APL 2715 Lenda da Terra dos Cravos

Há histórias tradicionais contadas pela voz do povo que são verdadeiros poemas em prosa. Poemas de ternura. Poemas de graciosidade. No seu encanto primitivo, na sua primitiva ingenuidade, mais parecem, afinal, histórias de fadas, onde o fantástico domina o realismo da vida que passa. Eis, por exemplo, uma dessas histórias. E, tal como nos contos de fadas, começa assim: «Em tempos que já lá vão...»
 
Pois em tempos que já lá vão, tão distantes que se perdem na bruma da memória, existia ali, à beira da estrada que vai para o Porto, não longe de Paços de Ferreira, apenas um jardim. Jardim estranho, diferente de todos os outros, nascido como que dum gesto divino. Jardim onde tudo era perfume e beleza. E ao meio desse paraíso viviam duas flores singularmente belas.
Uma delas parecia eternizar-se com o próprio tempo. À medida que os anos passavam, as suas pétalas ganhavam mais consistência e mais vida. Dir-se-ia que o seu aroma era um elixir de longevidade!
A outra flor era fresca, sempre viçosa, como se guardasse em si o segredo da eterna juventude.
Destas flores e para estas flores vivia esse jardim maravilhoso. Mas um dia...
 
Erguendo altivamente a sua corola, a Flor Antiga chamou a Jovem Flor. Tinha algo para lhe contar.
— Já sabes o que vão fazer?
A outra mostrou-se curiosa:
— Não. Não sei. Que há?
— Pois vão trazer para aqui uma nova plantação de craveiros.
Tomou um ar muito superior e concluiu:
— Dizem que todos os outros cravos morreram de amor por mim...
A Jovem Flor sorriu e suspirou:
— Talvez! Os cravos são sempre tão ingénuos...
A Flor Antiga olhou a companheira e não gostou do seu sorriso perfumado.
— Que pretendes dizer com isso? Que sabes tu da vida e do amor?
A Jovem Flor deixou-se acariciar pela brisa.
— Ora... sei o que a própria vida e o amor me ensinam todos os dias!...
Agitou-se a Flor Antiga, como que batida pelo vento.
— Deixa-te de patetices! O que tu pretendes é perturbar a felicidade destes meus domínios!...
Mostrou-se mais ao beijo do Sol, a Jovem Flor.
— Como estás enganada! Vim, precisamente, para restabelecer a paz neste jardim... e tu bem o sabes...
Mas já a Flor Antiga se esticava curiosa, indiferente ao riso juvenil da outra flor. As suas pétalas tomaram mais colorido. A sua voz ganhou mais alento:
— Repara! Aí estão os novos cravos!... Como são belos!... Como são jovens e atraentes!
A Jovem Flor ia dar também a sua opinião, mas calou-se. Tal como ordenavam os bons costumes daquele tempo, o Príncipe dos Cravos dirigia-se já na direcção da flor mais antiga para lhe apresentar os seus cumprimentos. 
— Senhora! Venho prestar-vos as minhas sinceras homenagens. Os meus companheiros e eu sentimo-nos verdadeiramente felizes por nos encontrarmos neste jardim!
Inclinou-se, graciosamente, a Flor Antiga, cheia de garridice na voz:
— Eu vos saúdo também, grata pela vossa vinda... Convosco surge a beleza do talento e a graça da mocidade. Sede, portanto, bem-vindo!
Seguidamente, tal como as praxes mandavam, o Príncipe dos Cravos curvou-se uma vez mais perante a Flor Antiga e afastou-se depois em direcção à Jovem Flor. Esta parecia esperá-lo, sorrindo-lhe num halo de perfume.
— Irmãzinha! Venho prometer-vos fraternidade em nome de todos os meus companheiros. Se de algo necessitardes, não hesiteis em confiar-nos os vossos desejos, pois eles serão ordens para todos nós.
A Jovem Flor estremeceu na sua corola, fazendo soltar as gotas do orvalho da manhã. E a sua voz, um tanto enérgica, contrastou com o aveludado das suas pétalas:
— Se falais verdade, devo declarar-vos que é meu desejo que vós e os vossos companheiros se vão embora daqui, imediatamente!
O Príncipe dos Cravos olhou-a num espanto.
— Que dizeis? Não posso compreender essa atitude! Explicai-vos melhor.
— Pois bem, explicar-me-ei melhor, como pretendeis. Todos os vossos antecessores morreram neste jardim, devido aos feitiços duma certa Flor Antiga, que precisa do vosso sangue para se conseguir eternizar na vida!
A Flor Antiga empertigou-se, colérica.
— Miserável! Mentirosa! Eu bem desconfiava do que ias dizer... Por isso fiquei escutando...
Retorquiu-lhe a Jovem Flor, cheia de vivacidade:
— Além de má... és bisbilhoteira!
A outra continuou, numa exaltação que fez o Sol esconder-se por detrás de uma nuvem, aborrecido com a altercação de duas flores tão belas:
— Ah, perversa! Tu, sim, és um verdadeiro demónio! Mas eu não consentirei que arruínes a paz deste jardim abençoado!
A outra olhou a companheira, surpreendida com as suas frases de tragédia. Mas já ela se esticava toda na direcção dos cravos, falando-lhes agora com mais doçura na voz:
— Senhores da minha alma! Estai à vossa vontade! Não deveis acatar a voz da inveja… a voz do despeito!
E, tornando-se de uma doçura enleante:
— Vinde comigo. Vou destinar-vos os vossos lugares. Vós, Príncipe, ficais aqui. Poderei ver-vos sempre que deseje... e poderei ser vista por vós, quando for esse o vosso desejo.
O Príncipe dqs Cravos sorriu com elegância.
— Senhora! É demasiada benevolência da vossa parte...
— Oh... não!
— Mas... se me fosse permitida uma objecção...
— Que objecção?
— Gostaria de ficar um pouco mais para a esquerda, pois assim também ficaria próximo da Flor mais nova.
A Flor Antiga sacudiu-se toda, num arremesso.
— Que ideia a vossa! Com essa pobre flor tão jovem, que podeis aprender? Ela nada sabe!...
Voltou a sua voz a soar com enleio:
— Comigo, sim! Comigo podereis aprender muito… tudo o que desejardes... Eu tenho a experiência da vida!
Gaiata, a Jovem Flor emendou:
— Diz antes: tens a experiência da velhice!
Soou feia de raiva a voz da outra flor.
— Cala-te! Se pudesse exterminar-te para sempre...
O Príncipe dos Cravos resolveu intervir.
— Porque a odiais tanto, senhora?
A Flor Antiga fitou o Príncipe.
— Quem a não odeia? Quem poderá gostar dela?
Serenamente, o Príncipe dos Cravos respondeu:
— Eu, por exemplo.
Nessa altura o Sol espreitou por detrás das nuvens, num sorriso trocista...
Mas já a Flor Antiga parecia crescer de indignação:
— Vós? Pois será possível? Não é por mim que sentis amor? Não é para mim que o perfume das vossas pétalas se evola no ar? Não é para mim que vos sentis atraído, cada vez mais?
O Príncipe dos Cravos esboçou uma reverência.
— Perdoai-me, senhora, se vos desiludo. Mas manda a verdade que vos diga que é por ela e não por vós que eu sinto amor. Para ela só me sinto atraído!
O riso do Sol foi mais claro, mais aberto, dando também mais cor e vida às flores do jardim.
Porém a Flor Antiga curvara a corola, para esconder do Sol o seu próprio rancor, e murmurou baixinho:
— Maldição! O meu filtro mágico começa a falhar!
 
