rebater a voz do rei. Ele mostrou-se altivo.
— Ainda bem que não mentistes. Acabo de receber o mensageiro que enviei a Guimarães, e todos esperam confiantes a vitória do seu rei.
Uma revolta íntima tornou audaciosa a timorata donzela.
— Senhor, sei que nada posso valer para vós! Para mim, porém, a vossa vida vale mais do que todo o Reino! Se as lágrimas de uma donzela podem alguma coisa na vossa decisão, ponderai, antes de a tornar definitiva, que sois rei de Portugal e que tendes mais deveres a cumprir do que expor a vida por uma só cidade!
O rei levantou-se, sereno, mas firme.
— Dona Isabel de Lira! Há duas horas que partiu para o acampamento de Henrique de Trastâmara o mensageiro que é portador do meu desejo de um combate singular para pôr termo ao cerco de Guimarães. Chegais portanto tarde, senhora!
A jovem mordeu os lábios. A sua decisão estava tomada. A sua atitude, tão afrontosa para as damas do seu tempo, já não seria remível. Portanto, que ao menos não fosse tudo perdido. Mais pálida ainda, D. Isabel sustentou o olhar do rei. Fraca mas firme soou a sua voz:
— Senhor!... Tomai estas rosas, símbolo da vida bela e espinhosa. Mas ficai apenas com as suas pétalas, e que eu leve enterrados no meu coração todos os seus espinhos!
Mostrou-se o rei um tanto embaraçado e tentou gracejar:
— Esperai, senhora! Dissestes ao entrar que todas essas rosas seriam para mim, e agora reparo que só metade me ofertais...
Foi a vez da jovem se mostrar serena e altiva.
— Não são para vós mais do que essas que vos entreguei.
— Então para quem as levais?
— Para quem me escutar melhor.
Sorriu D. Fernando.
— Ireis ofertá-las à Virgem? Não me molesta a preferência.
Altiva, embora tão branca que assustou D. Aires Gomes da Silva, aio do rei português, a jovem replicou:
— Talvez breve possais saber quem recebeu de mim as rosas que não aceitastes!
— Mas, se as não recuso, como ousais falar assim?
— Recusais atender o pedido mais justo que uma pobre dama indefesa pode fazer ao seu rei!
E beijando-lhe a mão:
— Que o Céu vos cubra de glória!
Sem dar tempo a que D. Fernando saísse da estupefacção em que a jovem o deixara, D. Isabel saiu da tenda, e em breve se embrenhou nas trevas da noite.
O rei chamou então:
— D. Aires, prendei essa jovem! E preciso protegê-la, porque pressinto que fará loucuras!
Sereno, D. Aires replicou:
— Partiu como gazela acossada... Sabe-se lá onde já poderá ir!
O rei irritou-se.
— Não me digais que sois impotente para encontrar uma jovem acabada de sair desta tenda! Ide e trazei-ma!
Mas Aires Gomes da Silva compreendera o caminho que D. Isabel tomara, e em seu coração aprovou entusiasticamente essa decisão heróica. Sem que o suspeitassem, pusera à disposição da donzela um fogoso cavalo e mantimentos para algumas horas...
A entrada no acampamento inimigo foi bastante difícil para D. Isabel de Lira, tomada como espia e como tal levada à presença de D. Henrique. Este mostrou-se, todavia, curioso e benévolo. Interrogou-a:
— Donde vindes?
— De Guimarães, Senhor.
— E que pretendeis?
— Entregar-vos rosas da cidade que estais cercando.
— Achais natural esse vosso gesto?
— Foi ele que me ditou visitar-vos.
— E então... Que mais pretendeis?
— Sei que deve ter acabado de chegar ao vosso conhecimento um estranho pedido do rei de Portugal.
— Como o sabeis?
— Ouvi dizer. Ele desafiou-vos para um combate singular.
— É certo. Vindes dizer-me que ele desistirá?
— Infelizmente, não. Mas sabeis como esse combate seria desastroso tanto para Portugal como para Castela. Achais que a minha cidade merece o sangue de um rei e o destino de um povo?
Franziu o rei castelhano as sobrancelhas bem desenhadas. Levou a mão ao queixo, concentrou-se por uns momentos. Depois, voltou a olhar a jovem.
— Dizei-me: por que fazeis isto? Foi ele quem vos pediu?
— Juro-vos que não! A ele fui primeiro, e rejeitou a minha súplica! Mas vós, que tendes mais terras para conquistar, um futuro largo à vossa frente, achais que vale a pena sacrificar tudo por Guimarães?
— E que quereis que faça? Sou também rei e não poderei fugir ao desafio de D. Fernando!
— Podeis, sim! Os nobres que vos rodeiam decerto temem por vós como eu temo por ele. Os guerreiros que ora estão aqui podem seguir para outros lugares de maior proveito para vós. Podeis levantar o cerco e partir.
— Como quem foge? Será impossível!
— Como quem tem pressa de chegar primeiro a outro lugar. Sabeis que o rei de Granada não vos deixará muito tempo livre. Podeis ir acudir ao vosso reino, bem mais precioso para vós do que este palmo de terra!
O rei castelhano não respondeu. A jovem tinha razão. Havia poucas horas que um mensageiro vindo de Algeciras viera dizer-lhe que a cidade caíra em poder do rei mouro e fora demolida.
Henrique de Trastâmara olhou demoradamcnte a jovem portuguesa. Sorriu-lhe intencionalmente. Tomou-lhe das mãos as rosas que iam emurchecendo, e declarou, solene:
— Ide em paz! Comigo ficarão as rosas de Guimarães, cujos espinhos serão tão fracos que não farão derramar sangue. Ide! E mandai dizer ao vosso rei que nos encontraremos um dia noutro campo de batalha que não este.
Na verdade, o cerco de Guimarães foi levantado, o combate anulado, e o rei de Castela saiu a caminho de Bragança, passando em seguida para o seu reino. E nunca o povo soube, ao certo, porque fizera isso Henrique de Trastâmara!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 381-386
- Place of collection
- GUIMARÃES, BRAGA