APL 706 Lenda de bias do norte e do sul
Nesses tempos em que Allah
Viveu em terras cristãs,
O sol trazia consigo
O calor de outras manhãs.
Até as ondas do mar,
Que ali perto adormeciam,
O perfume de outras flores
Lá de tão longe traziam.
As aves, os rouxinóis
Que bem sabiam trinar,
Cantavam ali, também,
Para amar, só para amar.
De igual modo, brandos ventos,
Vindos de outras latitudes,
Vibravam no ar das tardes
As cordas dos alaúdes.
Era el-rei, Ben Abdalkrim,
E tinha, como tesoiro,
Dez palácios de cristal
Forrados a folhas de oiro.
Quando o sol ali beijava
Essas paredes douradas,
Fugiam, para bem longe,
As pessoas, de pasmadas.
Tinha dez filhas, el-rei,
Mais belas que quanto havia...
Era Fhátma... era Zhara...
Mas todas de nome Bia...
Queria el-rei que elas fossem,
Voto feito ao Al-Corão,
Casadas com gente moira,
Nunca com homem cristão.
Mas os votos assim feitos
A um deus não verdadeiro
Foram como sons fugindo
Nas águas de algum ribeiro.
Porque... senão fora, foi
O caso assim sucedido:
De terem dez reis cristãos
Logo ali aparecido.
Vieram de longes terras,
Trazendo dinheiro e fama,
Para fazerem cristãs
Quem nascera na moirama.
Mas el-rei Ben Abdalkrim,
Invocando Allah distante,
Cada filha, flor amada,
Encantou com seu amante.
Foram elas transformadas
Em figueiras rasteirinhas,
Onde nem sequer pousavam
As velozes andorinhas.
E eles?... Ah!... eles, coitados,
Sem mais sorte ou mais alentos,
Foram feitos, para sempre,
Negros mochos agoirentos.
Mais... el-rei ali traçou
Uma linha imaginária;
Linha essa que inda hoje existe
E da lenda é tributária.
Abdalkrim então falou,
Nessa manhã, só de azul:
Cinco filhas para o norte,
‘Cinco filhas para o sul!
*
A lenda que o tempo trouxe,
Geração em geração,
Ainda agora se escuta,
Ao luar, em pleno v’rão.
É que logo que é sol posto
E ao sabor da maresia,
Andam os mochos dizendo,
Tristemente: Bia!... Bia!...
E ao sítio que ali ficou
Tão malquisto assim por sorte,
Passou a chamar-se, então,
Bias do Sul e do Norte.
*
Esta foi a lenda triste
Que os sóis, ao longe, dispersos,
Contaram, não sei porquê,
Aos ouvidos dos meus versos.
E a ti peço, alma cristã,
Que, quando um mocho piar,
Faças o sinal da cruz
Por alguém que anda a chorar.
- Source
- LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas , Edição do Autor, 1995 , p.48-51
- Place of collection
- OLHÃO, FARO