APL 243 A lenda de salácia

Definitivamente tomada aos Mouros por D. Afonso II a vila de Alcácer do Sal, a antiga Salácia fenícia (no parecer autorizado de alguns historiadores e arqueólogos), os Portugueses aí se fixaram.
 Bens de vária natureza e despojos valiosos abandonaram, na precipitação da fuga, os vencidos aos vencedores. Porém, mais que os bens materiais, um outro bem, sem dúvida, de mais elevado preço os portugueses de Alcácer prezavam — era uma formosa criança moira.
 Almira se chamava ela.
 A mãe, formosa como a filha, tinha-se escapado fugindo à garra inimiga. Posta a salvo, a lembrança da filha abandonada não se cansava de a atormentar e causava-lhe funda desolação no seu coração amargurado de mãe. De seus olhos corriam a fio as lágrimas que encheriam largo rio, parafraseando o feliz e hiperbólico expressar de um grande poeta da Terra Lusa.
 Os Portugueses eram generosos para com os vencidos e, não querendo desfazer-se dessa jóia preciosa, guardam-na para princesa e dão-lhe um régio manto.
 Cresce a moira de negros cabelos, e com ela uma saudade infinda, um doce amargo de infelizes.
 Seu ar era triste, e essa tristeza tomava-a ainda mais esbelta e gentil.
 Fez-se mulher e tão grande era a sua formosura, que não havia igual. Nesse castelo conquistado para Portugal, passou a ser rainha.
 Seus excelentes dotes físicos e morais enfeitiçavam os jovens cavaleiros, que, vendo-a, logo se quedavam presos de amor.
 A gentileza e excelência do trato para com os varões portugueses, não podiam deixar de tocar fundo nas almas que ela já havia conquistado como rainha da beleza. Já muitos nobres cavaleiros se haviam perdido de amores pela jovem moira, mas suas tendências afectuosas iam para um jovem cristão que a cativara.
 Diz a lenda que certo parapeito do castelo ouvia as suas lamentações, as suas queixas, nas cálidas noites de Agosto e Setembro, amenizadas apenas pelo refrigério da brisa que soprava do rio.
 Seus lamentos ouvia-os quem enfeitiçado de amor estava por ela. Não podia ocultar por mais tempo a chama do amor que se ateara no peito do gentil moço, que, tímido, empreende falar-lhe.
 Estava ela uma noite no lugar costumado olhando ao longe saudosa dos seus que jamais voltara a ver, quando, volvendo o olhar, dá de caras com o moço ajoelhado a seu lado. Tímido, se expressa ele dizendo que a amava. Nesse instante acabava de nascer a Lua, e a moira pôde então contemplar o rosto moreno e bem delineado do moço que Allah ou, talvez, o Deus dos cristãos havia posto a seus pés. Seus pensamentos que voavam alto no sideral espaço, são postos num cristão português. E vai daí a moira, presa de amor, responde-lhe dizendo que findara seu tormento, queria ser cristã, ser de Dom Gonçalo!
 E, assim, volvidos séculos desde que tal se passara e que a tradição refere, sempre que à noite, a Lua corre no espaço sideral, a mortal lembrança de um herói luso e duma moira bela, um par cantando o seu hino de amor à luz da Lua, ocorre à nossa mente com repassada ternura. E por Salácia se diz que nas noites luarentas ainda hoje se ouve um sumido rumor, frases e lamento soltos por eles, que jazem unidos na eternidade do tempo e dos séculos.

Source
DELGADO, Manuel Joaquim A Etnografia e o Folclore no Baixo Alentejo , Assembleia Distrital de Beja, 1985 [1956] , p.233-235
Place of collection
ALCÁCER DO SAL, SETÚBAL
Narrative
When
20 Century, 50s
Belief
Some Belief
Classifications

Bibliography