APL 2846 Lenda da Moura Enamorada

Eis uma lenda estranha que se contava à lareira, quase como um conto de fadas. Aqui, a heroína é moura, não encantada pela magia dos seus maiores, mas pela fascinação de uns olhos penetrantes, de uma figura esbelta de cavaleiro que deveria considerar inimigo. E a lenda, porque era contada como história da avozinha, começa assim, tal qual como muitas outras histórias de encantar...
 
Era uma vez uma jovem moura de grande beleza e de ânimo forte e audaz. Adorava ouvir contar histórias dos seus antepassados guerreiros e das façanhas dos povos com quem os mouros se batiam. Desde menina que era assim. O seu pensamento cavalgava então saindo fronteiras, buscando os campos de batalha ou os palácios principescos. Imaginava-se frente a frente com tropas inimigas, combatendo com valor e galhardia. E sempre, sempre que o seu pensamento voava assim, via-se defrontada por um cavaleiro estrangeiro, de porte altivo, de olhar profundo e voz grave — mas doce, muito doce... Lutavam. Mas não havia ódio nos seus olhares. Dir-se-ia um desforço entre antagonistas que desejassem apenas experimentar a destreza de cada um. E sempre, também, ela sentia uma estranha alegria em deixar-se vencer! Era assim a linda e estranha moura. Mas a sua segunda vida, turbulenta e amorosa, não era conhecida de ninguém. Fechava-se ciosamente com os seus dois eus. Era o seu segredo. O seu maravilhoso segredo. E vivia feliz assim.
Um dia, porém, descia ela a calçada estreita, de valeta ao meio sob os arcos, acompanhada por duas mulheres, já idosas. Ia aos bazares situados nas ruas mais largas perto das portas de Lissibona que dão sobre o rio. Iam fazer compras. De súbito a jovem afastou-se pressurosa. As acompanhantes inquietaram-se, mas logo descobriram a causa daquele afastamento. Junto a um dos bazares estava um homem já velho. Era um narrador de histórias como, por vezes, surgia nesses locais da Lisboa mourisca. E homens ricos e mulheres veladas, pescadores e barqueiros aproximavam-se, para ouvir, como crianças junto doutras crianças, histórias maravilhosas, que sempre rematavam com aplausos. Em toda essas histórias se falava de Alá, nas suas dádivas maravilhosas. E terminava sempre:
— Allah ak-Bar!
A jovem deixou de interessar-se pelo conto. Voltou aos bazares. De repente, notou um certo alvoroço. Compreendeu logo de que se tratava. Há muito já que isso era temido. Cessara o bem-estar, a paz de espírito para os mouros de Lissibona. As atalaias da costa anunciavam a chegada de frotas, não de piratas, nem a dos Vikings da Noruega, nem sequer as de Afonso II de Oviedo, nem a de Afonso VI de Leão acompanhado de seu genro o Conde D. Henrique. Desta vez vinha também o filho do conde — Afonso Henriques — adiantando-se aos cruzados que viriam do Norte. A nova correu. Recolheram as donas às casas e os homens válidos reuniram-se. Ia começar o cerco. Mas não seria dessa vez que Lissibona, bem defendida por detrás do invólucro sombrio e rijo das suas muralhas, se entregaria aos portucalenses.
 
A jovem moura vive uma ansiedade estranha, mas não chora nem lamenta como as outras mulheres. Segue atenta os movimentos do porto e escuta as notícias que trazem os mensageiros. Dizem eles:
— Chegaram homens loiros do Norte. Estão em Portucale e em breve descerão o rio. E o rei Afonso trouxe consigo os melhores guerreiros das suas terras! 
E os mouros correm de um lado para o outro, abrindo fosso preparando engenhos.
A tarde ia em meio. Uma aragem fina corria pelas areias auríferas do Tejo, alvo da cobiça dos que acabavam de chegar. A frota nazarena avançava. Alguns entravam na enseada sob o monte Fragoso. Juntavam-se os homens armados nos convés, prontos a saltar para os botes que os poriam em terra. Depois, em vésperas de S. Pedro, aportaram o homens do Norte. Olharam abismados! Que linda lhes parece Lissibona!
Mas eis que surgem de um postigo entreaberto na muralha alguns guerreiros mouros. Começam os gritos de desafio e os primeiros virotões zumbindo!...
O cerco tornou-se difícil porque os mouros resistiam, mas sabia-se que pouco tempo poderiam durar assim os sitiados. A fome, a peste, a desolação lavravam entre os mouros, que não queriam ceder. Era necessário uma ajuda — diziam! E o alcaide proclamou:
— Preciso de voluntários para irem levar uma mensagem a Abu-Maomed, rei de Évora. É necessário que ele compreenda que, se nós cairmos, o mesmo flagelo o poderá afligir!
Dois homens apresentaram-se. O alcaide impôs:
— Preciso de três! Penso que se forem três homens será mais seguro. E devem seguir daqui dispersos!
Então, com grande espanto da assembleia, uma voz feminina fez-se ouvir.
— Deixa-me ir com eles! Asseguro-te que entregarei a mensagem a Abu-Maomed.
Recusou o alcaide. Mas, com os mensageiros que no silêncio da noite conseguiram lançar ao Tejo uma canoa, surgiu um outro vulto coberto por um manto. Porém, logo às primeiras remadas, as sentinelas cristãs deram o alarme. Outros barcos saíram em perseguição. Apanharam dois homens ao meio do rio. Nadavam no escuro, mas foram apanhados. Cada um era portador de uma mensagem para o rei de Évora. E os sitiantes ficaram a saber as deploráveis condições em que se encontravam os sitiados.
O cerco continuou. Começou o calor do Verão a pôr cansaços mesmo naqueles que se julgavam seguros. Surgiram discussões. A dor e a fome eram grandes para lá dos muros. Mas os sitiados resistiam.
Um guerreiro louro de olhos esverdeados saiu do campo, isolou-se. Olhou o rio calmo. Estava serena a noite. E o mar, tão belo, dava um tom prateado e irreal a quanto o rodeava. O guerreiro parecia sonhar. Estava cansado de lutas e tinha saudades da sua terra e de um sorriso de mulher. De súbito ficou alertado. Não era sonho o que os seus olhos viam. Correu para o rio sem se mostrar. Algo se mexia. Parecia uma canoa. E era. Aproou à praia. Desceu um vulto que correu ligeiro. O inglês correu atrás dele. Agarrou-o. Ouviu-se então um grito abafado. Um grito de mulher. O guerreiro arrancou-lhe o manto.
Negros cabelos caíram sobre os ombros de uma bela mulher. Olharam-se à luz da Lua. Olharam-se intensamente. Avidamente. Esquecidos da sua condição, do local da tragédia, da noite luarenta. Ele perguntou:
— Como te chamas?
Sobeyha.
— Donde vens?
— De Évora.
— Que vens aqui fazer?
— Volto ao meu lar.
Ele meneou a cabeça:
— Não voltarás! Ficas aqui comigo!
— Trago uma mensagem.
— Dá-ma!
Fora tão imperativo o guerreiro inglês, que a jovem moura tirou do seio a mensagem que trazia de Évora.
— Fizeste bem. Agora vou pedir a tua vida e liberdade em troca disto. Mas diz-me: como conseguiste chegar até Évora, saindo do castelo?
— Escondi-me na margem. E quando tudo sossegou, no dia seguinte, roubei aos teus uma canoa e parti.
O guerreiro atraiu-a a si.
— Quem poderá imaginar que uma mulher tão bela é tão corajosa! Por mim, sinto ganha a batalha!
— E está. Abu-Maomed não quer atraiçoar o pacto que fez com o rei Afonso. Não nos ajudará.
O guerreiro enlaçou-a. Ela deixou-se abraçar. E só o luar foi testemunha dessa demonstração de amor.

A manhã começou a clarear. Sobeyha, quase feliz, perguntou:
— Diz-me o teu nome, guerreiro louro de olhos cor do rio.
