APL 713 Lenda do mar encoberto

Quando Allah aqui andou,
Quer de noite quer de dia,
Diz a lenda que Ele amou
Terras de Santa Maria.

E mais conta a lenda ainda,
Vinda de além das esferas,
Que era a luz aqui mais linda,
As flores e as primaveras.

E até as águas do mar
Eram mundos de prazer,
Onde à noite iam cantar
Sereias de endoidecer.

Posto que o povo sofresse
Horrores de escravidão,
Quem aqui viver pudesse
Tinha sóis em cada mão.

Trazia cores pintadas
Nos seus olhos de sofrer,
Quando a luz das madrugadas
De longe vinham nascer.

Era Al-Gharb, mesmo assim
Sob o ferro do inimigo,
O perfumado jardim
Mais belo do mundo antigo.


*
E foi tal por muitos anos,
Por longos séc’los sem conta,
Que aqui sempre os muçulmanos
Aos cristãos deram afronta.

Mas os fortes portugueses,
Nunca dados por vencidos,
Puliam lanças e arneses
Em combates destemidos.
 
Foi a terra posta a fogo,
Em duras lutas viris;
Se um cristão morria, logo
Outro vinha.., a lenda o diz.

Era tanto o destemor
Da forte gente cristã,
Que o dia, p’ra ser maior,
Não tinha noite ou manhã.

E Allah, dos seus longes mundos,
Mais sofrendo que vivendo,
Via, com olhos profundos,
Seus homens irem morrendo.

Davam-se, assim, tanto à morte,
Tais perros, por que razão?,
Como se vissem a sorte
Ou p’ra a alma a salvação.
 
Mas como o bem finda em bem
E a santa causa era justa,
Os portugueses, porém,
De alma pura e fé robusta,

Puseram ponto final
Na luta da reconquista;
Era enfim, de Portugal,
O Gharb, a perder de vista.

*
Da derradeira batalha
Uma só moira ficou...
Era Fathma, uma migalha
De tudo que Allah deixou.

Mas era linda, tão linda,
Tal mulher, por sua vez,
Como outra não vira ainda
O forte rei português,

Que logo ali a tomou
Nos braços para noivar...
Mas Allah a encantou,
Por fazê-la água do mar.

Viu-se El-Rei ali tão só,
Tendo as suas mãos vazias,
Que certamente chorou
Por longas noites e dias.

E já quando nada esp’rava
Dessa visão encantada,
Ele ouviu, por noite brava,
Uma voz descompassada.

Vinha lá dum outro mundo
Havido p’ra além do fim;
Era rouco o som profundo;
Deus Allah falava assim:

“Não pode a filha do Islão
“Ser mulher, por mais que queira,
“Do rei que, por ser cristão,
“A não tem por companheira.
 
“Venceste as gentes de Allah,
“Em Fathma puseste os olhos,
“Porém, de aí te virá
“Sonhos, tormentos, escolhos,

“Que ela feita água do mar
“Fio meu poder sem limites,
“Longe vos há-de levar
“Para assim ficarmos quites.

“Que Fathma há-de guiar-vos
“Por mares desconhecidos,
“Onde o sangue irá ficar-vos
“Dos vossos filhos perdidos.
 
“Não será agora, não,
“Mas de aqui a muitos anos,
“Que outro vosso rei cristão,
“Vos levará, lusitanos,

“Por uma louca ambição,
“Lã mais longe, aqui não perto,
“Para vossa perdição,
“Nesse mar negro e encoberto”.

Nada mais então se ouviu
Que a fala da tempestade,
Mas El-Rei não mais dormiu,
Nessa noite, na verdade.

* *
E mais diz agora a lenda
Que o Português destemido
Se entregou à luta horrenda
De levar o mar, vencido.

Uma voz sempre o guiava:
Era Fathma, a moira linda,
Cujos rumos lhe traçava
Na estrada do mar, infinda.

E lá foi, vencendo a morte,
Uma vez e tanta vez,
Que o mar - a razão mais forte -
Passou a ser português.

Source
LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas , Edição do Autor, 1995 , p.96-101
Place of collection
OLHÃO, FARO
Narrative
When
20 Century, 80s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography