APL 2799 Lenda do Massacre de Bencatel

Foi também durante o reinado de Ramiro II de Leão e Astúrias que teve origem a lenda que vou contar. Nesse tempo, os árabes de Espanha andavam desavindos. Animados os cristãos com estas discórdias, fizeram uma entrada na direcção do sul. Revoltado com esta incursão, o Califa enviou seu filho El-Modáfer para que os cristãos fossem repelidos. Assim, entrou o jovem árabe pela Lusitânia, levando tudo a ferro e fogo. Ante tamanho ímpeto, retiraram-se os cristãos com grandes baixas. Mas El-Modáfer continuou a perseguir os cristãos como se o fogo da paixão das armas lhe queimasse o próprio corpo. Dir-se-ia uma sede de glória, insaciável, apesar das batalhas ganhas dia a dia. De súbito, porém, todo esse ardor de luta, toda essa ânsia de vencer, pareceu sumir-se por detrás da expressão serena de El-Modáfer e do seu olhar profundo e simultaneamente doce. O jovem chefe árabe apaixonara-se por Domícia, donzela cristã descendente de nobres romanos. Cessou, praticamente, a luta nesse sector ao sul do Tejo. Lado a lado, a jovem cristã e o guerreiro árabe passavam dias inteiros falando dos seus amores...

O ar quente de um Verão muito seco envolvia os dois jovens namorados. A terra, ressequida e muda, ouvia como velha alcoviteira as suas meigas tagarelices.
— Sorri para mim, bela Domícia! Não és feliz com o meu amor?
Sem alegria, a jovem respondeu:
— Bem sabes quanto te amo! Mas um terrível pressentimento diz-me que nunca serei tua esposa!
— Porquê?
— Porque sou cristã e tu muçulmano!
— Acalma-te, Domícia! Não quero ver os teus olhos com sombras de tristeza! Bem sabes que tudo farei por ti. Pelo teu amor abandonei eu já esta guerra, que vinha vencendo com honras. E agora, aqui estou, para viver sempre a teu lado!
Domícia abanou a cabeça, e a sua voz tornou a soar com amargura:
— Esta terra pertence-te ainda, porque tu e os teus homens a conquistaram!
— E isso que tem?
— Não é já dos meus!
— E não vives aqui em paz com toda a tua família? Não és respeitada pelos da minha raça?...
Suspirou a jovem antes de responder.
— Sou, sim. Por isso te damos graças. Vivemos aqui como na nossa aldeia... e somos muitos!... Mas os teus homens começam a estar fartos da inacção. Noto-lhes, por vezes, sinais de vaga inquietação no olhar.
— Não demorarei a tranquilizá-los.
— Mas teu pai... bem vês… já pensaste qual será a atitude de teu pai, quando souber que interrompeste a campanha, só porque me encontraste?
Foi a vez de El-Modáfer respirar fundo. Mas notando que a sua bem-amada ficara ainda mais inquieta com o seu silêncio, apressou-se a destruí-lo.
— Não temas. Meu pai há-de compreender-me. Não poderei ser obrigado a matar o pai e os irmãos da mulher a quem amo!
— Pelo menos levar-te-á daqui, e nomeará outro chefe para assumir o teu posto. Então...
O jovem árabe apertou-lhe com ternura uma das pequeninas mãos.
— Domícia, não te mortifiques, que me destróis toda a alegria de te sentir junto de mim!
As lágrimas deslizaram de mansinho no rosto belo da jovem cristã. Soou a sua voz como fio de água gemendo numa fonte:
— Modáfer... Pressinto que algo de grave vai acontecer!
O rosto do guerreiro árabe mostrou inquietação.
— Assustas-me, Domícia! Lembra-te de quanto me doem as tuas lágrimas! Para as secar abandonei os meus soldados e desprezei as ordens de meu pai!
Deixando correr o pranto livremente, Domícia começou a falar como se fosse consigo própria.
— Por que quis Deus que nos encontrássemos naquela tarde?...
— Estavas tão bela!... As lágrimas corriam dos teus olhos, silenciosamente, como hoje... Os braços pendentes ao longo do corpo... Parecias a estátua da angústia, no meio de toda aquela desordem… animada apenas para vir ao meu encontro...
Baixinho, a jovem continuou recordando.
— As mulheres fugiam espavoridas... Os meus irmãos lutavam e caíam feridos... E tu, soberbo no teu cavalo de grande senhor, parecias o dono da morte! Por isso caminhei para ti... sem saber o que fazia!
Calou-se a jovem, mas logo Modáfer continuou a narrativa interrompida pela sua bem-amada.
— Então... eu desci do cavalo e amparei-te nos meus braços. Depois... Depois nunca mais consegui combater! Os meus homens venceram os cristãos, mas tu venceste-me!
— Efémera glória!
— Porquê?
— Porque só poderei trazer-te desgraça!
Silenciaram breves segundos. Mas logo, Domícia, como animada de ignorada força, olhou de frente o jovem árabe, dando à sua voz uma energia súbita.
— Modáfer! Por que não foges connosco?
Ele admirou-se.
— Fugir, eu? E para onde?
— Para o Douro, onde estão os nossos!
Olhos perdidos no horizonte largo, ele pensou por breve espaço de tempo. Mas acabou por abanar a cabeça, num gesto de enérgica negativa.
— Não podemos fazer isso!
— Porquê? Não queres vir comigo?
— Não devemos sair daqui!
— Mas os outros fugiram para o Douro!
— E que sabes tu do que poderá acontecer aos outros? Lembra-te que meu pai em breve ficará sabedor do que está acontecendo para cá do Tejo. Então enviará alguém para recomeçar a luta!...
— É o que eu penso. E matar-nos-á!
— Aos outros, sim! Mas para ti e para a tua família espero que saiba ter clemência.
— Não creio. Ele não deixará que nos amemos livremente!
— Por que não?
— Amar uma cristã constitui perigo ou traição para um muçulmano. Ele tentará separar-nos, acredita! Só nos salvaremos se fugirmos a tempo!
De novo Modáfer respirou fundo, sem responder. No seu íntimo travava-se luta renhida. Teria Domícia razão? Deveria sair com eles para o Douro, sem esperar sequer o possível perdão do Califa?...
Vendo-o quase a ceder, a jovem reforçou:
— Pensa bem, Modáfer! As nossas vidas correm perigo!
— Mas meu pai ama-me e eu sou o seu herdeiro!
— Tanto pior! Acredita que estamos perdidos.
De novo as lágrimas inundaram o rosto da jovem. Mas Modáfer, não podendo suportar essa dor tão magoada e justa, acabou por ceder.
— Tens razão! Teremos de partir!
Ela alegrou-se, mas ele interrompeu o seu possível agradecimento.
— Partiremos... Mas dá-me mais algum tempo para me habituar à ideia de abandonar aqueles que me foram confiados em combate. Uma semana, apenas. Escolherei entre os meus homens quem me possa substituir. E o que eu escolher... transformar-se-á, depois, no nosso maior inimigo.

Alguns dias passaram. Entretanto, o príncipe Modáfer preparava a entrega do poder àquele que militarmente pudesse substituí-lo. A sua escolha recaiu num companheiro de infância, que tentou todos os meios amigáveis para o chamar a razão. E enquanto discutiam pormenores, chegou de súbito a tenda onde ambos se encontravam um outro jovem árabe, acompanhado de grande escolta.
— Que Alá seja contigo, Modáfer! Trago-te novas do Califa. Foi ele informado da situação irregular em que vive o teu exército e o seu furor não tem limites. Que te aconteceu?
Sorriu com tristeza o príncipe árabe.
— Apenas isto: amo e sou amado!
— Pois rapta a mulher que amas e trá-la para o nosso lado!
— Já a tenho a meu lado.
— Renegou a fé?
— Continua cristã.
O olhar do jovem recém-chegado endureceu, bem como a sua voz.
— És tu, então, que vais renegar?
Modáfer respirou fundo, a ganhar tempo, e respondeu:
— Quero partir com ela e com a sua família, que vive toda aqui sob a minha protecção!
Houve um pequeno silêncio, cortado logo pela pergunta do filho do Califa:
— És o novo chefe?
— Sim! E tu meu prisioneiro até à chegada do Califa.
E abanando a cabeça, num desespero:
— Afinal sempre e verdade o que nos contaram!
Modáfer ficou indiferente ao comentário do jovem chefe árabe. Um pensamento agora o dominava. Perguntou, inquieto:
— O Califa, em pessoa, vem até aqui?
— Assim se tornou necessário.
— Porquê?
Com certo desprezo, o novo chefe árabe declarou:
— É preciso que estejas, na verdade, cego e surdo de amor, para que não saibas do levantamento da Espanha muçulmana. O Califa pôs tudo em pé de guerra. Os nossos batem todas as estradas. Por todo o lado há peões e cavaleiros, estandartes flutuando no ar, os caminhos cheios de gente em pé de guerra...
