APL 712 A lenda do palácio de estoi
As lendas sempre teciam,
Noutros tempos, noutras eras,
Histórias que entonteciam
O sorrir das primaveras.
Romances que as gerações
Doutras gerações traziam,
P’ra falar aos corações
E, assim, os entristeciam.
Eram tão tristes baladas,
Relatos de histórias lindas,
Que se contavam, choradas,
Por dias, noites infindas.
Se muitas a nós vieram,
Falando casos de amor,
Outras muitas se perderam,
Por falta de narrador.
É duma lenda esquecida
Que hoje vos venho falar;
Duma que nenhuma vida
Pôde com ela ficar.
Longo tempo andou perdida
Nas margens do esquecimento,
‘té que uma voz dolorida
Me a contou, por um momento.
* *
Foi por noite perfumada
Das rosas de algum jardim,
Que ouvi a voz torturada,
E a lenda dizia assim:
— “Em tempos que o tempo trouxe
Das mãos de Deus, poderosas,
Era a vida aqui tão doce
E os jardins eram de rosas.
“Os ribeiros, que os havia
Correndo por todo o lado,
Prestavam à luz do dia
Um encanto desusado.
“E, à noite, brilhavam mais
Que os astros cheios de luz,
Soltando suspiros e ais,
Na raiz de alguma cruz.
“Aqui, viviam as gentes
Tão cristãs e tão de siso,
Tão felizes, tão contentes,
Tal fosse no paraíso.
“E até os astros dos céus,
Vindos de além do infinito,
Deitavam seus lindos véus,
De luzes sobre o granito.
‘Era então a serrania
Sempre de verde florida,
Onde a cor e a luz bebia,
Mesmo a rosa e a margarida.
“Isto foi em hora antiga,
Porque depois... ah!... depois,
Veio uma gente inimiga
Que apagou todos os sóis.
“E de opróbrio revestiu
Os habitantes cristãos,
— Povo ilustre que serviu
Os moiros, por suas mãos —.
“Era a vergonha tamanha
E tão grande o seu sofrer,
Que fugiu, para a montanha,
O povo, p’ra não morrer.
“E os sarracenos, senhores
Da terra que emudeceram,
Pisando vergéis e flores,
De pronto se defenderam.
“Alto castelo se ergueu
Numa elevação propícia,
Mas.., por aviso do céu,
Nunca dele houve notícia...
“Que só a lenda me diz
Que ali, de facto, existiram
Muros que, desde a raiz,
Aos assaltos resistiram.
“Foram, por anos compridos,
Viveres tão margurados,
Que os pobres cristãos vencidos
Morriam, abandonados.
“té que um dia a luz mais alta
Do futuro despontou,
No tudo em que havia falta,
Na fé que a todos sobrou.
“Foi o caso que, por vezes,
Apesar de algum rebate,
Os valentes portugueses
Aos mouros davam combate.
“Eram ataques fortuitos,
Feitos repentinamente,
Donde colhiam os fruitos
De ceifar a moira gente.
“Foi a força enfraquecendo
Da moirama, em tempo breve,
De tal modo, que só vendo
As coisas que a pena escreve.
‘Foi, então, depois a vez,
Havido de Deus sinal,
Do forte Rei português
Dar o combate final.
“E os moiros, desbaratados,
Fugiram a bom fugir,
Indo morrer afogados
No mar, ao longe, a luzir.
“A lusa gente, após logo,
— Que mais podia fazê-lo? —
Passaram a ferro e fogo
As pedras desse castelo.
“Ali tudo foi desfeito
E tudo caiu por terra,
De modo que desse feito
Acabou p’ra sempre a guerra”.
Isto foi que disse a lenda
Naquela noite saudosa,
P’ra que mais assim me prenda
À terra de Estoi, famosa.
Mas a voz do entendimento,
Que veio de outros avós,
Mais me contou, num momento,
Que sucedeu logo após:
“Deus Allah que das esferas
Tudo viu e acompanhou,
P’ra todo o sempre das eras,
A lei fatal decretou:
“Hão-de passar muitos anos,
“Os séc’los hão-de correr,
“E nessa vida de enganos
“Muito irá acontecer.
“Mas de tudo o que virá
“De mal, por minha vontade,
“Muita fala se dirá
“Duma coisa, na verdade.
“É esta a minha sentença,
“Será este o meu castigo
“Que, por vós e por ofensa,
“Vai cair, povo inimigo:
“Sobre o castelo arruído,
‘Um majestoso e falado
“Palácio será erguido
“P’ra depois ficar fechado”,
E assim foi... ninguém esquece
De Allah o puro sentido,
Que o Palácio permanece,
Aqui perto, adormecido...
* *
Foi esta a lenda esquecida
Que as horas vieram contar,
F que irá p’r’além da vida,
Se ninguém quiser salvar
Esse Palácio de Estoi,
Prodígio de arquitectura,
Que em outro tempo assim foi
Traçado na pedra dura.
- Source
- LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas , Edição do Autor, 1995 , p.88-94
- Place of collection
- Estoi, FARO, FARO