Ali ficou preso ao solo o Príncipe dos Cravos, rodeado de todos os seus súbditos. Alucinada pela indiferença que lhe votavam, a Flor Antiga abriu mais as suas pétalas e delas começou a exalar-se um perfume ainda mais estranho.
Pouco a pouco, à sua volta começaram a tombar mortos, lentamente, os pobres cravos! E enquanto eles tombavam, a Flor Antiga expelia o seu ódio, vociferando:
— Hão-de morrer todos! Hei-de matá-los... Acabarei com todos os cravos do Mundo!
Teve uma risada de louca e voltou-se para a Jovem flor.
— E tu... flor miserável… hás-de sucumbir também! Nunca mais olharás o Sol!... Nunca mais verás o céu! Levarei a morte a todos... a todos!
Mas, de súbito, uma voz estranha soou por todo o jardim. Uma voz que vinha de parte incerta mas chegava a todos os recantos.
— Basta, flor daninha! Basta de loucura!
Tremeu a Flor Antiga.
— De quem é esta voz?
— Sou Aquele que tudo sabe e tudo pode!... Chegou a hora de seres castigada por tanta maldade e egoísmo!
A Flor Antiga tentou reagir. Bradou:
— Quem ousa castigar-me? Quem tem poder para tanto? Olhai em redor de mim... e vede o que fiz de todos estes cravos! São agora flores mortas e dentro em pouco secas e sem cheiro... Só faltam eles — o Príncipe e a Jovem Flor! Mas não perdem pela demora... Vou já matá-los, também!
A voz soou de novo, fazendo vibrar as pétalas das flores do jardim:
— Não matarás! Eu não o consinto! Salvá-los-ei!
— Porquê?
— Porque assim o desejo! Acabou-se o teu reinado de perversa autoridade! Neste jardim voltará a existir paz e amor!
O Sol ajudou o Príncipe dos Cravos a abrir-se num sorriso.
— Senhor que falais! Se é verdade o que dizeis, só vos peço um favor: levai-me daqui para junto da Flor mais nova... Quero ficar de frente para ela... vis a ela!
Tornou a voz misteriosa:
— Assim farei!
Num murmúrio, a Jovem Flor pôde apenas dizer:
— Obrigada!
Mas já a Flor Antiga amarrotava as suas preciosas pétalas fazendo-as sangrar.
— Não! Não posso permitir que eles se juntem... se amem à vontade! Tenho de os exterminar… ou não serei já quem sempre fui!
Num eco prolongado, a voz estranha acentuou:
— Já não és, de facto, quem eras dantes! E vais sofrer o castigo que mereces. Tu e o teu diabólico jardim serão exterminados!
Mal acabara de ser pronunciada a tremenda sentença, o Sol escondeu-se por completo, numa fuga rápida, e a nuvem que o encobria adensou-se... adensou-se... até ficar cor de chumbo. O vento começou então a uivar com violência. Pareciam silvos de serpentes voadoras! E esse mesmo vento dilacerou a nuvem cor de chumbo, que se desfez em água sobre a terra.
Uma enxurrada brutal alagou por completo o estranho jardim. Num instante, tudo ficou submerso. E só então a voz misteriosa voltou de novo a ecoar sobre a Terra:
— Das ruínas deste jardim nascerá um novo paraíso!... A Jovem Flor — a flor da mocidade, a flor da beleza — será transformada em luz. E cravos surgirão por toda a parte! Esta ficará sendo a Terra dos Cravos! E entre eles estará o cravo apaixonado e fiel que pediu para ficar vis a ela. Pois ficará vis a ela, para sempre!
Deixou o vento de soprar. A nuvem, completamente desfeita, desapareceu. A chuva cessou. E o Sol voltou a sorrir o seu sorriso quente, e forte, e belo. Um sorriso cheio de luz!

A profecia cumpriu-se. Aquela terra bonita, banhada por especial claridade, passou a chamar-se a Terra de Vis-a-ela, a qual, mais tarde, a linguagem popular transformou em Terra de Vizela — e finalmente em Vizela.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 207-211
Place of collection
VIZELA, BRAGA
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography