APL 722 Uma lenda para lagoa
Naqueles tempos antigos,
Em tempos que já lá vão,
Viviam como inimigos
Os Povos moiro e cristão.
Era a guerra sempre acesa,
Tremenda, brava e cruel,
E, ao redor, a natureza,
Se tinha gosto, era a fel.
Quando a luta se travava,
Por dias, meses, semanas,
O valor nunca faltava
Nas batalhas sobre-humanas.
Então o sangue corria,
Tinto já de maldição,
E de vermelho tingia
A cor cinzenta do chão.
Até uma fonte umbrosa,
Que vivia a sós e langue,
Tinha a lágrima chorosa,
Vermelha da cor do sangue.
Amainava a tempestade
Das batalhas figadais
De intestina crueldade,
Por momentos, nada mais.
Logo voltava mais forte,
Farta, feroz e fecunda,
Dando a vida à própria morte,
Cavando a vida mais funda,
Porque o Deus mandava assim
- Moiro Allah, Luso Cristão -:
Quem morresse nesse fim
Mais vida teria então.
Mas um dia... há sempre um “mas”
Vivendo dentro da gente...
Alguém viu renascer as
Horas de paz, finalmente.
É porque de Estômbar vinha
Uma veloz cavalgada,
Sem nenhum preceito ou linha,
De fugida, à desfilada.
Fora além arremetida
Por El-Rei de Portugal;
Desbaratada e vencida,
E desfeita, por seu mal.
De pronto a gente cristã,
Já feito o sinal da cruz,
Via num outro amanhã,
Renascer uma outra luz.
Tantos sóis de sofrimento
Deviam ter seu ocaso,
Pois que a dor mais o tormento
Ao sorriso deram aso.
Porém, não foi tanto assim,
Porque logo ao outro dia,
Pela voz dum muezim,
Uma voz de Além dizia:
Vós outros que nos vencestes,
“Por mor de força cruenta,
“Não sabeis, gentes agrestes,
“Quanta dor, quanta tormenta,
‘Vos espera no futuro...
Era o som cavo e profundo
Que vinha - se bem me apuro -
De bem longe, de outro mundo...
“Há-de chover tanto mal,
“Tempestades, terramotos,
“Que heis-de viver, afinal,
“Atormentados e ignotos.
“E a moura, que levais presa,
“Não há-de ser vossa, não!
“Não há-de ela ser riqueza
‘De algum príncipe cristão...
A voz se finou, depois,
Aos ouvidos dessa gente,
Porque lá dos altos sóis
Deus Allah, abruptamente,
Emudeceu e calou-se...
Mas o silêncio da noite
Que era negro, em vez de doce,
Doía como um açoite.
Que feito foi da princesa
Que um infante português
Alcançou, por sua presa,
Na luta dura e soez?...
Conta-nos, agora, a tenda,
Que tão valente guerreiro
A levou pra a sua tenda,
Sendo dela prisioneiro.
Quis tomá-la por esposa,
Depois de a fazer cristã...
Mas... ai!... ó enigma cousa!...
Era morta uma manhã...
Era morta, espedaçada,
E o sangue dela corria
Naquela terra impregnada
De vermelho, em pleno dia.
E de novo a voz se ouviu
Cava, profunda, serena:
Cristão, de que serviu
“Qu’reres mulher sarracena?
“Ou Allah não fosse o Deus
“Senhor dos encantamentos...
“Só por isso, filhos meus
“Não tendes em casamentos...
“Agora, pra teu castigo,
“Aos dois eu vou encantar...
“Vou assim, luso migo,
“Em lagoa transformar
“O choro que dos olhos fundos
“Do teu peito há-de brotar...
“E a estes chãos infecundos,
“LAGOA eu irei chamar...
“E do sangue derramado
“Do corpo de minha filha,
“Um licor avermelhado
“Vos deixo, por maravilha...
“Heis-de o beber, pouco a pouco,
“Jamais vos matando a sede,
“Para que vós, pobre louco,
“O deis a quem vo-lo pede...
“Para sempre assim será,
“Enquanto mundos houver...
E a voz profunda de Allah
Não mais se ouviu, por mister.
Passaram anos, mais anos,
E, aos poucos, foram nascendo
Daqueles chãos improfanos
Verdes vinhas que só vendo
Se podem imaginar
Cheias de vida e de sumo
De um licor que, ao paladar,
Empresta rumos ao rumo.
E foi esta a história horrenda
Que a História ainda apregoa...
Mas daqui nasceu a lenda
Do bom vinho de Lagoa...
- Source
- LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas , Edição do Autor, 1995 , p.166-171
- Place of collection
- Lagoa, LAGOA, FARO