APL 2724 Lenda de Santa Comba Dão
Lá fora havia gritos e imprecações, insultos e blasfémias que subiam no ar indiferente ao que os seus átomos transportavam. Havia também sol, dando uma cor brilhante à natureza. Também havia sangue de feridos e mortos na grande batalha que se travava desde Coimbra.
No claustro do convento, em contraste profundo, escutava-se o próprio silêncio, no qual se adivinhavam as orações mentais das pobres freiras atormentadas pelo medo. E havia sombra. Sombra nas celas, nos claustros, na capela, no coro. Sombra nos seus hábitos, sombra nos seus olhos entristecidos por tantos desmandos. Só nos seus corações havia luz! Luz trazida pela fé em Deus, coada pela virtude daquela meia centena de virgens consagradas ao Senhor.
Elas sabiam. Sabiam que o rei Almançor havia vencido também em Coimbra. Sabiam que a batalha continuava pelas margens do rio Om. Sabiam que o seu convento seria motivo de cobiça a esses homens, senhores de uma vitória retumbante e que vinham saqueando e destruindo tudo por onde passavam.
Elas sabiam! Por isso oravam, sem se atreverem a dizer alto o que no íntimo ofereciam em troca da sua pureza.
De súbito, ouviram-se pancadas na porta. Os seus corações quase pararam. Olharam todas para a sua madre abadessa — a madre Comba, esperando ver num gesto seu qual a atitude que haviam de tomar. Mas, serena no rosto, embora tristíssima na alma, a madre Comba levantou-se e fez-lhes sinal de que ficassem. Foi até ao postigo e perguntou, como se não se tivesse apercebido da turba que esperava lá fora:
— Quem bate à porta da Casa de Deus?
Um jovem alto, forte, moreno, de olhar decidido, respondeu logo:
— Sou Aben Abdallah e venho em nome do rei Almançor para que me abram essas portas. Eu e os meus homens ficaremos hoje aqui.
Serena, a madre Comba replicou:
— Vós e os vossos homens na Casa de Deus? Tenho à minha guarda muitas jovens esposas de Cristo. Não as exporei a tamanho perigo.
O chefe guerreiro impacientou-se:
— Abre essa porta, pois não gosto de falar sem ver o rosto daquela a quem falo!
— E se eu a não abrir?
— Abri-la-ão os meus homens!
— E se a abrir prometeis falar comigo e não entrar aqui ninguém seu que a nossa conversa termine?
— Sim, prometo!
Com a mão que fez por se mostrar firme, a madre Comba abriu a porta. Então o homem, com a ponta da adaga, pôs-lhe o rosto a descoberto, afastando-lhe o véu. Ela amedrontou-se.
— Que fazeis?
— Quero ver o teu rosto. Onde está a abadessa?
Humildemente, a madre Comba respondeu:
— Está aqui. Sou eu própria.
O homem mostrou-se surpreendido. Depois soltou uma gargalhada.
— Tu... a abadessa? Tão nova? Tão bonita? Compreendo agora a dádiva do meu rei!
A freira sentiu como que uma dor forte no peito.
— Eu é que não compreendo o que estais dizendo!
Ele riu de novo, olhando os olhos que procuravam desviar-se.
— Tão nova… tão bonita... Sabes que tu é que foste designada para mim? Cada uma das tuas freiras será dada a um dos meus guerreiros. Esta é a ordem de Almançor!
A madre tornou-se subitamente pálida. Aos seus olhos afloraram lágrimas de desesperada angústia.
— Senhor! Matai-nos então a todas!
Aben Abdallah mostrou-se sorridente.
— Que ideia! Só destruímos o que não pode servir-nos.
Tentando serenar-se, a madre Comba respondeu:
— Nós não poderemos servir-vos. Pertencemos a Deus, a quem nos consagrámos.
Ele impacientou-se.
— Basta de conversa! Os meus homens vão entrar por ordem de comportamento nas batalhas e irão escolhendo entre as tuas freiras a que mais lhes agradar. Eu não preciso de olhar mais: tenho a minha escolha já feita!
Madre Comba sentiu que a aflição lhe tomava a garganta, impedindo-a de falar. Atormentava-a um medo horrível. Um medo horrível desse homem e dos outros que esperavam, impacientes, a ordem do seu chefe para entrarem e profanarem um lugar santificado!
— Que fazer? Que fazer? — perguntava a si própria, no íntimo do seu coração.
A turba começou a impacientar-se. Aben Abdallah observou:
— Vês como os homens começam a achar que estamos conversando em demasia? Bem. Quero que eles entrem com ordem, um a um. Mas tu acabarás por obrigá-los a entrar de tropel, destruindo tudo na sua passagem!
Ela hesitou. Depois disse:
— Seja! Organizai os vossos homens e dizei-me qual é o que entra primeiro.
Aben Abdallah indicou um deles.
—Tu! Entra e escolhe uma das mulheres que mais te agrade. Uma das que estão lá dentro, é claro...
O homem riu.
— Saberei escolher, Aben Abdallah!
Entrou com a madre, que fechou a porta. As pernas dela tremiam-lhe como bambu exposto ao tufão. Quase cambaleava. Encostou-se à parede. O homem estacou também.
— Onde raio estão elas? Está tudo tão silencioso... Não me agrada isto.
Madre Comba refez-se um pouco:
— Vinde comigo. Devem estar lá em baixo, na capela. O vosso castigo será enorme, por nos obrigardes a tanto!
— Castigo?
— Sim! Ides profanar a Casa de Deus e o castigo é certo.
O homem seguiu a madre sem mais palavra. Ao chegarem à capela, as freiras ergueram-se sem ruído. O homem ficou perplexo. Tanta mulher! E quase todas novas e bonitas! Não sabia qual escolher.
A madre Comba falou então:
— Minhas filhas! Chegou a grande hora de mostrarmos a nossa lealdade ao Esposo que escolhemos. Este homem que aqui vedes vai escolher uma de vós. Sabeis, pois, qual o destino que deveis seguir.
O homem esperou uma reacção. Nada chegou. Oravam em silêncio as freirinhas bentas do convento das margens do rio Om. De súbito, o guerreiro decidiu-se.
— Quero esta!
E tomou-a por um braço. Então, a madre aproximou-se e beijou-a na testa.
Nesse mesmo instante, a freirinha sacou um punhal das suas vestes e cravou-o no peito. E todas as outras fizeram o mesmo! Uma a uma, elas iam caindo aos pés do homem, que correu para fora apavorado, gritando pelo seu chefe. Logo a madre Comba correu a fechar as portas. Desesperados, os homens forçaram a entrada. Mas quando chegaram à capela, jaziam por terra as freiras bentas do convento onde a madre Comba era abadessa. E, junto das suas bem-amadas companheiras, Ab Abdallah encontrou também o corpo inanimado da jovem abadessa que ele pensara roubar ao Todo-Poderoso!
Ao saber o que se passara, Almançor entrou em fúria. Gritou:
— Porque as não mataram logo? Essas mulheres nem sabem ser gente!
Não! Não era gente vulgar, a madre Comba e as freiras do convento das margens do Om! Tão diferente ela era, que os seus milagres deram-lhe fama de santa. E assim, para se distinguir da Santa Comba de Coimbra e da Santa Comba do Alentejo, começaram a chamar-lhe Santa Comba do Rio Om. Depois Santa Comba d’Om, que deu, mais tarde, Santa Comba Dão. E a vila que veio a formar-se no local onde se dera o martírio de Santa Comba tomou o seu nome, para que os homens não esquecessem a jovem e linda abadessa que preferira morrer a atraiçoar a fé jurada ao seu Divino Esposo.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 287-290
- Place of collection
- Santa Comba Dão, SANTA COMBA DÃO, VISEU