APL 2696 Lenda da Maia
Maio e Maia — são nomes que têm história. História rendada de lenda e de tradição. História onde a ingenuidade da alma popular se mistura com um certo fluido de poesia que parece nascer da própria Natureza...
E muitas terras existem, por esse País, cuja origem, remota e lendária, está, ligada precisamente à história do Maio ou da Maia...É uma dessas lendas que vou contar. Lenda que se perde na poeira dos tempos. Lenda que corre pelos séculos, ao sabor da brisa da imaginação. Da imaginação do bom povo de Portugal...
Tudo começou no mês de Maio. Nascera já a Primavera e a terra floria mais bela do que nunca. Por toda a parte se activavam os trabalhos do campo. Era o tempo das plantações, das sachas, das mondas e das regas.
Também naquela pequena terra, o trabalho seguia em ritmo crescente. No vinhedo, amorosamente tratado por Mestre Chico, preparava-se tudo para as enxertias do olho vivo. E foi então que vieram chamá-lo. Sua mulher ia ser mãe, dentro de breves instantes.
Mestre Chico atirou tudo por terra e correu como um louco. Era o seu primeiro filho. Ah, se saísse um rapaz!...
Mas saiu uma rapariga. Pequenina e bonita. Cara de anjinho. Mãos papudas, que mais pareciam de brinquedo. E um perfume estranho...
Sim, não havia dúvida, a menina possuía um perfume estranho, misterioso, que enchia a casa toda.
Passados os primeiros dias de encanto, os pais quedaram-se assustados.
— Nem dá ideia que seja coisa boa, homem... Já viste como a menina nos olha? Tem um não sei quê no olhar que entra quase dentro da gente.
— E este cheiro, mulher, este cheiro principalmente é que me transtorna... Não sei o que hei-de pensar.
— Nem eu...
Ficaram-se olhando. Sem palavras. Vazios de tudo.
E, de repente, a menina chorou. Ambos voltaram à realidade. E talvez despertada pela própria situação, a mulher teve uma ideia.
— Se fosses falar com o senhor Prior... Isto deve precisar é duma benzedura...
— Tens razão! Pois vou agora mesmo falar com o senhor Prior e ele há-de vir comigo para ver com os seus próprios olhos.
— Vai, homem, vai... Não demores, por amor de Deus!... Pode ser que não seja coisa boa!...
O homem saiu apressadamente. E a mulher voltou para junto da menina, espiando-lhe os movimentos, inquieta e desconfiada. Mas a menina deixara de chorar. Mudara o pranto em sorriso. E quando sorria — conta a lenda — até parecia que o seu sorriso também se transformava em perfume e em música...
As horas foram passando — e o marido sem voltar. A pobre mulher começou a sentir-se perturbada. A menina apenas sorria, olhando-a sempre. E fosse para onde fosse, mudasse para onde mudasse, ela sentia o olhar da criança a segui-la por toda a parte.
Os seus pensamentos entrechocavam-se, numa confusão íntima. Pois seria verdade que estava a escutar música? E quem a tocava? E porque havia música, assim, em casa tão pobre? E donde viria essa música? E donde viria aquele perfume tão bom, tão bom, que só de cheirá-lo dava vontade de cantar?...
A mulher acabou por cair de joelhos diante do crucifixo pendurado na parede, a rezar fervorosamente.
— Meus Deus, valei-me!... Valei-me, Senhor Jesus Cristo!... Esta menina é sobrenatural... Fazei que eu a entenda... Fazei que ela me entenda... Socorrei-nos, meus Deus!... Padre Nosso, que estais no Céu...
Fervorosamente, a mãe ajoelhada rezou três Padre-nossos e três Ave-marias. E quando se ergueu e voltou a olhar a filha, ficou estupefacta.
A menina continuava a sorrir. E nesse mesmo instante, estendeu-lhe os bracinhos como se tivesse escutado a sua súplica. E sorriu-lhe mais. E diz a lenda velhinha que mais alto subiu também a música e mais forte se tornou o perfume que enchiam toda a casa...
De facto, Mestre Chico voltou, embora mais tarde do que desejava, trazendo consigo o velho prior. Assim que entraram, o pai apontou a criança, agora adormecida.
— Pronto, senhor Prior... A menina é esta...
O sacerdote mirou-a tranquilamente.
— Bem linda, por sinal... Bendito seja Deus que vos ofereceu uma filha encantadora...
Mas já pai e mãe se agarravam aos braços do velho prior.
— Não escutais? Não vos parece ouvir música?
— E este cheiro, senhor Prior? Que será este cheiro que nós sentimos?
O bondoso padre ergueu os olhos para o céu.
— Talvez tenham razão... Há qualquer coisa à nossa volta... Deus é infinitamente misericordioso e quis decerto que esta criança trouxesse consigo o perfume e a música das flores... Estamos no mês de Maio, não vos deveis esquecer.
Eles calaram-se e olharam-se. Era verdade. O mês de Maio... Porém, logo a mulher interrogou, no eco da sua própria ansiedade:
— E acha que não há mal, senhor Prior?
— Mal em quê, minha filha? Pelo contrário... Deveis agradecer a Deus a mercê especial que Ele vos fez...
Ela curvou a cabeça. Emocionada e resignada. Feliz, mas ainda temerosa, apesar de tudo.
Mestre Chico, porém, atreveu-se a ir mais longe na sua interrogação. Havia uma pergunta que doía dentro dele. Que lhe custava fazer. Mas acabou por perguntar:
— E os outros, senhor Prior?... A outra gente da terra… não irá rir-se de nós… por termos uma filha… assim… como esta?
Devagar, o velho prior pousou a mão enrugada pelo tempo sobre o ombro forte de Mestre Chico.
— Não, meu amigo! Ninguém se rirá de vós... Vocês, sim, é que vão rir-se deles todos... Têm uma filha que é uma flor... Uma verdadeira flor de Maio!
E abrindo-se de novo num sorriso, enquanto olhava ternamente para a criança adormecida, alvitrou:
— Olhem, chamem-lhe Maia, agora quando a forem baptizar... É um nome bonito e adequado... Um nome que também cheira a perfume e a música... Maia!
E Maia ficou a chamar-se a menina. Para sempre!
Os anos foram-se somando, desaparecendo na voragem da vida. E a menina cresceu, desenvolveu-se, tornou-se uma linda rapariga.
Mas, segundo nos conta a lenda, seus pais continuaram a viver dominados por estranho complexo. Tinham medo que os outros se rissem deles...
E assim guardavam a filha avaramente em casa, para que ninguém a visse, para que ninguém soubesse dela.
A rapariga sofria com tal procedimento. Gostaria de correr, de cantar, de ver os passarinhos, de brincar com as flores, de dizer «bom dia» ao Sol, de sorver o ar puro, como faziam as outras raparigas da sua idade.
Com ela — tudo era diferente!
Um dia, não se calou mais:
— Porque não me deixam sair? Que mal fiz eu, para passar toda a vida fechada em casa?
Os pais entreolharam-se, atrapalhados. Mestre Chico acabou por encolher os ombros e explicar à sua maneira:
— És ainda muito nova, minha filha, para poderes enfrentar a troça dos outros.
— Mas qual troça, meu pai?... Não percebo...
Havia revolta na voz da rapariga. Pela primeira vez na sua vida. Revolta e lágrimas.
O pai não sentiu coragem para lhe responder. Apontou a mulher, sem a olhar:
— A tua mãe que te explique...
Porém, a mulher discordou imediatamente.
— Eu? Era o que faltava!... Explica-lhe tu...
Calaram-se os dois. Diante deles, a rapariguita erguia-se ansiosa e inquieta.
— Que segredo é esse? Contem-me tudo, por favor!
O pai tentou ainda contemporizar:
— É cedo, minha filha, já te disse... Quando fores mais crescida, te contaremos... Tu ainda não podes compreender...
E, num desabafo incontido, a mãe interrompeu e completou:
— Basta que saibas, minha filha, que és diferente das outras raparigas.
A revolta transformou-se em espanto.
— Eu, diferente? Mas diferente em quê?... Tenho-me visto mil vezes ao espelho, e nada encontro de especial... Tenho olhos, nariz, boca... Sei falar... Sei sorrir...
A mãe voltou a interromper, agora mais nervosa e excitada.
— É aí mesmo que está o segredo, minha filha... No teu sorriso... Não ouves? Não ouves a música? Não sentes o cheiro?...
De qualquer modo, por vias que nunca se chegaram a saber, começou a espalhar-se por toda a terra a notícia de que vivia encerrada em casa, desde que nascera, uma pobre rapariguita.
E a voz pública chegou junto do velho prior da freguesia.
— Ah, já sei de que falam.,. Lembro-me agora muito bem... Vi a menina, pouco antes do baptizado, e no baptizado... Nunca mais!
O seu olhar misericordioso fixou-se no crucifixo grande da igreja.
— Pais desumanos, que não compreendem a bênção de Deus!
E, voltando-se para os que o rodeavam, acentuou com energia já pouco própria da sua idade:
— Eu lhes direi! Eu lhes direi!
E o velho prior saiu da igreja em direcção a casa do Mestre Chico, lá no outro extremo da terra. E enquanto caminhava, perguntava a si mesmo quais seriam os prodigiosos desígnios de Deus, ao ofertar àqueles pais rudes uma filha maravilhosa, que eles não sabiam entender...
As suas palavras não foram benévolas. O velho prior estava revoltado.
— Vocês são uns idiotas chapados! Possuem um autêntico tesouro e têm medo de o mostrar!...
Mestre Chico bem se queria defender:
— Nunca gostei de servir de alvo à troça dos outros...
E a mulher chorava baixinho:
— Para mim, isto é uma vergonha, uma grande vergonha, acredite, senhor Prior!
— Ah, sim? Ainda por cima, além de imbecis, vocês são ingratos!
E, erguendo a figura, remoçando-se por assim dizer, o velho prior afirmou com força:
— Pois se não querem saber da vossa filha, sou eu que tomo conta dela!
Voltou-se para a menina, que tudo ouvira em silêncio.
—Vamos, pequenina Maia... Para mais, este é também o mês de Maio... O teu mês!
E, numa curiosidade latente:
— Quantos anos fazes?
— Não sei, senhor Prior... Os meus pais nunca me disseram.
O olhar do sacerdote caiu duramente sobre Mestre Chico.
— Quantos?
O homem respondeu a medo:
— Tem doze... Vai fazer treze, senhor Prior...
— Treze anos! Treze anos, encerrada nesta casa, apenas por estupjdez!... Vem, minha filha, vamos agora para a casa de Deus... Aí poderás sorrir à vontade. E amanhã, depois da missa, hei-de mostrar-te a todo o povo desta terra... E tu poderás sorrir também, quando quiseres e como quiseres.
Na verdade, tal como prometera, no outro dia, depois da missa, o velho prior apresentou a rapariguinha bela e estranha aos seus paroquianos:
— Esta é a pequena de que lhes falei... Vejam como é angelical... Pois não parece o próprio anjo da inocência? Foi Deus que a quis ofertar a esta terra, como bênção ao seu povo... Louvado seja Deus!
E os crentes repetiram a uma voz:
— Louvado seja Deus!
E a rapariguita murmurou lentamente, como se falasse com o próprio coração:
— Louvado seja Deus!
Depois, o velho prior empurrou-a devagar para a frente, para que a vissem bem, para que ela os visse bem.
— É uma flor... E tem o perfume das flores... Maia foi o nome que lhe dei... Maia será para nós a alma do mês de Maio, o mês das flores, e do perfume, e da música.
E conta ainda a lenda velhinha e pitoresca que, acarinhada por todos, a rapariga sorriu de prazer e de alegria. E, quando sorriu, começou a ouvir-se logo aquela música estranha e bela, que ninguém sabia donde vinha. E começou a sentir-se logo também aquele perfume embriagador...
Ao princípio, o povo sobressaltou-se. Mas logo se deixou prender, enfeitiçado pelo sorriso da rapariguinha.
A notícia correu pelas ruas, subiu aos montes, mergulhou nos rios, misturou-se com o vento e com as nuvens, chegou a toda a parte.
Novos curiosos surgiram, aos bandos, para presenciar o prodígio, que era agora a vaidade e o orgulho da terra.
E Mestre Chico e sua mulher acabaram igualmente por se render à evidência. Em vez da troça que receavam estupidamente, a sua filha conquistara respeito e admiração.
— Que tolo eu fui em não ter compreendido antes!...
— Que remorsos eu tenho das lágrimas que lhe fiz chorar!...
De tal modo se propalou a fama da menina-flor, com sorriso de perfume e música, que aquela terra passou a ser conhecida como a terra da Maia; e mais tarde, naturalmente, apenas como a Damaia…
E mais do que isso: a tradição manda que ainda hoje, no mês de Maio, se procurem pelos campos umas pequeninas flores, de cor amarela, que se chamam «maias»... E aquele que entre tais flores saiba encontrar uma que tenha perfume e música, encontrará também a felicidade!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 25-30
- Place of collection
- Damaia, AMADORA, LISBOA