APL 1394 O labrego e o par de sapatos

A tia Freitas contava que numa noite de Outono, do dia vinte oito de Outubro, em que a igreja celebra o dia dos Santos Simão e Judas, no lugar da Ponta da Ilha, na Piedade, uma família fazia serão, e tinha-se enjeirado a descascar as primeiras maçarocas de milho que tinham sido apanhadas, quando bateram à porta.
 O pai mandou um dos filhos abrir e apareceu um desconhecido que lhes pediu pra guardarem por algum tempo um par de sapatos muito bons.
 Acharam estranho, mas acederam ao pedido e puseram-nos num canto do arquibanco.
 Passaram mais de dois meses e o dono dos sapatos não aparecia para os levar. Às vezes, alguém da família comentava com os outros:
 — Parece que o homem se esqueceu dos sapatos! Bom jeito que nos davam.
 Numa noite somenas, de um para dois de Fevereiro, em que se lembra Nossa Senhora das Candeias, depois de rezarem as orações do costume e enquanto contavam histórias uns aos outros, ouviram uma voz que uivava como o vento:
 — E os sapatos?! Vocês salvaram-se porque comem alho com bugalho e papia de borralho.
 O pai explicou aos filhos do que se tratava:
 — São os labregos que estão lá fora. Vinham à cata dos caturnos que deixaram aqui, quando desceram do mato para o mar, há mais de dois meses. Vocês sabem que o diabo para manter o fogo do inferno aceso, precisa de poderes de lenha e boa. É custoso arranjar essa lenha sobre a terra porque há milhares de cruzes e pias de água benta, por aí, que afugentam os diabos. Os labregos têm de fornecer-se no fundo do mar, onde tão mais à vontade e há muitos poderes de lenha. Quando eles passam para o mar ou voltam para terra, metem-se com as pessoas e podem fazer-lhes mal. E preciso uma boa benzedura ou comer alho para os afugentar. Foi por isso que comemos hoje tanto alho.
 Estavam mesmo na noite dos labregos virem para terra, mas como a família se tinha prevenido, nada de mal lhe aconteceu. Mas ficaram assustados e, no dia seguinte, logo pela manhã, foram enterrar os sapatos que eram pertença dos labregos ou diabos do mar numa cova bem funda, longe de casa, num lugar onde não passavam quase nunca.

Source
FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias , Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.236-237
Place of collection
Piedade, LAJES DO PICO, ILHA DO PICO (AÇORES)
Narrative
When
20 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography