APL 2824 Lenda da Bela Salúquia

Pois no velho Alentejo dos tempos da moirama, segundo nos conta a tradição, vivia uma formosíssima moura chamada Salúquia, filha do grande e poderoso Abu-Assan, governador de certa praça forte que os cristãos ambicionavam conquistar. E nas noites bonitas, em que a terra se prateava de luar, a bela Salúquia cantava antigas romanzas que deixavam os homens enamorados...
Ora aconteceu que, certo dia, um moço cavaleiro das hostes cristãs sentiu bater mais forte o coração ao escutar o canto da bela Salúquia. Embora isso o apavorasse, ele sentiu-se apaixonado, atraído irresistivelmente por essa voz que falava de amor, embora na língua que ele mais odiava...
E desde então o moço cavaleiro — Jorge ou Henrique, não se sabe ao certo — não mais teve um minuto de sossego. Ele havia de encontrar Salúquia e falar com ela. Poderia custar-lhe a vida, o seu gesto ousado — mas nem isso mesmo o levaria a desistir. O amor era mais forte do que o bom senso!
 
Após mil esforços, conseguiu realizar o seu intento. Habilmente disfarçado de mouro, introduziu-se no castelo de Azmi, onde Salúquia vivia.
Ultrapassava todas as raias da audácia, o gesto do moço cavaleiro. De facto, o pai da bela Salúquia mandara reedificar o castelo de Azmi, tornando-o no mais forte dos castelos das cercanias. Além disso, possuía um grupo de tropas escolhidas, sob o comando de Braffma, considerado o maior guerreiro desse tempo.
Arrastado pelo seu sonho, Jorge (ou Henrique) afoitou-se à mais espantosa das aventuras. E no seu trajo de mouro aguardou que Salúquia passasse ao alcance da sua voz. Teve de esperar muito, é certo, mas finalmente ela apareceu. Vinha sozinha, triste e pensativa, quando o seu nome, com um sotaque estranho, lhe chegou de mansinho aos ouvidos.
— Salúquia…
Voltou-se, amedrontada. No conedor largo do castelo, não viu ninguém. Teria sido alucinação dos seus sentidos? Mas o nome repetiu-se, sempre com o mesmo sotaque estranho:
— Salúquia…
Dominando o receio que a invadia, ela balbuciou:
— Quem me chama?
Houve um breve silêncio e, de súbito, diante dos seus olhos surpreendidos surgiu o vulto do guerreiro, que até então se mantivera escondido na sombra duma coluna.
Sorrindo, ele avançou dois passos.
— Sou eu que te chamo...
Salúquia olhou-o sem compreender.
— Tu?... E quem és tu?
O sorriso dele acentuou-se. A sua voz tornou-se mais quente:
— Um desconhecido que te ama, bela Salúquia!
O peito da jovem princesa moura arfou de emoção. Tudo aquilo lhe parecia tão extraordinário, tão surpreendente... E quem seria o homem que lhe falava assim?... Mais segura, a sua voz ecoou de novo, fazendo a mesma pergunta:
— Quem és tu?
O cavaleiro cristão ajeitou-se no vestuário mouro com que se disfarçava e avançou mais para ela.
— Já te disse, Salúquia... Sou um desconhecido que te ama!
A sua voz parecia segredar-lhe apenas...
— Fiquei apaixonado por ti desde o primeiro minuto em que te ouvi cantar... Depois disso, passei a escutar a tua voz, bela Salúquia, no próprio vento que passa, no vento que corre, no chilrear dos pássaros, no murmúrio das fontes…
Embora enleada, ela interrompeu-o, querendo livrar-se do feitiço de que as palavras dele a impregnavam.
— Não me fales assim, que me perturbas!
E atrevendo-se a olhá-lo de frente, rematou:
— Pois não sabes acaso que estou para casar com o rico e forte Braffma, o homem que meu pai escolheu?
— E gostas dele?
A pergunta foi feita em tom escarninho.
Salúquia baixou devagar os seus belos olhos negros, ensombrecidos de repente. E deu a resposta em voz segura:
— Braffma adora-me... e eu... eu...
— E tu?
Ela respirou fundo.
— Eu... também gosto dele!
O moço cavaleiro, como que senhor da sua presa, segurou-lhe as mãos trementes.
— Escuta, bela Salúquía... Porque treme a tua voz, quando dizes que também gostas desse tal Braffma?
Devagarinho, em voz lenta, numa confissão mais para si própria do que para ele, Salúquia murmurou:
— Tens razão... Nunca tal sucedera até hoje... Só hoje... só agora... a minha voz treme.
E, num impulso de receio:
— Mas eu não sei porquê... Não sei...
As mãos dele apertaram mais as mãos dela.
— Sabes, sim, embora não o queiras confessar.
E acrescentou, num tom incisivo:
— A tua voz treme quando falas dele… porque já não o queres!
Salúquia reprimiu um grito de protesto. E disse — mas já sem força, sem autoridade:
— Cala-te! Cala-te, desconhecido!... Se te ouvem, podem matar-te!
Ele não quis perder momento tão propício. Debruçando carinhosamente o seu rosto sobre o rosto da princesa moura, perguntou:
— E tu, se eu morresse… terias pena de mim, bela Salúquia?
Ela nem respondeu. Limitou-se a reforçar em voz alta a confissão íntima:
— Que estranho tu deves ser!... Ao mesmo tempo, atrais-me… e fazes-me tremer.
E acrescentou, num suspiro:
— Vai-te embora, por favor!
Ao longe ouviam-se passos. Alguém se aproximava. Jorge (ou Henrique) fez nova tentativa.
— Se queres que me vá embora… dá-me uma recordação tua, para sempre!
Aflita, quase desesperada, Saláquia repetiu ao acaso as últimas palavras:
— Uma recordação minha?... Para sempre?...
Teve uma ideia súbita.
— Ah, sim, desconhecido... Vou dar-te uma recordação.
Rapidamente, tirou dum saquitel que lhe pendia da cinta um objecto roliço, com a forma de um seixo, e entregou-lho.
— Esta pequenina pedra branca tem o meu próprio perfume... Quando a passares pelo rosto e pelas mãos, lembrar-te-ás de mim.
E sentindo que os passos se acercavam, rematou:
— Leva-a, desconhecido... Leva a minha recordação, mas vai-te embora!  
Ele estreitou as mãos trémulas da moura nas suas mãos possantes.
— Irei, Salúquia, já que assim o queres… Mas voltarei!
Olhou-a de frente, num ar altivo e dominador.
— Ouves bem? Voltarei em breve… e tu não casarás com outro que não seja eu!
Ele afastou-se rapidamente, tomando o caminho oposto àquele em que se acercavam os passos.
Salúquia não pôde evitar um grito de susto:
— Braffma! Pois és tu?
O chefe mouro olhou-a desconfiado.
— Pareceu-me ouvir vozes… Faláveis com alguém?
As cores reapareceram nas faces de Salúquia.
— Não... Recitava apenas para mim própria uns versos que aprendi esta manhã...
Logo a cólera de Braffma se desfez.
— Pois fazeis bem em decorardes versos, porque em breve casaremos, conforme vosso pai ordenou. E depois tereis de me entreter com a vossa bela voz…
Um suspiro morreu de mansinho nos lábios de Salúquia. Suspiro vindo do coração.
 
Mas a verdade é que, segundo conta a lenda, desde esse dia não cantou mais a bela Salúquia. Passava acordada muitas horas da noite, passava a suspirar muitas horas do dia, sempre pensando no jovem desconhecido, que tão misteriosamente aparecera como desaparecera…
Por seu turno, ainda que longe, ele igualmente não se esquecia da bela Salúquia, cujo perfume sentira bem perto de si. Aliás, aquela pedra branca que trouxera como recordação, e de que não mais separara, lembrava-lhe a todos os instantes esse perfume singular. incomparável…
Entretanto, Pedro e Álvaro Rodrigues, dois capitães cristãos de rija têmpera, tinham forjado um plano deveras audacioso para reconquistar aos mouros as terras dominadas por Abu-Assan. Reuniram todos os seus homens e expuseram-lhes o plano.
— Reparem bem — sublinhou Pedro Rodrigues. — Se falhar algum pormenor, morreremos todos! Braffma foi nomeado governador de Arronches e vem à frente de um grande cortejo buscar a sua noiva, a bela Salúquia. Temos de atacar rapidamente, se quisermos vencer.
E Álvaro Rodrigues ajuntou, numa última explicação:
— Cada um de nós tem de lutar, pelo menos, contra cinco ou seis mouros. Quem quiser... pode desistir!
— Iremos todos! — clamaram os homens.
— Então, companheiros — comandou Pedro Rodrigues — a caminho!... E quando a vitória for nossa, diremos o que nos cumpre fazer.
Mas um dos homens avançou devagar. Era o jovem cavaleiro enamorado.
— Senhores... Quero rogar-vos uma permissão.
Os dois irmãos olharam-no e entreolharam-se, sem compreender.
— Falai. Que desejais?
— Que me concedais a honra de matar Braffma!
Houve uma gargalhada em redor.
— Matar Braffma? Mas todos nós desejamos fazer o mesmo!...
O guerreiro enamorado martelou bem as palavras:
— Mas eu tenho razões especiais para o fazer.
Álvaro Rodrigues avançou, olhou o outro lentamente, e pousou-lhe a mão forte sobre o ombro:
— Seja. Serás tu o primeiro a lutar contra Braffma. Desejo-te boa sorte!
— Graças, senhores.
E o moço cavaleiro apertou mais nas suas mãos a pedra branca de mágico perfume...
A madrugada veio encontrar todos a postos no local combinado. Era um pequeno alto donde podiam avistar toda a estrada sem que fossem vistos. De repente, Pedro Rodrigues estendeu o braço.
— Ei-los... Lá vêm eles...
— E Braffma vem à frente, como sempre!
— Escuta, Álvaro... Leva os teus homens e prepara-lhes a emboscada lá em baixo... Nós atacamos daqui...
— Está bem.
E voltando-se para os outros, Álvaro Rodrigues acenou-lhes um adeus.
— Até já, companheiros... Que Deus nos proteja!
Daí a pouco, colhidos de surpresa, os mouros, embora muito mais numerosos, viram-se envolvidos por uma onda de morte e destruição. Nenhum deles conseguia escapar à fúria dos adversários. Cada cristão lutava heroicamente contra cinco ou seis mouros, tal como fora previsto.
Braffma ainda quis fugir, mas Jorge (ou Henrique) não o deixou.
— Morrerás às minhas mãos!... Assim o jurei!
— Pois juraste falso, cão! — gritou o chefe mouro, caindo a fundo sobre ele. — Sou eu que te hei-de matar!
— Veremos!...
A luta entre os dois homens foi brutal. Mas o amor costuma multiplicar as forças. E assim aconteceu com o jovem cavaleiro cristão, que conseguiu resistir a todos os golpes de Braffma, até que o apanhou em cheio, num golpe sem misericórdia.
— Pronto... Já cumpri parte da minha promessa!... Salúquia não casará contigo! Há-de ser minha para sempre!
O chão estava juncado de cadáveres. Os dois irmãos felicitaram o cavaleiros portugueses pela brilhante vitória. E explicaram a parte final do audacioso plano:
— Agora, vamos vestir os trajos muçulmanos e entraremos no castelo…
Todos aprovaram a ideia. E logo começaram a vestir os albornozes sobre as cotas de malha. Mas o jovem guerreiro avançou de novo.
— Senhores... Queria pedir-vos outra permissão...
— Dizei. Que mais quereis?
— Pretendo ser o primeiro a entrar no castelo.
— Pois seja. Nesse caso, enverga tu o fato do chefe mouro que mataste.
Quando o cortejo se pôs em marcha, parecia que se tratava do próprio cortejo de Braffma. Assim o pensou também Salúquia, que mandou baixar a ponte levadiça. E o primeiro a atravessá-la foi o jovem cavaleiro disfarçado com o trajo do chefe mouro.
Quando os viram de perto, Salúquia e os mouros aperceberam-se do ludíbrio. Já era tarde, porém. Os guerreiros cristãos levavam tudo diante deles, numa onda irresistível de sangue e de morte.
Aterrada, Salúquia fugiu para o alto da torre. O jovem português seguiu-a tão depressa quanto lhe foi possível, gritando:
— Espera!... Espera, Salúquia!... Sou eu que te venho buscar... Eu, a quem tu deste a pedra branca de mágico perfume...
Mas a voz dela chegou-lhe misturada com lágrimas:
— Antes a morte do que o teu amor!
E sem dizer mais palavra, num gesto desvairado, a bela Salúquia atirou-se do alto da torre.
E diz a lenda que a pedra branca de mágico perfume se avermelhou nesse momento, como que manchada de sangue...
 
Tal é a história lendária da bonita vila de Moura. Em memória dela, as armas da vila representam uma torre com uma mulher morta à entrada. Da pedra branca de mágico perfume — que depois se fizera vermelha — nada mais se soube, nem mais se saberá...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 115-120
Place of collection
MOURA, BEJA
Narrative
When
12 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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Bibliography