APL 70 O fidalgo da canna verde
Leitor amigo, se és curioso de apurar velhas historias, que andam hoje obscurecidas, nesta epoca semsabormente prosaica; sobretudo se tens alma de artista, vem percorrer o couto de Alafões, que pertenceu ha muitos seculos ao moiro Cid Alafum.
Repara como nestes sitios tem especial melodia o gorgeio do rouxinol, que ás vezes até parece deseja nas suas cantigas revelar-nos um segredo. Escutarás em certas occasiões vozes humanas a suspirar no Vouga, por entre o sussurrar da agua, que foge espumando sobre os rochedos.
No mesmo silencio dos carvalhaes frondosos adivinharas mysterios de magia, e, trepando a festo pelas montanhas, não deixarás de notar que as fragas de caprichosas curvas são porventura letras de lingua desconhecida.
Os oiteiros graciosos de tão verdes pinheiraes, que o rio vai coleando pela base, e tão symetricos se alteiam do valle, dir-se-á que foram erguidos por varinha de condão de alguem que pretendeu fazer perder a pista dos thesoiros escondidos.
Tudo quanto sonhares, por mais que a tua imaginação pareça estontear-te, não sairá dos limites da verdade. Basta dizer que estamos em terra de moiras, e de moiras encantadas.
E tão bonitas são, que ai do mais sisudo, se o feitiço vem a quebrar-se, e as sarracenas voltam a assenhorear-se do velho couto!
De mais a mais, tradição bem segura nos affirma que, se tal succede, os lamentos e gemidos, que distinctamente se repercutem por esses valles, e são o pranto das agarenas prisioneiras, se transmudarão numa alegria doida e sem limites.
Ai de nós, se as lindas filhas de Agar se desprendem do seu encantamento!
Segura tradição, leitor, segurissima e comprovada é essa que anda na memória do povo, e escripta em letras gothicas nos alfarrabios de pergaminho.
Contam que, no dia em que nestas terras se encontrarem face a face um neto e uma neta do moiro Alafum, logo volverá o senhorio ao poder d’elles mas isso depende — como hoje se sabe claramente pelo que vou dizer-te — de que o par professe a lei de Mafamede, a mais completa em feitiços e sortilegios.
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Nos principios da monarchia vivia numa casa da freguezia de Fataunços um genuino descendente do antigo senhor. El Haturra — assim era o seu nome — não se assemilhava ao avô na crueza e tyrannia; pelo contrario, bonacheirão e de genio facil, parecia acceitar sem tristeza o dominio portuguez. Já idoso, bastantemente feio, e mais ou menos desvairado, era o joguete do rapazio, de que se defendia com uma velha canna resequida e negra, que na familia era transmittida, de geração em geração, e mui especialmente recommendada com palavras secretas, ditas ao ouvido com a solemnidade dos casos graves. Está descoberto o segredo, e é este: quando a canna reverdescesse, seria signal certo de que se dera o almejado encontro dos dois primos descendentes de Alafum, ao qual servira de derradeiro bastão de commando na celebre retirada dos sarracenos, e de vara magica para esconder thesoiros, soterrar palacios, e encantar donzellas, que ficassem de guarda ás preciosidades, e não fossem presa do exercito invasor, que, pela sua vinda de surpreza, obrigára os infiéis á fuga tumlultuaria.
Uma tarde, princeza esbelta, porventura da raça do Borgonhez, passeava por uma d’estas montanhas num ginete branco; a seu lado cavalgava em corcel negro uma de suas aias. Era boa christã a companheira da infanta; mas quem reparasse nos seus olhos azues a contrastarem com trança escura, e observasse o irrequieto semblante da donzella, perceberia logo que não era de sangue wisigodo a donairosa cavalleira.
As formosas senhoras, ao voltar uma curva do caminho, deram de rosto com o moiro; mas foram seguindo sem attentarem na sua figura alquebrada.
Não succedeu outro tanto a El Haturra, que imaginou logo enxergar na movimentada physionomia da aia o que quer que fosse de umas trovas que ouvira em pequeno, e nas suas recordações andavam ligadas á preciosa e querida canna, talisman de que muito se espera ainda hoje na Moirama para as reivindicações do crescente.
Ia o moiro scismando; tão alheado de si, nem reparava que perdêra de todo o cansaço, que a figura se endireitára e estavam negras as longas e nevadas barbas, transformando-se rapidamente o velho em moço elegante. De repente olha para o bordão, a que já nem se arrima, e comprehende que chegára o momento annunciado pelas prophecias: que em terras de Alafum se encontram, porventura pela primeira vez, um neto e uma neta do antigo senhor!
Poupar-te-ei, leitor, poupar-me-ei a mim, a contar como se approximou da côrte o remoçado El Haturra, e se resolveu o casamento d’elle com a aia da princeza, a qual facilmente decidiu o rei a dar-lhe como presente de noivado o senhorio d’estas viçosas terras. Mas lembrarei, se não és forte em assumptos de impedimentos, que se cuidou primeiro em baptisar o ambicioso infiel, prompto logo a acceitar a fé da sua noiva.
Ao findar o baptismo, ao qual se teria de seguir o casamento, que imaginas tu que succedeu?
A desposada fugiu espavorida, pois o mancebo perdêra toda a mocidade e gentileza, que tudo fôra obra de bruxedos.
A canna, que não entrára na igreja, conservou-se verde, e desde então dá-se em Fataunços um estranho caso. Quando alguem, á mesma hora e no proprio sitio em que succedeu o encontro dos dois primos, grita por tres vezes: «Viva o fidalgo da canna verde!» — que assim lhe ficou chamando o povo,— logo se ouvem por todas essas montanhas gargalhadas argentinas e um tocar alegre de pandeiros. Depois. oh! depois, volta, como desillusão das lindas moiras, o sussurrar plangente das aguas, mais continuado e triste, parecendo que se differençam vagos sons de guitarra a entoar desditas. São os queixumes das filhas do deserto presas ao seu encantamento!
Na frontaria de uma casa de Fataunços admiram ainda hoje os viandantes uma esculptura graciosa rememorando o singular successo, que esteve a ponto de nos collocar sob o dominio das sectarias do Alcorão, e cuja lembrança, como se vê, é bastante para lhes dar momentos de grande prazer e alegria.
Diz-se que algures está cuidadosamente arrecadada a canna sempre verde, que tão fugitivamente principiou a realisar os sonhos de ambição de um neto de Alafum.
E agora terminando, leitor paciente, deixo-te a phantasiar o que será de nós, ainda os mais sisudos, se as desenvoltas sarracenas, trocadas as guitarras doloridas em pandeiros ruidosos, voltam a apoderar-se do antigo senhorio, e desatam a rir, a rir muito, a rir sempre de mim, de ti e de todos nós, numa alegria doida e sem limites.
- Source
- BERTIANDOS, Conde de Lendas , Hospital Conde de Bertiandos, 1993 [1898] , p.95-102
- Place of collection
- PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
- Collector
- Conde de Bertiandos (M)