Modáfer abriu os olhos, num espanto.
— Como é possível tudo isso… sem eu nada saber?
O outro sorriu com desdém.
— Tu... o chefe escolhido pelo Califa para o substituir... enroscado aos pés de uma cristã!
Resoluto, Modáfer replicou:
— Estou pronto a receber o castigo que me for imposto. Mas em troca promete-me que darás liberdade a Domícia, pais e irmãos, os quais vivem com ela. Deixa-os seguir com os outros para o Douro!
Enérgico, o chefe sentenciou:
— Impossível! Não ouviste o que disse há pouco? As estradas estão atulhadas de gente em pé de guerra!
— Que vais então fazer?
— Trago ordens para te conservar aqui com eles até à chegada do Califa. Só ele quererá decidir.
— E quando chegará meu pai?
— Não tardará. Deixei-o bem perto daqui. Saiu de Córdova com a flor dos cavaleiros… aqueles que ele tanto desejou que fosses tu a comandar!
Modáfer cerrou os punhos, numa impotência, e pediu:
— Salva Domícia! Salva-a!
— Não posso!
— Ela está ainda aqui apenas porque eu a retive! Sou responsável pela sua vida e pela dos seus, compreendes?
O jovem chefe árabe sorriu estranhamente. A sua voz soou perdida no espaço.
— Julgas que a terias salvo se tivesses saído com ela para o Douro há mais tempo? Há muito que és vigiado.
— Que devo então fazer?
— Aguardar.
— Mas o meu pai mata-a!
— Sujeita-te ao teu destino.
O jovem implorou, fora de si:
— Ajuda-me a salvá-la e entrega-me a meu pai como único responsável!
O outro abanou a cabeça, sem se alterar.
— É inútil. A minha vida responde por todos os meus gestos.
— Pelo menos... deixa-me falar com ela! Preciso que ela saiba que eu...
O outro interrompeu-o.
— Os prisioneiros suspeitos ou de honra não devem comunicar entre si!
Modáfer alarmou-se ainda mais.
— Domícia está presa?
— Ela e toda a sua família.
Exaltado, o filho do Califa gritou:
— Não quero que lhe aconteça mal algum! Sou o único responsável! O único, acredita!
— Diz isso a teu pai, quando ele chegar. Entretanto, tenho ordens de os conservar presos e distantes uns dos outros. E acredita, tu também, Modáfer, que sou dos que sabem cumprir as ordens recebidas!

E conta a lenda velhinha que o Califa chegou a Salamanca onde se encontrou com seu tio — o velho Modáfer, com o mesmo nome do príncipe — e o exército em peso passou o Douro e veio varrendo todas as povoações que cruzava no caminho. Na sua passagem destruía e queimava tudo! Era uma espécie de desforra cruel, para tentar acalmar o furor do seu chefe!
Chegado à aldeia onde o filho se encontrava, o ódio do Califa não teve limites. Desprezando todas as súplicas do jovem Modáfer, mandou passar à adaga Domícia, todos os da sua família e ainda aqueles mouros que se conformaram com as decisões de seu filho e ali se estabeleceram. Tão grande foi o morticínio, que os próprios árabes e aqueles onde chegava a notícia do que se havia passado na aldeia começaram a chamar-lhe «o Matador». No entanto, perdoou a vida ao filho para que, sofrendo, espiasse melhor o seu delito.
Mas o jovem Modáfer não mais foi o mesmo. Montava a cavalo e praticava loucuras que só por favor do destino o não matavam. Outras vezes abalava sozinho, a pé, pela estrada poeirenta, falando e gesticulando como se o fizesse para grandes multidões. E as gentes, quando ele passava, diziam baixinho, com comiseração: «Ali vai o filho do Matador» — o que em árabe se diz: «Ben-Catel». Daí, segundo a lenda, nasceu o nome da aldeia onde Domícia e seus irmãos foram mortos e o jovem príncipe perdeu a razão. Aldeia de Bencatel! Aldeia que foi o teatro de guerras, viu o sangue dos seus filhos correr, manchando a terra que era o seu sustento, mas que continuou firme no seu posto, apesar das lutas, através dos séculos...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 357-362
Place of collection
Bencatel, VILA VIÇOSA, ÉVORA
Narrative
When
10 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography