APL 2717 Lenda de Folgosinho de Ar
Não sei se conhece Folgosinho, bom amigo leitor… se sabe onde fica Folgosinho... Há quem lhe chame Folgosinho da Serra, pela sua situação privilegiada, no alto dos Montes Hermínios... De qualquer modo, trata-se de uma terra portuguesa com fortes e fundas raízes na nossa História.
E, segundo rezam velhas crónicas, foi aí que nasceu precisamente esse gigante semilendário que se chamou Viriato.
Depois de Viriato ter deixado ali gravada a sua passagem, o monte continuou a ser o mesmo que dantes era. E só muito tempo decorrido — dizem uns, com D. Afonso Henriques; opinam outros, com D. Sancho I — o monte se tornou terra habitável como povoação de certa importância, impondo aos visitantes esta legenda bem significativa: «Água da serra, soldado para a guêrra»...
E agora vou contar-lhes a história que me contaram...
Naquele dia, el-rei de Portugal, na sua tarefa insana de conquistar novas terras aos Mouros, sentia-se satisfeito e extenuado, simultaneamente. Satisfeito, porque as presas tinham sido boas. Extenuado, porque as corridas pela serra sempre obrigavam a grande esforço.
Assim, deu uma ordem que imediatamente se espalhou em redor:
— Parai!... Parai por uma vez!... Eles já fogem de mais para que os possamos agarrar!
E sorrindo, orgulhoso do seu feito e dos resultados alcançados, acentuou:
— Bem nos bastam os que ficaram aqui...
Porém um dos seus homens de confiança adiantou-se e disse com entusiasmo:
— Meu senhor, há ainda muita moirama viva!... Permiti, senhor meu rei, que a persiga!
El-rei de Portugal fitou-o de sobrecenho carregado.
— Não! Já disse que não!... Não me ouvistes, Pêro Vasques?
Depois passou o olhar sereno e altivo sobre os que escutavam. Lentamente. Autoritariamente.
— Loucuras, não as quero!... Preciso de todos os homens valentes, como vós sois!
Pêro Vasques, embora de má vontade, desceu da sua montada, devagar, e exclamou numa voz indefinida:
— Graças, senhor meu rei... Farei o que me ordenares.
E, num sorriso meio de troça meio de despeito, ajuntou:
— Descansarei... como se precisasse de descanso!
El-rei de Portugal olhou-o numa expressão de soberana altivez.
— Pois se não precisais... preciso eu!
Ali, no sopé da serra, enquanto a noite se estendia sobre os homens acampados que rodeavam el-rei D. Afonso, o calor ensombrava-os também, roubando-lhes energias e vontades.
Parecia até que o Sol se prolongava na própria Lua — pois nem uma brisa corria, nem as trevas serviam de refúgio.
D. Afonso Henriques e os homens que o acompanhavam mal conseguiram dormir.
De repente, as gargalhadas de D. Pêro Vasques cortaram o silêncio da noite.
— Quieta!... Quietinha, minha cabrita montesa!... Com que então querias fugir-me a tempo?
De seguida, abriu-se todo numa gargalhada sem fim.
— De mim, ninguém foge… Quieta, já te disse!
Porque o silêncio da noite fora cortado, destruído, logo apareceu el-rei, sempre atento e pronto para todos os acontecimentos inesperados.
E perguntou, num tom áspero:
— Pêro Vasques, que barulho é este?... Achais ainda pouco o inferno do calor, para sermos obrigados a suportar as vossas brincadeiras?
Pêro Vasques adiantou-se. Solene. Resoluto.
— Senhor, perdoai, mas capturei para vós uma boa presa!
E empurrou uma rapariga para a frente. El-rei mirou-a. Surpreendido. Preocupado.
— Uma rapariga a estas horas?... Onde a encontrastes, Pêro Vasques?
O cavaleiro aproximou-se mais.
— É uma espia da maldita moirama, senhor meu rei. Andava aqui mui cerca do acampamento. Eu descobri-a… e quando ela quis fugir... já era tarde!
Pêro Vasques fechou o seu depoimento com uma gargalhada. Mas D. Afonso Henriques, olhando a frágil figura encolhida a seus pés, ainda pretendeu encontrar uma justificação.
— Que fazias tu aqui, a estas horas da noite?
Ela baixou a cabeça. Com raiva. Com destemor.
— Não direi nem uma palavra a nenhum dos dois... Quero falar com el-rei!
Houve um momento de perturbação. Eles entreolharam-se. Depois, Pêro Vasques não conseguiu manter a calma.
— Ouvistes, Senhor?... Somente quer falar com el-rei.
E, apontando-a, quase estiraçada no solo, o nobre cavaleiro português comentou:
— Voz de víbora em corpo de gazela... Cuidado com ela, Senhor!
O monarca português obrigou a rapariga a erguer-se.
— Que queres tu dizer ao rei?
Ela olhou-o, numa expressão de ódio e de desconfiança.
— Levai-me diante dele... Depois o sabereis!
Então D. Afonso perdeu a paciência, segundo conta a lenda antiga.
— Pois falai, e falai depressa... porque o rei sou eu!
Embora segura, fortemente segura, a rapariga recuou num sincero movimento de pasmo.
— Vós, Senhor!... Sois vós?
Logo Pêro Vasques a atirou de novo para a frente, num impulso de violência. E disse, numa nova mistura de riso e gritaria:
— Vede como ela se espanta, senhor meu rei!... Agora já não sabe que dizer, nem como explicar o que se passa.
Mas a prisioneira teve um gesto de brio. Libertou-se das mãos que a seguravam. Avançou num ar de revolta e de confiança em si própria. E disse com voz firme:
— Enganais-vos!... O que tenho a dizer é bem simples.
E logo, sem qualquer espécie de hesitação, voltou-se para D. Afonso e explicou:
— Senhor meu rei... Sou uma pobre rapariga do alto da serra... Soube que o meu rei precisava de bom ar, de ar puro... Por isso, Senhor, venho buscar-vos. Na minha terra, lá bem no alto, tereis o que procurais.
Pêro Vasques não se conseguiu conter. O seu génio impulsivo tinha de desabafar. E desabafou:
— Cala-te!... O que tu queres é atrair o nosso rei a uma cilada!
Porém, el-rei de Portugal fingiu que nada ouvira. E perguntou apenas à pobre rapariga que continuava ajoelhada a seus pés:
— Bem. Vamos lá a saber: onde é o sítio que tu dizes?
Ela apontou para o alto da serra da Estrela.
— É ali... Naquela terra quase junto ao céu, como nós costumamos dizer.
E, sempre de braço estendido, ela ajuntou ainda:
— Contavam meu pai... e o pai de meu pai... que aquela terra, além fora do grande Viriato!
El-rei levantou o olhar até aos contrafortes da serra.
— Pois também quero conhecer a terra de Viriato!
Pêro Vasques tornou a avançar. Agora sem rir.
— Senhor, pensai bem!... Talvez seja uma imprudência... Eu penso que…
Mas D. Afonso interrompeu-o:
— Que se cumprem as minhas ordens! Dai abrigo a esta rapariga. É assim que romper a alva, ela nos guiará à sua terra… a terra de Viriato!
Tal como ele ordenara, mal despontaram no horizonte os primeiros raios de sol, os homens d’el-rei de Portugal voltaram a pôr-se em marcha, serra acima.
A viagem foi longa e penosa. Pelos atalhos ásperos da serra, os soldados, já violentados pelo calor, cada vez mais forte, rogavam pragas surdas de revolta. Ai deles, se não fosse a chefiá-los o próprio rei de Portugal, com o seu pulso de ferro e a sua vontade indomável!...
A certa altura, o próprio monarca chegou a hesitar.
— Diz-me, rapariga… falta ainda muito?
E ela, fresca, saltitante, como se tivesse começado a jornada nesse mesmo momento, respondeu, solícita e sorridente:
— Senhor meu rei... é já ali… no voltar daquela curva...
Pêro Vasques resmungou, olhando-a de soslaio:
— Ah, pérfida cabrita montesa!... Já disseste isso pelo menos vinte vezes… e nós ainda não chegámos!
E rematou com raiva:
— Se o meu rei me deixasse, eu te obrigaria a falar verdade asinha...
Ela ripostou prontamente:
— Falando verdade estou eu, Senhor. Vinde comigo e vereis como é certo.
Então, o outro perdeu a paciência.
— Senhor meu rei, permiti que vos rogue mais uma vez: tende cuidado!... Tudo isto pode ser uma cilada miserável, armada por esta diabólica rapariga!
D. Afonso sorriu, apesar do cansaço. Sorriu e comentou:
— Vós chamais-lhe diabólica, Pêro Vasques... Eu acho-a angelical... Até me parece que foi enviada por Nossa Senhora, padroeira do Reino.
E, num tom sem réplica, acrescentou ainda:
— Acho que a devemos seguir sem temor!
O outro limitou-se a baixar a cabeça.
— Sois vós o rei... Fazei o que achardes melhor!
A marcha recomeçou, agora com redobrada vontade de chegar depressa.
— Vamos, donzela da serra... Oxalá que falte pouco, na verdade!
A rapariga estendeu o braço, a apontar o horizonte.
— Já vos disse, senhor meu rei... É para além daquela última curva do caminho... Repito-vos, Senhor: vinde comigo e vereis como é certo!
E el-rei de Portugal lá foi acompanhando a rapariga, quase lado a lado.
E dessa vez foi mesmo certo, conta-nos a história de antanho... Para além da última curva da ladeira, abrupta e difícil, erguia-se o monte de pedras onde a rapariga vivia...
D. Afonso Heuriques foi, como sempre, o primeiro a chegar ao alto, logo seguido pelo valente e fiel Pêro Vasques.
— Meu Deus, que paisagem deslumbrante! Que ar magnífico! Vedes, Pêro Vasques? Vedes, com os vossos próprios olhos?...
O outro aquiesceu. Mas continuou desconfiado e atento, apesar de tudo.
— Vejo, sim, meu senhor... porém o sítio parece-me próprio para uma cilada... Voltemos para trás, senhor meu rei, e quanto mais depressa melhor!
— Calai-vos, por Deus, Pêro Vasques!... Isto é um presente do Céu!
E Pêro Vasques calou-se. Compreendia que nada faria demover el-rei. Nada, a não ser a sede...
— Ah, se houvesse aqui também um pouco de água!...
Num instante, a rapariga reapareceu junto dele.
— Meu rei, água também haverá, já que a desejais... Fazei das vossas mãos uma concha e acercai-vos deste penedo...
El-rei assim fez. Mas também duvidoso...
De súbito, a rapariga caiu de joelhos. Parecia em êxtase. Murmurou misticamente, de mãos postas em jeito de oração, de olhos fitos na rocha dura da serra:
— Aqui viveu o grande Viriato... Aqui matará a sede el-rei de Portugal!
E logo, como que por milagre, do penedo começou a correr água... Água boa, cristalina, fresca, apetitosa, pura e saudável. Água da Serra!
Todos beberam sofregamente. Até o próprio Pêro Vasques, que parecia agora convertido ao poder maravilhoso da estranha rapariga.
E foi então que el-rei de Portugal, abrindo os braços e espraiando o olhar sobre os montes, disse a frase que ficou eternizada pelos séculos:
— Descansemos aqui... e vamos todos tomar um folgosinho de ar!
Conta-se que D. Afonso Henriques e os seus homens, depois de tomarem esse folgosinho de ar abençoado, abalaram por aí fora, com novas forças, limpando as terras da maldita moirama...
Atrás, no alto da serra, ficou apenas uma rapariguita, figura da Terra ou do Céu, murmurando com voz de profecia:
— Água da serra, soldado para a guerra... Folgosinho! Folgosinho! Folgosinho!
E assim nasceu, a doze quilómetros de Gouveia e nas abas da serra da Estrela, a freguesia de Folgosinho, que ainda hoje lá tem a sua celebrada fonte do Gorgulhão, emoldurada por versos dos Lusíadas.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 223-228
- Place of collection
- Folgosinho, GOUVEIA, GUARDA