APL 715 Lenda da cidade de olhão
Tem força de lei a voz,
Em qualquer ocasião,
Que vem de nossas avós,
Na força da tradição...
Há muito tempo, talvez
Há tanto que já morreu,
Diz a lenda: “Era uma vez,
Linda moira aqui viveu...”
Mas a história, aquela história
Ainda está por contar,
P’ra que fique na memória
De quem a saiba escutar...
Que não era uma, eram duas,
As moiras que ali havia,
Onde à noite, as sete luas,
Nessa voz da maresia,
Vinham dizer-lhes canções,
Na doce voz do luar,
E os seus pobres corações
Eram só chorar.., chorar...
Choravam, tão triste, as tristes,
Tão sós, desacompanhadas,
Que, outras tais, vós nunca ouvistes
Por noites ou madrugadas...
Esse choro assim nascia,
Tão tristemente chorado,
Que o lago doce da ria
Ficava, aos poucos, salgado...
Às vezes, o sete-estrelo
Vinha lá dum outro mais
Chorar — e porquê sabê-lo? —
Nos verdes dos morraçais...
E até as fontes perdidas,
No aroma dalgum jardim,
Vinham chorar, esquecidas,
Ali mesmo, mesmo assim...
Porque choravam as moiras?
Perguntavam, porque sendo
Tão lindas, jovens e loiras,
Era crime, um crime horrendo,
Fazê-las então chorar,
Quando tinham só nascido
Para amar, só para amar,
O tempo breve e perdido...
Era a lenda que ensinava
Que as moiras, duas irmãs,
Aos olhos de quem passava
Se deram por ser cristãs...
Queriam, pois, deste modo,
Tão estranho e original,
Dar o corpo, o corpo todo,
‘té mesmo a alma, afinal,
Àqueles que eram cristãos
E a quem elas, por favor,
Pudessem chamar irmãos,
Não p’lo sangue, p’lo amor...
Viviam, assim, tão tristes,
No seu castelo dourado,
Que jamais, almas, previstes
Que um viver tão torturado
Ter fim tão breve pudesse,
Que não fosse p’la paixão
De outro alguém que ali viesse
E dissesse ser cristão...
Pois foi quando uma manhã,
Aos cantos dum rouxinol,
Apar’ceu gente cristã
À luz eterna do sol...
Eram infantes guerreiros
De abastada comitiva,
Que vinham, por forasteiros,
Em uma missão furtiva
Àquela terra de Allah,
Nunca de antes cometida
P’la força — quem haverá
Que à luta não dê a vida?—
Eram homens destemidos
À guerra de morte afeitos,
Que aos mouros, nunca vencidos,
A si os tinham sujeitos...
Um do outro eram irmãos,
Dois infantes, afinal;
Os mais belos e cristãos
Do Reino de Portugal...
As moiras, que tal souberam
Por segredos do destino,
Sossegar já não puderam
O seu colo alabastrino.
E os pequenos corações
Batiam tanto no peito,
Que os corpos eram monções
Dalgum temporal desfeito...
Logo vieram as rosas,
Os cravos, os rouxinóis,
Cantar notas maviosas
Vindas do além doutros sóis...
E até as águas azuis
Do rio que lá havia
Cantavam pelos pauis,
À hora da maresia...
Foi, então, quando os infantes
Viram que, de si tão perto,
Tinham ali dois brilhantes
Nessas filhas do deserto...
Sua voz forte soltaram
Aos ouvidos delicados
Das moiras que a si juraram
Remir-se dos seus pecados:
“Infantas que sois mais belas
Que guitarras a trinar,
Que à luz de oiro das estrelas
Que à noite vêm rezar,
Aqui os dois prometemos,
Ó mais lindas que as romãs,
Vinde a nós, que vos faremos,
Nossas deusas e cristãs.
“E sereis pio casamento
— Nosso penhor, afinal, —,
Decorrido um só momento,
Infantas de Portugal..”
Logo as moiras se entregaram
De alma pura e corpo feito
A quem por tanto chamaram
Em d’lírios de amor perfeito:
“Ó gente dita cristã,
Mais que a nossa abençoada,
Tomai as filhas de Islã,
Somos vossas, sem mais nada...
“Sem mais nada? também não!...
E uma só coisa pedimos:
É que o vosso coração,
Puro, a quem não resistimos,
“Nos faça vossas irmãs
Pelo simb’lo do baptismo;
Queremos, pois, ser cristãs,
Morra em nós o islamismo”...
Logo então concertaram,
Os dois irmãos cavaleiros,
Dar às moiras, que os amaram,
Os seus amores primeiros...
Mas foi quando, os braços dados,
As tomavam por esposas,
Que de outros céus levantados
Altas vozes portentosas
Se ouviram por toda a terra
Do Gharb, pátria florida.
Era Allah, o Deus da guerra,
Que falava, fraticida:
“Filhas minhas não podiam
“Amar a gente cristã;
“E, depois, que pretendiam,
“Sem ter hoje, nem amanhã?...
“Mal havidas vós andastes,
“E agora, para castigo,
“O encantamento encontrastes
‘Deste modo que vos digo:
“Os infantes renegados,
“Aonde a má-fé abunda,
“Serão por mim transformados
“Em dois olhos de água funda...
“E vós, ó filhas perdidas,
“Nesses olhos, desde agora,
“Sereis para sempre metidas,
“Com a cabeça de fora...”
Não mais Deus-Allah falou,
Mas, o que depois se viu,
As carnes arripiou
Ao povo, à beira do rio...
Era ver ao cimo de água
Duas cabeças, somente,
Que juntavam dor e mágoa
À mágoa de toda a gente...
Os seus olhos se alongavam
A toda a hora do dia,
Parecendo que chamavam
Por quem nunca aparecia...
Mas de longe o povo todo,
Olhos tristes que se molham,
Dizia, assim, deste modo:
— “Olhem, pois, como elas olham!...
A qualquer hora do dia,
Mortos amor’s se desfolham,
E o eco além repetia:
“Elas olham... olham... olham...
Isto tudo a lenda o diz,
P’ra que fique por lembrança
Daquele amor infeliz
Sem futuro e sem esp’rança...
Mas se crêem no passado,
Esta verdade recolham:
O lugar ficou chamado
Por aquele nome do ‘Olham”.
Que a memória se renome, (a)
Desses tempos que lá vão,
Que deste modo houve nome
Esta cidade de OLHÃO...
- Source
- LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas , Edição do Autor, 1995 , p.110-118
- Place of collection
- Olhão, OLHÃO, FARO