APL 2789 Lenda do Juramento do Condestável
No ar passa um frémito de inquietude. O vento leve e morno levanta a terra poeirenta. Canta uma cigarra algures. Só esse pequeno grito corta o silêncio do campo. Respira-se pó e expectativa. A alguns metros — talvez cem… talvez duzentos... — estende-se o arraial português. Ali, o silêncio encontrou a morte. Mas também não há gritos, nem impropérios, nem gargalhadas. Apenas o ruído normal e monótono de um ajuntamento organizado…
Ano de 1385. Princípios de Outono. Folhas que murcham, queimadas pelo sol ardente que dardejou com raiva sobre os seus corpos onde corria a seiva… Depois da batalha de Aljubarrota, D. Nuno Álvares Pereira e D. João I haviam combinado separar-se em Santarém. E cada um deles, seguindo sentido oposto, comandaria as conquistas que se apresentassem necessárias ao remate de tão retumbante vitória. Nessa ordem de ideias, D. João I fez-se ao norte, enquanto o condestável do reino seguia para o sul do Tejo, na disposição de se internar na Espanha. Assim passou de Évora a Estremoz, onde mandara reunir as suas tropas a fim de angariar mais alguns homens. Quase todo o mês de Setembro foi preenchido com estes preparativos. E o dia 1 de Outubro chegou — véspera da abalada de Estremoz em direcção ao Guadiana. A azáfama recrudesceu. O entusiasmo era grande. Nun’Álvares tinha o condão de electrizar todos os seus homens.
A tarde aproximava-se do fim. O calor amainava. Uma cor rubro-laranja espalhava-se no firmamento, prenúncio de novo dia quente a suceder a esse. Sentado sobre um banco improvisado, Nun’Álvares fechara os olhos para ver melhor as imagens do seu pensamento. De súbito, notou algo de estranho perto de si. Abriu os olhos. Alguém queria falar-lhe, mas embargavam-lhe a passagem. Então, resoluto, o condestável levantou-se e foi ele próprio averiguar de que se tratava.
Uma mulher de aspecto modesto amarfanhava a sua natural timidez num rasgo de ousadia e, ao vê-lo, estendeu-lhe os braços, suplicante:
— Senhor, eles não querem que eu vos fale! Mas graças a Deus vos vejo!
Numa voz habituada ao comando, o condestável inquiriu:
— Que pretendeis? Não sabeis que é proibida a mulheres a entrada no arraial em vésperas de partida?
Humilde, a mulher baixou os olhos.
— Sei, meu senhor... e eles não se cansaram de mo repetir...
— Então?
Novo rasgo de audácia obrigou-a a levantar os olhos e a voz.
— Senhor... não me demorarei... Mas quero fazer-vos um pedido a sós!
Surpresa da parte de quem escutava.
— A sós?
— Sim, meu senhor! Não quero que me ouçam.
E a mulher indicava com um gesto disfarçado a soldadesca que a fitava. D. Nuno Álvares Pereira olhou-a por um momento. Depois aquiesceu:
— Seja! Atender-vos-ei junto daquela oliveira.
— Que Deus vos guarde, senhor!
Junto da oliveira e longe de ouvidos indiscretos, o condestável voltou a examinar essa mulher do povo.
— Pronto. Aqui, os meus soldados ver-nos-ão mas não poderão ouvir-vos. Que me quereis?
A mulher suspirou fundo, como que necessitasse de alento para prosseguir:
— Senhor... Perdi o meu homem em Aljubarrota!
— E precisais de auxílio, não é assim?
O rosto da viúva exprimiu surpresa.
— Ainda não vos pedi dinheiro, senhor… embora vos tenha dado o meu melhor tesouro...
Foi a vez do condestável D. Nuno patentear surpresa.
— Explicai-vos melhor...
— Tentarei, senhor... Perdi meu marido há mês e meio. E agora levais-me o resto!
As lágrimas começaram a deslizar pelo rosto enrugado dessa velha precoce. D. Nuno franziu as sobrancelhas numa interrogação, que começou muda e se articulou depois:
— Que vos levo eu?
— O meu filho!
— Está alistado?
— E faz parte do terço que comandais.
— Quem é ele?
— Tem o nome do pai: António Bento.
— Que idade tem?
— 17 anos...
— É, então, voluntário...
— E valente, como o pai!
Calou-se por instantes. Chorava baixinho. D. Nuno falou-lhe com doçura.
— Que desejais de mim? Que proíba a sua partida?
A mulher levantou a cabeça num gesto rápido.
— Oh, não! Isso seria uma afronta para o seu orgulho! Nem sequer desejo que ele saiba que vos vim falar disto, mas... não tenho mais ninguém no mundo... E ele é doente… sofre do peito... tem tosse... apanha resfriados com facilidade... Se ele morre, tudo acabará para mim...
D. Nuno sentiu uma piedade instintiva por essa mãe viúva. Tornou, solícito:
— Ele é da peonagem?
— Sim... mas monta muito bem a cavalo. No tempo do pai, o senhor D. Afonso, o amo para quem trabalhava, ensinou-o como a um menino rico. Verá que ele tem modos assim de fidalgo!
— E esse D. Afonso não pode cuidar de vós, agora?
A mulher baixou de novo a cabeça, coberta por um lenço negro. A voz tornou-se quase inaudível.
— O nosso fidalgo... passou-se para o bando do mestre de Alcântara...
— Compreendo. E... o teu filho, devendo-lhe tanto, não o seguiu?
— Nem ele... nem o pai! Somos por Portugal e por el-rei D. João, nosso senhor.
O condestável sorriu.
— Hei-de cuidar do vosso rapaz, acreditai. Vou fazê-lo meu pajem de lança e desse modo poderei vigiá-lo de mais perto. Juro-vos, boa mulher!
Dois olhos marejados de lágrimas ergueram-se para o condestável do reino.
— Que Deus vos recompense, senhor!
— Que mais desejais de mim?
— Que não conteis uma só palavra do que vos disse. Não quero que os outros se riam do meu pobre António!
Por entre as lágrimas surgiu um sorriso triste, e ela murmurou ainda:
— O meu filho diz a todos que é o mais forte do Mundo!...
Agora, os soluços embargavam-lhe a voz. Agitavam-se os seus ombros na ânsia de os dominar. O condestável, cada vez mais apiededado, colocou uma das mãos sobre um braço da pobre viúva.
— Acalmai-vos e parti descansada! Cumprirei tudo quanto vos disse. E se Deus me ajudar, dentro de duas semanas estaremos de volta!...
Uma espécie de manto fantasmagórico anunciava a chegada de um novo dia. Segundo a segundo, a claridade foi crescendo, num ritmo de vida. Aproveitando a neblina, todo o exército de D. Nuno Álvares Pereira levantou arraiais e fez-se ao caminho. Ao fim da tarde, porém, o condestável mandou fazer alto. Uma ideia o obcecava. Um pensamento que vinha com ele e se tornava imperativo.
Depois de dar aos seus homens ordem que descansassem um pouco, D. Nuno começou a afastar-se, acompanhado apenas pelo seu novo pajem de lança. O terreno, como um mar tranquilo, estendia-se na sua frente. Era uma paisagem calma, serena, sem obstáculos à vista, que convidava à meditação. Levando o cavalo a passo, o condestável parecia alhear-se dos problemas que ali o retinham. Porém, eram esses mesmos problemas que o queimavam por dentro, como fogo. Quando já ia distante e a coberto, por uma pequena elevação, dos olhares de quantos deixara para trás, D. Nuno Álvares Pereira estacou e fitou o seu pajem.
— Ficai aqui, António Bento. Segurai o meu cavalo. Preciso de estar só.
Submisso, o jovem fez que sim com a cabeça. D. Nuno afastou-se um pouco mais. De súbito, caiu de joelhos. Cruzando as mãos sobre o peito e olhando o céu, os seus lábios ficaram largo tempo murmurando uma oração:
— Senhora Mãe de Deus! A responsabilidade que pesa sobre mim é enorme. Não é pela minha segurança que temo, bem o sabeis. É por terra que é vossa e por estes vossos filhos que eu arrasto para uma glória incerta! Se falhar… que se salve a maioria, já que uma batalha sem mortos não é de prever. E, já agora, olhai particularmente para este moço que me acompanha e se chama António Bento! Prometi velar por ele, jurei que o faria… mas só de Vós depende eu poder cumprir tal juramento, Senhora! A Vós confio a minha missão! E se em breve voltarmos vitoriosos, prometo-Vos mandar construir aqui, neste mesmo lugar decerto onde agora estou orando, uma capela em Vossa honra.
Terminada a oração, D. Nuno tornou com o pajem para junto dos seus homens. À voz de comando do condestável, o exército voltou a movimentar-se como se fosse uma grande máquina. No dia 2 de Outubro de 1385 passavam o Guadiana e acampavam em Castela. Passaram entre Olivença e Valverde, chegando um pouco mais além. Dia a dia, o avanço ia progredindo, tomando aldeias e confiscando o gado. E o momento crítico chegou. Milhares e milhares de castelhanos, reforçados pelos portugueses que atraiçoaram a causa do seu rei, cercaram o condestável. E, numa atitude presunçosa, o novo mestre de Alcântara decidiu enviar a D. Nuno Álvares Pereira um mensageiro português!
Quase frente a frente, ambos serenos e altivos, os fidalgos olharam-se friamente antes de se cumprimentarem. As feições rígidas de qualquer deles mostravam que o momento seria decisivo. Vendo ao lado do seu adversário o jovem António, o mensageiro — que era o seu antigo amo — teve um sorriso sarcástico. E antes de se desempenhar da sua missão quis ainda magoar o pobre rapaz que o não quisera seguir. Numa voz de desafio, exclamou:
— Estais bem acompanhado, senhor D. Nuno Álvares Pereira! Vejo que tendes como pajem um criado que foi das minhas cavalariças...
Sorriu D. Nuno e ripostou no mesmo tom de ironia:
— Sois então D. Afonso, o renegado, não?
— Afonso Teles, lugar-tenente do mestre de Alcântara!
— Ah, sim? Pois declaro-vos que me sinto mais honrado com a presença de António Bento, ex-moço de estrebaria, do que falando com um fidalgo português que vendeu o seu país a troco de honras passageiras!
Chocado, D. Afonso abriu a expressão do rosto num sorriso mau, e tornou:
— O mal tocou a muita gente boa, senhor D. Nuno Álvares Pereira! Acaso vos esqueceste já de vosso irmão?
Atingido em pleno peito, remexida uma das feridas mais vivas do seu coração, D. Nuno resolveu não responder directamente e enveredou por outro assunto.
— Acabemos com isto, senhor! Qual a mensagem que me trazeis?
O lugar-tenente do mestre de Alcântara empertigou-se mais no seu cavalo e, indicando algo que trazia consigo, disse com calma aparente:
— Aqui tendes a mensagem, senhor! Todos os fidalgos castelhanos enviam-vos estas varas e o seu desafio!
Serenamente também, embora com expressão endurecida, D. Nuno volveu:
— Pois ide dizer a quem vos mandou que guardarei o feixe das varas para os vergastar a todos, logo que nos encontremos frente a frente!
Sem resposta, D. Afonso deu de esporas ao cavalo e voltou correndo, perdendo-se no horizonte, numa nuvem de poeira. Por momentos, D. Nuno deixou-se ficar no mesmo lugar. Depois, fazendo sinal a António Bento para que o seguisse, exclamou:
— Não teremos tempo a perder. Ou agora, ou nunca!
A aldeia de Valverde parecia nesse momento fazer parte do inferno. Castelhanos e portugueses combatiam com força e ódio. O pó punha crostas dolorosas nas gargantas ressequidas. O sangue que das feridas corria deslizava grosso, aumentando de volume ao misturar-se com o pó dos campos revoltos. Gritos e imprecações misturavam-se com o tilintar das armas. E os corpos confundidos dos inimigos em luta punham no quadro desse fim de dia uma nota de tragédia.
Porque os castelhanos eram em número muito superior, a bata teve momentos aflitivos para o exército português. Mas D. Nuno, refugiando-se uma vez mais na oração, voltou à peleja como que remoçado. E dentro em breve o seu entusiasmo estendia-se aos seus companheiros, que puseram em debandada os castelhanos. Quase sem se darem conta, os portugueses sentiram-se, de súbito, sozinhos em campo. A batalha estava ganha!
E conta a antiga lenda que D. Nuno Álvares Pereira, de regresso a terras do Alentejo, mandou construir, tal como havia prometido, uma capela à Senhora da Orada, precisamente por aí ter orado. E buscando uma certa mulher do povo, viúva e pobre, mandou-lhe pedir que viesse à sua presença. Depois, sorrindo, confiou-lhe:
— Nossa Senhora fez-me a graça de poder cumprir a minha jura! Trago-vos sãos e salvos António Bento — o vosso tesouro — e a nossa pátria! Sinto-me feliz por isso!
E o sol do Alentejo, quente e fecundo embora já de Outono, pareceu sorrir ainda mais na sua expressão de fogo, tingindo de um modo rosado e estranho a linha distante do horizonte...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 243-248
- Place of collection
- SANTARÉM, SANTARÉM