— Christian.
— Que estranho!
— Que tem de estranho?
— Que chegasse a encontrar-te, como sempre sonhei.
— Sonhavas comigo?
— Sim... Contigo. És tal qual te via em sonhos. E que belos eram esses sonhos!
— Agora será melhor! Tens a realidade!
Ela meneou a cabeça.
— A realidade é sempre mais dura que o sonho!
— Não concordo. Tu és realidade, eu quero-te e tenho-te junto de mim. É melhor do que um sonho!
— Não! Não ficarei por muito tempo junto de ti.
— Porquê?
— O dia vai começar. E quando os outros me descobrirem… tudo acabará!
— Não! Temos direito aos despojos. Reclamar-te-ei com quanto te pertença. Vamos abrir uma mina entre a torre avançada da praia e porta fronteira à Mesquita Maior. E temos a torre rolante.
Sobeyha começou a chorar silenciosamente. Ele acarinhou-a e ouviu-a murmurar:
— Se soubesses o que lá vai de fome, de doença e miséria! Mas resistem... resistem sempre. Só eu estou aqui, com a cabeça encostada ao peito de um guerreiro loiro e inimigo!
— Inimigo de quem?
— Dos da minha raça.
— Saberás amar-me como irei amar-te?
Ela afastou-se do guerreiro o suficiente para o olhar bem nos olhos e murmurou:
— Christian! Meu loiro guerreiro dos meus sonhos de menina! Creio que desde sempre te amei! É estranho, não achas?
Ele ia responder-lhe, mas um grupo da sua hoste aproximava-se. Christian pediu:
— Esconde-te! Não quero que te vejam, por enquanto.
Atrás dos ingleses chegaram normandos. Perceberam que algo se passava. Cercaram Christian e descobriram Sobeyha. Então o que se passou foi abominável. Christian defendeu a sua amada até à última gota do seu sangue. E a escaramuça generalizou-se. O motim foi descoberto pelo rei Afonso. Foram enviados homens para investigar. Encontraram um corpo de mulher quase a deixar a vida caído sobre o cadáver de um guerreiro louro. Levam a moribunda à presença do rei Afonso. Ele e o bispo ficaram sós com ela, na tenda. Com esforço, Sobeyha narrou os acontecimentos. Disse do seu sonho desfeito e pediu:
— Rei Afonso! Quando entrares na cidade... não deixes… que os homens que comandas… façam o mesmo… que me fizeram a mim!
O rei, comovido, sossegou-a:
— O teu desejo é o meu!
Ela pediu ainda:
— Baptiza-me... para que me enterres... com o meu guerreiro loiro!
— Assim faremos!
Sobeyha sorriu. Recebeu prontamente as águas do santo baptismo e expirou momentos depois.
Nesse mesmo dia, o rei Afonso mandou reunir os homens que tinham vindo das cruzadas e declarou-lhes, em palavras severas e lentas:
— Vou dar ordem aos meus homens para deporem as armas! Vou levantar o arraial amanhã de madrugada.
Um normando perguntou entre a multidão.
— E a conquista da cidade? E as riquezas que prometeste?
D. Afonso Henriques declarou:
— Quero mais à minha honra e à paz da minha consciência do que a tudo! Escolhi mal os companheiros, pois não sabem reprimir a vilania dos seus pensamentos... São homens impuros, capazes de tudo!
Alguns tentaram justificar-se. Então, D. Afonso acedeu em fazer nova experiência.
Mas naquela terra que afinal sempre foi conquistada, para cá das muralhas de Lissibona e no campo onde se sepultavam os cadáveres dos mártires, ficaram também, lado a lado, o corpo de uma linda jovem moura que soubera ser fiel ao seu amor, mesmo conhecendo-o só em sonhos, e o corpo golpeado de um jovem guerreiro loiro que tivera um porte altivo e olhos verdes cor do rio.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 313-317
Place of collection
Castelo, LISBOA, LISBOA
Narrative
When
12 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography