APL 3015 Lenda da Promessa de D. Beatriz

A noite começara a descer. Uma noite de Agosto. Havia calma aparente. Cantavam os ralos. Passeavam os mouros que haviam ficado na povoação, perto de Silves mas afastados da cidade por precaução. Iam e vinham como formigas. Ao encontrar-se paravam, comunicavam entre si algo que sabia a segredos e continuavam o caminho. Porém, a nova assim espalhada não era mistério para os soldados de Afonso III. Eles calculavam que alguém soubera que o rei e a jovem rainha D. Beatriz se encontravam em Silves. D. Beatriz comportara-se como criança mimada que era e insistira para vir conhecer uma terra tão cobiçada pelos Portugueses e por seu pai, o rei de Castela. Mas os mouros viam nesse desejo puramente feminino o prenúncio de qualquer opressão. E a revolta surda começou a surgir.
Montando a cavalo, um dos chefes portugueses foi a Silves avisar do que se passava. Entretanto, um mouro já velho correu a uma barraca meio escondida nos rochedos junto ao mar e perto de Pêra. Antes de entrar, verificou se alguém o seguia. E só depois chamou baixinho:
Zaida!... Zaida!
Uma jovem de porte distinto, mas vestida com simplicidade, assomou à entrada.
— És tu, Abdul?
— Sou. Preciso falar-te.
— Entra!
O mouro entrou. Estava excitado. Ela assustou-se.
— Que aconteceu? Como está João?
— Nada sei do que lhe pode ter acontecido. Sabemos que está cativo em Silves e que se deixou baptizar. Porém… algo se passa por lá!
— Como o sabes?
— Todos o dizem. O rei português e a rainha chegaram a Silves.
— Para fazer o quê?
— Isso é o que não sabemos!
— Se houvesse perigo, João tentaria avisar-nos.
— Ele agora é cristão!
— Mas cativo, e ama-nos!
— A ti, sim. Mas a nós... Acreditas tanto na sua palavra?
— Mais do que na minha!
— Ele está perto e não mais te procurou.
— Jurei-lhe que não sairia daqui. Sabe que cumprirei a minha promessa. Ninguém me verá antes que ele venha buscar-me!
— Olha que se os soldados te vêem...
— Há por aí mulheres!
— Mas nenhuma tão bela como tu!
— Deixa isso agora!
— Bem sabes que é verdade! Até o nosso povo te admira. E pensa que terias melhor sorte se fugisses para a África e deixasses o renegado.
Zaida impacientou-se.
— Abdul, não fales assim de João! Se ele se fez baptizar é porque acredita estar dentro da verdade. Ambos sofremos horrores com a separação. Lembra-te de como ele se bateu ao lado do governador! Mas Aben-Afan morreu… e ele não quis abandonar o seu corpo. Fizeram-no prisioneiro. Sabes tão bem isto como eu. Porque duvidas agora?
— Não me conformo com o seu baptismo! João... Um nome cristão! Para mim, é como se fosse outro homem!
Zaida meneou a cabeça.
— Abdul! Foi para me dizeres isso que vieste aqui?
— Não. Quero-te como se fosses minha filha e receio pela tua vida e pela tua honra!
— Por mim?
— Sim. Isto não anda bom. Vai acontecer qualquer coisa... Vai acontecer, pressinto-o! Que Alá nos proteja!
— E que pretendes que eu faça?
Abdul baixou ainda mais a voz.
— Esta noite, à primeira hora do dia de amanhã, deve chegar ao largo um barco vindo de África. Alguns dos nossos vão sair com um barquito até ao largo, para fugirem. Segue tu com eles!
Zaida ripostou, enérgica:
— Eu fico! Só sairei daqui por ordem de João.
— E se eu te trouxer essa ordem?
— Nesse caso, vou.
— Pois crê que será essa a sua vontade.
— Não, não posso crer! A sua vontade terá de revelar-se pela única forma que ficou combinada entre nós.
— Qual é?
Zaida sorriu.
— Perdoa, Abdul! É segredo entre nós dois. Só entre nós dois!
A conversa foi subitamente interrompida. Na estrada, uma cavalgada fazia-se ouvir. Vinha das bandas de Silves. Abdul sobressaltou-se:
— Aí estão eles! Fomos descobertos. O barco já não poderá sair. Malditos cristãos!
Zaida não respondeu. Abdul segredou:
— Fica onde estás. Tenho de ir falar com os outros.
Esgueirou-se por entre os rochedos da praia. O luar iluminava agora em cheio todo o local. De repente deu-se o alarme. Alguém gritou:
— Olhem aquele homem que corre na praia! Deve ser dos tais que iam fugir!
Logo um tropel se fez ouvir nessa direcção. Zaida sentiu o coração bater-lhe no peito. Espreitou. Alguns cavaleiros corriam junto à praia. Pararam. Desmontaram e perseguiram o fugitivo. Por fim, um deles gritou para cima:
— Já avistámos o homem! Deve ser dos tais! Decerto ia preveni-los!
Outra voz respondeu perto da cabana de Zaida:
— Agarrem-no e tragam-no, para que os outros o vejam!
Ouviu-se um burburinho. A voz da praia, gritou:
— O homem deitou-se ao mar!
O que devia ser o chefe respondeu:
— Fiquem alguns aí para ver se ele volta! Os outros que sigam comigo!
— Creio que desapareceu nas ondas!
Ouvindo isto, Zaida levou uma das mãos à boca para sufocar um grito. As lágrimas correram-lhe pelo rosto. Perto, a voz que parecia de comando ordenou:
— Revistem esta cabana!
A jovem moura ficou petrificada. Pediram:
— Tragam luz!
Depois de breve hesitação, Zaida saiu ao encontro dos soldados. O luar batia-lhe em cheio. Houve uns momentos de silêncio, tão grande era a surpresa dos cristãos.
Um deles disse:
— Senhor! Esta é a mulher mais bela que vi até hoje!
O que parecia ser o chefe concordou:
— É, pelo menos, a moura mais bonita que temos encontrado!
E mudando o tom de encantamento:
— Vejam o que está lá dentro da cabana.
A ordem foi cumprida.
— Nada, senhor! Ela devia habitar aqui sozinha.
O chefe meneou a cabeça. 
— Não creio. O homem que se atirou ao mar deve ter estado com ela. Trazei-a.
— Levamo-la para a povoação?
— Não. Levai-a para Silves, onde ficará à minha guarda. Eu lá irei ter.

