APL 499 Lenda do rio neiva

Era uma vez um rei chamado Oural, a quem uma terrível feiticeira, invejosa do seu poderio, por todas as terras de entre Lima e Cávado, transformou e, com ele, a bondosa rainha, numa serra escalavrada e nua.
 Os dois infelizes soberanos tiveram, ali, um filho, nascido do ventre materno em forma de fonte, num saltitar alegre e palreiro, de jorro de água, sobre pedras, ervagens e lama.
 Sabendo-o assim, saudável e puro, o rei Oural quis vê-lo crescer, fortalecer, livrar-se das imagens severas das penedias e correr, livre, pelo vale que se lhe rasgava aos pés. Depois de o baptizarem com o nome de Neiva, tão semelhante a Névoa, àquele espesso manto cinzento que lhes envolvia o corpo friorento pelos invernos rigorosos, os pais disseram-lhe um comovido adeus, com as lágrimas a congelarem, brancas, nos peitos duros, como manchas brilhantes de geada.
 Também o Neiva se despediu dos pais, mas numa pressa de jovem ansioso por descobrir novos lugares, sonhando aventuras no percurso até à imensidão do mar, onde iria mergulhar-se e confundir-se.
 Descia, então, vertiginoso, em pequenas cascatas e açudes, o dorso áspero da serra e, ao vê-lo, maravilhadas com a sua beleza, as fontes precipitavam-se, vindas de outros montes próximos, como os de Fojo Lobal, onde vagueava o lobo carniceiro, e de outros locais, como Arêfe, Carvoeiro e Fragoso, para o saudarem, para se lhe juntarem, para lhe aumentarem o caudal.
 Ufanava-se já de um afluente esperto, o Nevoínho. E lá ia seguindo o seu caminho no vale ameno, mais crescido e torrencial, com a voz que fora, apenas, um chilreio de passarinho, a engrossar, a infundir respeito a quem, homens e animais, o avistava das margens, pesado das chuvadas.
 E era com respeito, de facto, que os animais e os homens se debruçavam para o seu leito, dessedentando-se em águas tão límpidas.
 Ladeavam-no, curvando-se sobre ele, os ramos verdes e floridos dos salgueiros, dos ameeiros, dos carvalhos, numa saudação grata que o vento ajudava a prestar-lhe, felizes de sentirem a humidade vivificante a penetrar-lhes as raízes, vinda daquele rio generoso.
 E o Neiva sentia a palpitar-lhe, nas entranhas, cardumes de peixes de prata que o agitavam em breves ondas de prazer.
 E o Neiva escutava, pelos ares que o dosselavam, um frémito de penas, um adejo de asas leves, da passarada gorjeante, de melros e rouxinóis.
 Desde Gondinhaços, aconchegada ao rés do berço, que as casas rústicas, os grandes campos de lavoira, queriam tê-lo como espelho, a reflectirem-lhe a brancura da cal e a fertilidade pujante.
 Também as azenhas beneficiavam da frescura e rapidez das suas águas, com as grandes rodas num giro constante, a prometer a bênção da farinha-e do pão. O luar inundava-o de doçura. Os raios de Sol salpicavam-no de oiro.
 Por fim, o Neiva chegou à largueza da foz, alagando rochedos vestidos de limos e praias de areias claras. E viu o mar!
 Com que orgulho o penetrou, se alargou por ele, se espreguiçou no sal das suas vagas altas, geladas, num arrepio salutar!
 Com que orgulho o recebeu aquele mar profundo e rouco, sempre inquieto, sentindo-se maior e mais brando, na meiguice de acariciar de espuma o corpo fino dos areais, mostrando-se menos perigoso no oscilar do barco de pesca, no arremessar à costa as grossas tiras castanhas e oleosas do sargaço fertilizante.
 E o Neiva, súbito, reconheceu que era ele a alma viril de seu pai, prisioneira da maldade de um feitiço, de novo a fecundar de abundância e a fazer progredir os seus antigos domínios, e a bondade da sua mãe a encher de beleza a paisagem e de amor o coração da terra. E, tal como Deus, no final de cada dia criador do Universo, viu que tudo isto era bom.

Source
VIANA, António Manuel Couto Lendas do Vale do Lima , Valima, Associação de Municípios do Vale do Lima, 2002 , p.59-61
Place of collection
VIANA DO CASTELO, VIANA DO CASTELO
Narrative
When
21 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

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