APL 2725 Lenda de Qual Delas
E a história começa assim...
Em certo palácio de certa terra existia certo rei mouro, temível e temido, que possuía duas filhas gémeas, tão iguais no rosto e na voz, na figura e nos gestos, que impossível se tornava para o próprio pai distinguir uma da outra.
E o rei mouro queixava-se amargamente.
— Oh, que castigo o meu!... Quero falar com as minhas filhas e nunca sei qual tenho na frente!
Elas bem o queriam ajudar.
— Meu pai, então?... Bem sabeis que eu sou a Zaida... Pois não me conheceis tão bem?
— E eu sou a Salúquia, meu pai... Olhai bem para mim...
Mas o rei mouro olhava para uma e para outra, e cada vez parecia mais confuso.
— Calai-vos, minhas filhas... Calai-vos, por favor!
Depois, amarfanhado, aturdido, confessou:
— Tenho que vos dizer, filhas minhas, que ao ouvir agora as vossas vozes as confundi de tal modo, que julguei tratar-se apenas de uma só!
As princesas olharam-se, perplexas.
— Oh, senhor meu pai!
— Que havemos nós de fazer?...
O rei ergueu os olhos para o tecto da rica sala onde se encontravam, como que a procurar uma inspiração. Mas a inspiração não apareceu...
A inspiração surgiu alguns dias depois. À força de estudar o assunto, o rei mouro julgou ter descoberto a maneira de diferençar e reconhecer as suas filhas.
Mandou que viessem à sua presença e disse-lhes:
— Agora, sim!... Agora, já sei como hei-de distinguir-vos uma da outra!... Tu, Zaída, usarás uma roca de prata... E tu, Salúquia, uma roca de ouro... Assim, de futuro saberei sempre ao certo com qual de vós estarei falando!
Elas riram-se e aceitaram as rocas, trocando olhares entre si. E quando saíram, o rei mouro voltou a ser assaltado pela dúvida.
— Não teria eu trocado as rocas, ao distribuí-las? Como sabia eu qual era a Zaída e qual era a Salúquia? Isto é de enlouquecer!
Mas o tempo foi passando — e ele não enlouqueceu.
Entretanto, Zaída e Salúquia viviam felizes à sua maneira, sonhando com o futuro. Conversavam muito uma com a outra. Mas a certa altura começaram a entediar-se, porque as suas vozes eram iguais.
— Oh, Salúquia!... Qualquer dia seremos capazes de pensar como o nosso pai...
— Tens razão, Zaída. Somos tão iguais... tão iguais...
— Foi o destino que quis... Quem sabe?... Talvez a maldição de alguma feitiçaria...
— Oh, Zaída, que tormento!... Estou a ouvir a tua voz e parece-me que é a minha!
— Comigo passa-se o mesmo, Salúquia. Penso que o melhor é não falarmos mais uma com a outra, a não ser em caso de absoluta necessidade. Estás de acordo?
Salúquia baixou a cabeça para esconder os olhos chorosos.
— Estou de acordo, sim, minha irmã. Que se cumpra a vontade de Alá!
E daí em diante, com raras excepções, o silêncio passou a reinar entre elas. Até que um dia...
Um dia, passou por ali um garboso cavaleiro e viu-as numa das varandas do palácio. Parou, cumprimentou-as numa vénia, e disse, galanteador e sorridente:
— Que prodígio de maravilha! Jamais em toda a minha vida encontrei tanta beleza junta!
Elas sorriram também, enleadas e confusas. E quiseram corresponder ao amável cumprimento do jovem cavaleiro desconhecido.
Zaída perguntou:
— Quem sois vós, nobre cavaleiro?
E Salúquia ajuntou:
— Vindes de longe, decerto... Quereis descansar?
Ele aproximou-se mais da varanda do palácio, fazendo saracotear o seu cavalo. E confessou:
— Sim, venho de muito longe. Sou um cavaleiro cristão.
Logo dois gritos de susto o interromperam violentamente.
— Um cavaleiro cristão? Que horror!
— Fujamos, irmã, fujamos!
E ambas desapareceram, sem dar tempo a que ele dissesse mais palavra...
O jovem cavaleiro ficou pensativo. Pensativo e preocupado. Das duas, qual lhe teria provocado maior impressão?
Era preciso vê-las de novo, falar-lhes, gritar-lhes o seu deslumbramento.
E sem mais hesitações gritou, com a força da própria juventude:
— Abri as portas do vosso palácio! É um nobre cavaleiro cristão que vos pede!
Houve um silêncio. Curto. Pesado. De autêntica expectativa. E foi a voz autoritária do nobre rei mouro que lhe respondeu:
— As portas do meu palácio não se abrem para deixar entrar cristãos!...
O jovem cavaleiro olhou para o alto das ameias.
— Ah, agora compreendo... Sois um rei mouro, e por isso tendes duas filhas tão belas...
Deu um tom mais suave à sua voz, para concluir:
— Mas isso que importa? De qualquer modo, senhor, desejo pedir em casamento uma das vossas filhas.
Soou uma gargalhada sarcástica. Depois, o rei mouro, mostrando-se bem, clamou com a violência da sua autoridade:
— Em casamento? Sois tolo, cavaleiro cristão! Nunca tereis qualquer das minhas filhas, enquanto o meu alfange puder cortar as cabeças dos nazarenos, tal como posso cortar agora o tronco desta árvore.
E num golpe surdo de raiva, o temível e temido rei mouro cortou cerce o tronco duma linda olaia.
O jovem cavaleiro cristão era teimoso e valente. Fingiu afastar-se, mas voltou pela calada da noite. E, segundo é ainda voz corrente na voz do povo, nessa mesma noite, num assomo de coragem, ele conseguiu trepar a uma das varandas do palácio, iludindo a vigilância das sentinelas mouras. Rondando as janelas iluminadas, descobriu de repente a sala das princesas, onde ambas se entregavam aos queixumes tristes duma bela música.
Quando o viram aparecer de improviso, as duas ergueram-se num sobressalto, com o pavor estampado no rosto. E pareciam mais iguais do que nunca.
Mas o cavaleiro avançou e disse-lhes em tom de segredo:
— Não deveis ter medo de mim. Quero apenas falar com aquela que me encheu o coração... aquela por quem me apaixonei para sempre!
Ambas se entreolharam. E perguntaram, ainda a medo:
— Qual de nós é que procurais, senhor cavaleiro?...
— A mim... ou à minha irmã?
Ele quedou-se, como que aturdido, fitando-as alternadamente.
— Por Deus, como é difícil responder às vossas perguntas!...
Encaminhou-se para uma delas.
— Sois vós... Sim, deveis ser vós… mas...
Olhou a outra, que o olhava também.
— ... mas... talvez sejais vós... Agora reparo melhor... enfim, não sei!
E suspirando fundo, acabou por confessar a sua perplexidade:
— Sim… não há diferença alguma entre vós... Sois absolutamente iguais… Como escolher, portanto?
— Eu sou a Zaída!
— Eu sou a Salúquia!
De novo, ele pareceu desnorteado. E esquecendo-se do perigo em que se encontrava, bradou forte, a traduzir em palavras o seu próprio espanto:
— Mas tendes a mesma voz… os mesmos gestos... a mesma figura... a mesma...
Elas interromperam-no num ar de aflição.
— Silêncio, senhor cavaleiro!... Vem aí nosso pai... Deve ter ouvido vossa voz.
— Fugi, senhor cavaleiro!... Voltai por onde viestes!
Mas era tarde. As portas da sala escancararam-se de par em par e apareceu o rei mouro, já de alfange desembainhado.
— Parai, cobarde cavaleiro cristão! O meu alfange vai cortar-vos a cabeça… como cortou a árvore!
Num salto ágil, o jovem cavaleiro esquivou-se ao golpe brutal do rei mouro. E gritou então, preparando-se para a luta:
— Enganais-vos… porque eu também tenho uma espada! Por momentos, perante os rostos angustiadamente iguais das duas princesas irmãs, travou-se um duelo de vida ou de morte. Mas a juventude acabou por vencer. O alfange voou das mãos do rei mouro e o jovem cavaleiro cristão, sem dar tempo a que ele se recompusesse, desapareceu, gritando:
— Esperai, que eu hei-de voltar!
E na verdade, conforme se conta, voltou pouco tempo depois à testa dum grande exército e pôs cerco ao palácio.
Rodeado pela sua guarda de honra, o cavaleiro cristão avançou até onde lhe foi possível e gritou para as varandas:
— Conforme prometi, aqui estou de novo! Se não queres que arrase o teu palácio, miserável rei mouro, tens de me dar uma das tuas filhas!
Impressionado com a esmagadora superioridade numérica dos sitiantes e não sentindo muitas possibilidades de resistir, o rei mouro pareceu ceder.
— Quereis então uma das minhas filhas?... Mas qual desejais? Qual delas?...
Houve uma pausa. Longa. Dramática. Como que para si próprio, indeciso, confuso, o cavaleiro cristão repetiu:
— Qual delas? Sim… qual delas?
E não sabendo que resposta dar ao rei mouro — nem a si mesmo, sequer — ele deu apenas ordem para o ataque ao palácio...
Tal como se previa, perante forças muito mais numerosas e melhor adestradas para o combate, os mouros depressa foram dizimados. Os guerreiros cristãos entraram no palácio e, numa fúria cega, não pouparam ninguém nem mesmo as duas princesas!
O rei, vendo mortas as duas filhas, não teve mais coragem para resistir, e suicidou-se, tombando junto das filhas, tão iguais na morte como o tinham sido sempre em vida…
Quando entrou, alucinado, em busca da sua bem-amada, o cavaleiro cristão encontrou somente um montão de cadáveres.
E caiu de joelhos, chorando a sua desdita.
— Fui eu o culpado de tudo isto!... Castigai-me, Senhor meu Deus!... Castigai-me, porque eu não soube escolher, meu Deus! Qual delas?...
E o seu apelo angustioso ficou a repetir-se por entre as paredes desse palácio de ruína e de morte:
— Qual delas? Qual delas?...
E para sempre também essa terra ficou a chamar-se a Terra de Qual Delas, designação que se transformou naturalmente em Terra de Caldelas e, por fim, apenas em Caldelas.
E dizem os antigos que ainda hoje existem ruínas desse antigo e nobre palácio, arrasado por via dum complexo e singular problema de amor...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 293-297
- Place of collection
- Caldelas, GUIMARÃES, BRAGA