APL 2894 Lenda da Capa Rica
Há imenso tempo, tanto que a nossa recordação já não consegue alcançar, todos aqueles terrenos da Caparica eram, por assim dizer, quase desertos. De casa a casa corria-se uma distância enorme, enorme... E de quando em quando o vento açoitava os plainos, bramindo violento e juntando os seus estranhos e brutais queixumes às rebeldias do oceano.
Pois foi nesse tempo que apareceu por ali uma criança, bonita mas andrajosa. Não se sabia donde vinha nem a quem pertencia. E foi um velho da freguesia da Senhora do Monte, já então existente, que tomou conta dela.
O Sol começara a declinar, parecendo encher de fogo o firmamento, quando o homem descobriu a pequenita sentada numa pedra do caminho e olhando aquele enorme balão de fogo que descia lá em baixo, na linha do horizonte. Aproximou-se dela. A pequenita continuava fitando com os seus olhitos curiosos o Sol no seu ocaso. O velho perguntou-lhe:
— Que fazes aqui?
A pequenita olhou o velho, sem medo e sem surpresa, e apontando com o seu magro dedito, explicou:
— Estou a ver aquilo.
O velho tornou:
— Estás sozinha?
— Estou.
Era triste, tristíssimo, o tom daquela afirmação. E o velho, olhando a pequenita, sentiu agitar-se dentro de si o sagrado fogo da caridade. Com o auxílio do bordão, sentou-se ao lado da criança, que lhe sorriu, e exclamou:
— Pobre menina! Conta-me a tua vida. Diz-me quem és. Talvez eu te possa ajudar a encontrar a tua família.
A criança abanou a cabeça.
— Não tenho família... nem sei quem sou. A única coisa que possuo é esta capa...
O velho mirou a capa que a menina lhe estendia e não escondeu a sua surpresa.
— Mas é uma capa muito boa! Deve ter pertencido a pessoas de haveres... Tu descendes de alta linhagem, com certeza!...
A menina encolheu os ombros. No seu pequenito rosto desenhava-se a incompreensão. O velho insistiu:
— Os teus antepassados foram gente rica, com certeza. Talvez gente nobre, hem?
A menina sorriu.
— Não percebo as suas palavras, senhor... mas estou-lhe muito agradecida, por se ter sentado a conversar comigo.
O velho prosseguiu o interrogatório:
— E para onde vais agora?
Ela encolheu os ombritos magros.
— Sei lá! Por aí fora, a pedir uma esmolinha pelo amor de Deus. Mas não o esquecerei... O senhor é muito bom!
O velho uniu as sobrancelhas numa atitude de reflexão. Algo de importante estava a ocupar-lhe o espírito. Ficou silencioso durante alguns momentos. Depois, com um sorriso de felicidade a iluminar-lhe o olhar, afirmou:
— Olha, minha filha... Sou um pobre velho que não tem mais ninguém na vida. Hoje encontrei-te e gostei de ti. Se viesses viver comigo, eu ficaria muito contente. Que dizes?
A pequenita levantou-se, cheia de contentamento.
— Obrigada! Farei o possível para que o senhor goste sempre de mim!
E lado a lado partiram ambos, agora com a certeza de que não estavam sozinhos.
Passaram alguns anos. Tal como prometera, a pequenita comportou-se sempre como pessoa grata e amiga para com o pobre velho. Certo dia, o bom do homem viu chegados os seus últimos momentos. Então, chamou a rapariga, e disse-lhe numa voz entrecortada pela agonia:
— Anda cá, minha filha... Já estás uma mulher... Uma linda mulher... Mas continuas pobre como eu... Mal chega o que temos para tu comeres... A vida é assim, minha filha!... Olha... faz-me um último favor... Eu sei que vou morrer...
A rapariga interrompeu-o, embora a comoção lhe apertasse a garganta:
— Não diga isso... Não o deixarei morrer!... Hei-de tratá-lo como até aqui!
O velho fechou os olhos. Fez novo esforço para falar.
— Não é necessário esconderes-me a verdade... Quando se chega à minha idade sabe-se muito... Mas vou dizer-te o que quero: deixa-me a tua capa para me aquecer... agora que sinto chegar o frio da morte!
A rapariga apressou-se a satisfazer-lhe o pedido.
— Aqui tem a minha capa. Aqueça-se. Ela é tudo o que eu possuo... Que pena ser somente uma pobre capa!
Fazendo um derradeiro esforço, o homem replicou:
— Enganas-te, minha filha... Esta é uma capa rica!
Depois, afastando a rapariga com um gesto:
— E agora vai… vai… deixa-me descansar... dormir… esquecer...
O pobre velho morreu. E a rapariga, em sinal de gratidão, juntou o magro dinheiro que lhe restava para lhe dar uma sepultura condigna. Passou dias e noites sem comer e sem dormir. Mas tinha a consciência tranquila: fizera tudo o que lhe fora possível para corresponder ao auxílio que recebera em criança.
O tempo, no seu caminhar constante, impassível a quanto se passa à sua volta, indiferente a todos os gritos desesperados, foi envelhecendo, também, a rapariga que há pouco era criança ainda. No seu rosto bonito despontavam as rugas. Cabelos brancos vieram substituir os sedosos cabelos negros. Mal arranjada, sem poiso certo, sem passado e sem história, a sua figura foi-se tornando estranha e o povo acabou por lhe chamar bruxa. Quando ela aparecia, os cães ladravam num alarido medonho.
Um dia, alguém quis segui-la para ver que rumo era o dela. Então, descobriu que a mendiga ia apenas até ao alto do monte, contemplava em redor toda a distância, num ar de êxtase, e depois, juntando as mãos como quem reza, murmurava, voltando-se para o céu, numa voz que nem parecia de velha nem de mendiga:
— Quando eu morrer, Senhor, fazei com que o Manto Divino de Nossa Senhora do Monte cubra todas as povoações que Vos veneram nesta freguesia, as quais enchem a terra de encanto! E por tudo eu peço que seja esta Costa a primeira a receber os louros do Céu e do Mar! Que eles a cubram com o ouro que anda a arder nas ondas e nas areias da sua praia bendita!
A velha fechou os olhos, continuando em silêncio a sua prece. E então, a pessoa que a seguira correu a denunciar os bruxedos da pobre mendiga. E acrescentava:
— No final daquelas rezas estranhas, ela segura a capa e ergue-a também ao Céu!
A nova correu de boca em boca e chegou aos ouvidos do rei. Impressionado com a história dos bruxedos da velha mendiga, mandou que ela viesse à sua presença e que trouxesse a já famosa capa.
Quando a viu diante de si, perguntou-lhe:
— É verdade que fazes bruxedos com a tua capa?
Ela olhou para o rei, horrorizada, protestando:
— Não, Real Senhor!... Sou uma pobre de Deus... Não quero nada com bruxedos!
— Então, porque falas sozinha?
Cada vez mais surpreendida, ela respondeu:
— Não falo sozinha, Real Senhor... Apenas rezo.
Mas o rei insistiu:
— E essa capa que te cobre... não tem qualquer feitiço?
Ela arregalou os olhos.
— A minha capa? Ai, se ao menos fosse uma capa rica!... Mas bem a vedes, Senhor... Está suja, cheia de remendos, velhinha! E é tudo quanto possuo...
Comovido, o rei olhou a velhinha com simpatia e declarou:
— Sim... deves ser tu que tens razão! Os outros não passam duns mentirosos, duns invejosos… duns cretinos!
E puxando por uma bolsa acrescentou:
— Toma! Leva este dinheiro e vai-te! Estou arrependido de te ter obrigado a vir aqui.
Com as lágrimas nos olhos, a velhinha balbuciou:
— Que Deus lhe pague, meu Real Senhor!
E saiu do palácio real.
Durante algum tempo não mais se ouviu falar na pedinte da Senhora do Monte. Mas um dia os sinos da igrejinha tocaram a finados. Uma alma subira para Deus.
A triste nova correu depressa pelos arredores. Morrera a Velha da Capa, como o povo lhe chamava. Morrera silenciosamente, assim como nascera, envolta na bruma do mistério. Porém, qual não foi o espanto das pessoas que acorreram ao tugúrio da velha quando encontraram junto do corpo uma carta enviada a el-rei...
Houve logo quem se prontificasse a ir ao palácio entregar tão estranha missiva. E o rei, entre comovido e admirado, leu o seguinte:
«Meu Real Senhor. Deixo-vos a minha capa, como única recordação da minha passagem por esta vida. Só agora, na hora da morte, descobri que a minha pobre capa é, afinal, uma capa rica, pois o meu benfeitor deixou-me uma pequena riqueza escondida no seu forro. De nada me serve agora esse ouro, Real Senhor. Por isso eu vo-lo entrego, pedindo-vos uma grande mercê. Com esse ouro, transformai esta costa abençoada por Deus numa terra de sonho e maravilha, onde haja saúde e alegria para todos.»
Assim surgiu, segundo reza a lenda singular, essa terra de sonho e maravilha que hoje se chama a Costa da Caparica, em homenagem à capa rica da pobre velhinha que certa vez apareceu ali, criança ainda e vinda não se sabe donde.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 325-329
- Place of collection
- Costa Da Caparica, ALMADA, SETÚBAL