Zaida estava assustada. A manhã nascera radiante. Continuava só, num aposento bem arranjado. Ouviu um tropel de cavalos que se aproximava. Pararam. Uma voz já sua conhecida ordenou:
— Podeis voltar aos vossos postos!
Aproximaram-se passos. Por fim, Zaida viu-se em frente do cavaleiro que nessa noite a tinha mandado trazer para ali. Ele lançou a vista em redor do aposento, sorriu e falou-lhe em castelhano:
Vejo que estranhaste a nova residência. Não te deitaste.
O cavaleiro aproximava-se à medida que ia falando. Zaida recuou. Ele teve um gracejo: 
— Tal como as pombas, és assustadiça! Mas não te farei mal. És bela demais para que decida já a tua sorte. Acima de mim... está o meu rei!
O peito de Zaida arfava. Ele indagou:
— Não me compreendes? Muitos dos teus me entendem.
Ela falou então pela primeira vez:
— Entendo-te, sim. E melhor fora que não te entendesse!
D. Nuno — pois era D. Nuno Gonçalves o chefe da expedição — sorriu:
— Ainda bem que não precisamos de intérprete! Quem te ensinou o castelhano?
— Abdul, o homem que se matou ontem na praia, à vossa vista!
— Era teu pai ou teu irmão?
— Era um amigo de meu pai. Já não tenho família.
— Tanto melhor!
— Porquê?
— Serás um belo presente para o nosso rei! Por agora podes descansar. Só voltarei aqui quando pudermos ser recebidos por el-rei D. Afonso.
 
