APL 867 D. Mariana de Lencastre
Graças ao nosso rei D. João IV havia já anos que Portugal vivia a sua feliz independência. Apesar de tudo o monarca português, temendo alguma cilada dos Castelhanos, tinha mandado pôr guarnições em todas as praças fortes fronteiriças entregando-as ao cuidado de honrados e ilustres fidalgos.
Monção, uma dessas praças portuguesas, sentia-se ameaçada, mas D. João IV, prevendo o perigo que podia correr, confiou-a a um dos mais ilustres cavaleiros portugueses: D. João Rodrigues de Vasconcelos. A ele foi confiado esse cargo elevado por ter praticado actos importantes por terras de Cartagena das Índias e do Nordeste Brasileiro, vindo a tornar-se notável fidalgo.
O ataque a esta praça seria muito fácil, pois o único limite: era um pequeno curso de água, ao qual davam o nome de rio Minho.
Um certo dia vieram a Monção alguns fidalgos visitar o governador. Em face disto, o ilustre hóspede organizou uma festa pomposa para todos os nobres, e os seus representantes, que o quiseram visitar nesta terra portuguesa. Um dos cavaleiros que assistia ao festim recitava passagens emocionantes dos “Sermões” de Padre António Vieira, um dos melhores oradores da época. Toda a atenção das damas e cavaleiros estava voltada para as palavras daquele fidalgo, quando a porta se abriu discretamente. Um dos escudeiros, sem que fosse visto, entrou, aproximou-se de D. João Rodrigues de Vasconcelos e segredou-lhe qualquer coisa que pareceu ser acatada com mau humor. O governador disse à sua esposa, que se encontrava a seu lado, que fizesse as honras da casa porque ia ausentar-se e não sabia se demoraria. Quando chegou ao salão de visitas viu que era Pedro de Bettencourt, capitão de armas, que queria falar-lhe. Bettencourt inclinou-se respeitosamente para o saudar e apressou-se a pedir desculpas por ter interrompido a sua festa, mas que o fez visto se tratar dum perigo para a Pátria. O governador, que não sabia de nada, encheu-se de curiosidade e pediu que lhe contasse o sucedido imediatamente. Então este começou por dizer que uma contrabandista, que acabava de chegar de Espanha, trazia a notícia de que um grosso corpo de soldados Castelhanos estavam preparados para vir atacar Portugal, e por isso o melhor era reagir imediatamente.
Momentos depois D. João de Vasconcelos voltava ao salão do festim com ar carregado e preocupado, mas D. Mariana leu no semblante do marido qualquer coisa de extraordinário, e perguntou se tinha más notícias. D. João de Vasconcelos explicou a razão da sua preocupação, o que inquietou um pouco sua esposa.
A noite veio e Pedro Bettencourt, que a mandado do governador tinha ido com soldados fazer pesquisas, não aparecia. O governador deixou sua casa, e foi debruçar-se nas muralhas da fortaleza. Tudo era silêncio, apenas se ouvia o rumor das águas límpidas do rio, onde a lua se reflectia. De repente um barulho estranho o fez despertar daquela sonolência. Olhou e viu um barquito que vogava apressadamente o rio. Correu à margem e viu que era o seu emissário.
- Então, o que é feito da tua gente? Interrogou ansiosamente o Conde.
- Nem eu sei ao certo, respondeu Bettencourt. Deixei tudo e vim preveni-lo, pois a nossa Nação precisa de socorro imediato.
Ao outro dia, encostadas às muralhas da fortaleza, viam-se mulheres e crianças chorosas que se despediam dos maridos e dos pais. Eles partiam para servir a Pátria e defender o seu Rei, pensava D. Mariana, que também via naquela multidão de homens o seu marido. Antes de se separarem ele tinha-lhe dito que se durante três dias não recebesse notícias suas, é porque fazia parte daqueles que haviam dado a sua própria vida pela honra da Nação!
Três dias se passaram sem que houvesse notícias. D. Mariana sentia o seu coração estalar de dor e angústia, e a todo o passo parecia ver diante de si a figura exangue do marido a sucumbir. Estava na verdade abatida e desde que ele partira não tinha dormido uma só hora. Olhava com saudade o futuro, e sentia cada vez mais morrer em si a esperança de o ver com vida diante dos seus olhos. O que seria feito dele? Todos o ignoravam. Talvez, como o próprio governador avisara, fizesse já parte daqueles que deram o seu sangue pela Pátria. Entrou nos seus aposentos e tudo parecia inerte, muito vago e banal. Ajoelhou-se em frente da imagem de Jesus, e durante uma hora os seus joelhos firmes no pavimento não se mexeram e o seu pensamento corria de encontro a quem a podia auxiliar. Orava pelos irmãos de armas de seu esposo, por ele, pela Pátria, pelo Rei; as suas orações pareciam não ter fim. Seguidamente levantou-se sem o menor ruído, correu ao seu quarto e deixando-se cair em cima do luxuoso leito, assim permaneceu durante toda a noite. Mal conseguia adormecer. Noite dentro, acordando em sobressalto, correu às muralhas julgando alcançar qualquer esperança; mas tudo era sereno e mudo e nesta ansiedade permaneceu até que qualquer coisa surgiu em terras espanholas: um grupo de cavaleiros portugueses, de ar carregado, olhos no chão, caminhavam calados e inquietos. À frente vinha D. João de Vasconcelos, com a mesma expressão dos seus camaradas:
D. Mariana, ao ver tão esperado cortejo, pareceu ficar louca de alegria e entusiasmo, mas, passados minutos, começou a admirar um dos espectáculos mais horríveis da sua existência. Um grupo de espanhóis, galopando abertamente, surgiu de entre os matagais de silvas e choupos! Aparecendo de surpresa frente a meia dúzia de almas Portuguesas extenuadas, julgaram resolvida a contenda. O combate começou e a agilidade dos nossos era extraordinária; mas que poderia fazer tão pouca gente contra aquela multidão de piratas cruéis?
A Condessa, dentro das muralhas de Monção, assistia a esta peleja. Vendo o seu esposo defender-se com coragem e bravura dum bando de galegos; vendo os seus irmãos caírem cobertos de sangue, ensopados em pó, não pôde resistir. Correu a chamar auxílio para aqueles infelizes que acabavam de suspirar. Nada conseguiu; as forças eram quase nada, e de nada servia a sua parca resistência, pois acabariam por fazer companhia aos que faziam já parte dos mortos.
Não desanimou, porém, a heróica mulher. Pediu que lhe trouxessem imediatamente todas as munições que existissem na praça de Monção. Toda a gente trabalhava: uns levavam os canhões, outros traziam pólvora, e até a própria Condessa ajudou a colocar na margem do rio as peças de artilharia.
Soou o primeiro tiro quando acabava de aparecer novo grupo de soldados inimigos, os quais foram ceifados imediatamente pela metralha. Outra e mais outra, as balas partiam e um fumo cheirando a pólvora queimada espalhava-se no ar. Dentro em pouco o combate tinha fim com a vitória dos Portugueses, e os poucos que escaparam àquele cruel combate já atravessavam o rio Minho em quatro batéis. D. Mariana, trémula, mas com um sorrir de heroicidade no rosto, esperava a chegada dos barquitos.
Enfim, chegaram, e todos a felicitaram e lhe agradeciam a vida, mas, sentindo-se ela elevada em demasia por aqueles que viram diante de si a sombra terrível da morte, afirmava que nada de maior tinha feito por eles ou pela Pátria. Apenas tinha cumprido o seu dever. O seu marido, que até ali tinha estado calado e pensativo, disse, com lágrimas nos olhos:
- Não sei que encanto ou que fado tem esta terra, Senhora. Porque faria Deus as mulheres de Monção tão grandes heroínas?
- Não é justo que se chame a uma mulher, que não fez mais que o seu dever, uma heroína, retorquiu D. Mariana.
Afastado o perigo e dando asas à alegria, subiram todos à praça para festejarem tão grande fortuna.
- Source
- CAMPELO, Álvaro Lendas do Vale do Minho , Associação de Municípios do Vale do Minho, 2002 , p.101-103
- Place of collection
- MONÇÃO, VIANA DO CASTELO