D. Nuno Gonçalves ainda não estava refeito de uma noite de campanha. Porém o sol batia-lhe no rosto e não o deixava dormir. Indeciso se deveria ou não levantar-se, ouviu que se aproximavam do aposento onde ficara meio vestido, a descansar. Perguntou:
— Quem vem aí?
De fora, alguém respondeu:
— A Rainha quer falar convosco imediatamente.
— A Rainha? 
— Sim. El-rei saiu e D. Beatriz deseja fazer-vos uma recomendação.
Dum pulo, D. Nuno aprontou-se e foi procurar a rainha.
Tão jovem, tão bela era D. Beatriz, que os seus vassalos sentiam sempre o desejo de agradar-lhe.
— Que pedis de mim, Senhora?
D. Beatriz teve um sorriso gaiato.
— Nuno Gonçalves! Chegou ao meu conhecimento uma coisa terrível...
O cavaleiro fez uma reverência.
— Senhora, folgo de ver-vos sorrir, o que me segreda que a coisa a que vos referis não seja assim tão terrível.
A jovem rainha, quase criança, fez um trejeito de amuo. E declarou:
— Julguei que fôsseis um amigo mais dedicado!
— Senhora! Daria a vida por vós!
— Mas pensais em arranjar-me complicações!
— Esclarecei-me, Senhora!
— Ouvi dizer que tendes convosco uma jovem cativa muito bela.
O fidalgo sorriu.
— Mentia se dissesse o contrário.
D. Beatriz olhou-o bem de frente.
— Ela é assim tão bonita como dizem por aí os vossos soldados?
— Julgo que sim.
— A mulher mais bela que tendes visto?
— Depois de vós, Senhora! 
D. Beatriz soltou um risinho alegre, quase infantil. E continuou:
— Apesar de me colocardes em primeiro lugar, não desejo ter competidoras. Mandai-a vir aqui. Quero vê-la.
D. Nuno hesitou. A rainha mostrou impaciência.
— Porque esperais?
— É uma ordem?
— Sim, é uma ordem! Quero vê-la imediatamente.
— Pois será feita a vossa vontade.
E D. Nuno, numa vénia deferente, retirou-se e correu a ir buscar a jovem moura, que apareceu seriamente assustada. Ao vê-la, D. Beatriz não sorriu. Semicerrou os olhos, numa pesquisa intensa. Depois voltou-se para o cavaleiro.
— D. Nuno, retirai-vos! Quero ficar só com a vossa prisioneira.
D. Nuno ia fazer qualquer objecção, mas a criança, tornada subitamente mulher, impôs a sua soberana vontade.
— Ficai lá fora se o desejardes, mas retirai-vos!
D. Nuno saiu. Frente a frente, as duas jovens fitaram-se. D. Beatriz perguntou então:
— Sabeis quem eu sou?
Sem acanhamento, talvez até com um tanto de altivez, a jovem moura respondeu:
— Sei. Sois a rainha de Portugal, mulher d’el-rei D. Afonso.
— Sabeis que estais prisioneira?
— Também o entendi.
— Sabeis também o destino que sofrem as mulheres de um povo vencido?
— Sei, mas espero que Alá me proteja!
— Estais demasiadamente serena! Demasiadamente confiante! Acaso vos agrada a companhia de D. Nuno Gonçalves?
Fitando intencionalmente a rainha, Zaida respondeu:
— Senhora! Segundo o que me disse D. Nuno... destinam-me como prenda rara a vosso esposo...
A rainha mordeu os lábios. A sua pouca idade não conseguia disfarçar o despeito.
— Destinam-vos a meu esposo, o Rei?
— Assim o disse D. Nuno.
— E vós… achais bem?
Foi a vez de Zaida se mostrar pouco serena.
— Senhora! Alguma vez amastes com todas as forças da vossa alma?... Não me respondeis, pois nada tendes que responder-me. Mas eu vos juro que sei o que é o amor!
Havia tanta força nas palavras de Zaida que a rainha empalideceu. E foi com ansiedade, calcando o seu próprio orgulho, que perguntou:
— E a quem amais?
A resposta veio pronta:
— A um jovem cativo que se fez cristão e está ao serviço do rei de Portugal.
A rainha respirou fundo. Sorriu. Perguntou:
— E ele ama-vos?
— Como eu o amo!
Sorriu mais a rainha. Olhou-a já com a gaiatice usual. E declarou:
— Vamos pregar uma partida ao senhor D. Nuno Gonçalves. Como se chama o vosso bem-amado?
— João. Dantes, chamava-se Aben-Ismail.
— Pois bem: vou baptizar-vos! Vou casar-vos com esse tal João, que mandarei procurar. Conseguirei para vós dois a liberdade e ajudar-vos-ei a partir para Espanha, onde el-rei meu pai vos receberá com gosto!
Zaida nem sabia que dizer. A rainha, vendo-a calada, perguntou:
— Ficais contente?
Só então Zaida compreendeu bem a extensão da oferta. Beijou uma das mãos da jovem rainha, regando-a de lágrimas, e declarou:
— Senhora! Se fizerdes o que me prometestes... tereis a nossa gratidão eterna!
D. Beatriz sorriu.
— Foi uma promessa de rainha! Acreditai que ponho nisso um empenho igual ao vosso. E agora ficai aqui. Que El-Rei vos não veja, nem mesmo D. Nuno Gonçalves! É essa a minha condição. Porei uma das minhas damas ao vosso serviço. E cedo encontrareis o vosso João. E cedo farei de vós um belo presente para os reis de Espanha! Será algo do Algarve que eles muito irão apreciar!
 
A rainha cumpriu a sua promessa.
Quando os dois namorados se encontraram de novo, choravam ambos como crianças. Nem acreditavam em tamanho milagre. João, o ex-cativo, não compreendia o porquê de magnanimidade da rainha. Porém, D. Nuno Gonçalves, ao saber do que acontecera, sorriu e teve apenas este comentário:
— Do que são capazes as mulheres, quando têm em mente um fim!

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 139-145
Place of collection
SILVES, FARO
Narrative
When
13 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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Bibliography