APL 2827 Lenda da Caninha Verde
Alguma vez, estimado leitor, já passou pela bonita e pitoresca freguesia de Fataunços, perto de Vouzela, na comarca de São Pedro do Sul, situada nas margens fascinantes do rio Vouga?...
Pois em Fataunços há uma casa brasonada que tem a sua história lendária, recordada por uma escultura graciosa e simbólica que ainda hoje lá está.
Nos exórdios sáfaros da monarquia lusitana, vivia num palacete da freguesia de Fataunços um velho guerreiro ainda descendente do famoso chefe mouro Cid Alafum, que fora senhorio daquelas terras do couto de Alafões, havia já muitos séculos. Mas o descendente de Cid Adafum — El Haturra, era o seu nome — em nada se parecia com o terrível antepassado, que se mostrara sempre cruel e despótico.
Pelo contrário, El Haturra primava por ser bonacheirão e alegre, aceitando sem sombras de tristeza o domínio português.
Era velho e feio, sim. E usava permanentemente, à laia de bengala, uma velha cana ressequida pelo tempo e enegrecida pelo uso. Cana que vinha sendo transmitida na família, de geração em geração, sempre com palavras misteriosas murmuradas ao ouvido do novo possuidor...
Os seus amigos rodeavam-no e perseguiam-no com perguntas acerca de tão estranha caninha. Principalmente Álvaro, um moço português ao qual o velho mouro se afeiçoara sinceramente. E, um dia, Álvaro resolveu-se a falar com ele a sério, muito a sério, sobre o assunto que o intrigava.
— Escutai, El Haturra... Para vosso bem, aconselho-vos a abandonar essa vara negra e feia que utilizais como bordão.
E olhando-o bem de frente, acentuou:
— Para vosso bem, repito!
Mas o velho El Haturra limitou-se a encolher os ombros com ar displicente, e a dizer em tom firme:
— Não quero!
Álvaro voltou a olhá-lo, sem compreender.
— Como é isso possível, se sois um homem de bom raciocínio?... Pois não entendeis que tal vara serve de gáudio à rapaziada e é motivo de constante troça para vós?
Soberbamente, num jeito que contrastava com a sua aparente velhice, o mouro limitou-se a dizer, sem qualquer hesitação:
— Eu sei o que faço, amigo! Esta vara negra e seca vale muito... Muito mais do que podeis pensar... É o bastão derradeiro do comando que usou Alafum, na célebre retirada dos agarenos…
Um sorriso leve nasceu e morreu nos lábios de Álvaro.
— Ora, ninharias!... Velharias!...
Foi a vez de El Haturra o fitar bem no fundo dos olhos.
— Pois não acreditais que esta vara tem magia?
O ligeiro sorriso de Álvaro voltou a aparecer, para logo se transformar numa clamorosa gargalhada.
— Magia? Claro que não acredito que possa haver qualquer espécie de magia nessa vara grotesca!
E voltou a gargalhar, num provocante desafio.
O velho El Haturra primeiramente pareceu irritado. Os seus olhos semicerraram-se e parecia que ia explodir em cólera. Mas depois acalmou-se, e a sua voz tornou-se branda, confidencial:
— Álvaro, vós bem mereceis a minha confiança. Tendes mostrado muita vez que sois realmente meu amigo. Por isso mesmo vou confiar-vos um segredo que somente tem sido transmitido na nossa família, de pais para filhos ou de tios a sobrinhos...
Respirou fundo e fez um gesto de chamamento.
— Aproximai-vos mais, por favor. O que tenho a dizer-vos é segredo, absoluto segredo. Só pode ficar entre nós dois...
E espiando ainda em redor, atentamente, para se convencer de que estavam sozinhos, El Haturra fez a grande revelação.
— Ouvi bem, Álvaro... Quando esta vara, velha e ressequida pelo tempo, conseguir reverdecer é sinal sagrado do almejado encontro de dois primos descendentes de Cid Alafum… Compreendeis agora porque eu nunca deixo esta varinha, meu bom Álvaro?
Este mostrou-se um pouco aturdido. E no seu rosto espelhou-se a dúvida que se lhe formava no espírito.
El Haturra decidiu portanto ser mais explícito.
— Como sabeis, quando Cid Alafum perdeu a batalha, todos os seus tesouros ficaram escondidos por artes mágicas… E com eles as lindas sarracenas que se ouvem por aí, de noite, encantadas, carpindo as suas mágoas...
Um brilho mais vivo passou no seu olhar.
— Porém, no dia em que nestas terras se encontrarem, face a face, um descendente e uma descendente de Cid Alafum...
— Que acontecerá? — perguntou o moço Álvaro, sem poder conter a sua curiosidade.
El Haturra respondeu no mesmo tom calmo de sempre:
— Acontecerá que todo o antigo senhorio destas terras voltará a pertencer-nos... as belas mouras serão desencantadas... e a alegria tornará a substituir a tristeza nos seus corações!
Cordialmente, o moço Álvaro pousou a sua mão forte no ombro de El Haturra.
— E achais... que esse encontro virá a dar-se?
El Haturra elevou os olhos para o alto.
— Estou certo de que sim. Mas já não sei se será no meu tempo... sinto-me velho e cansado...
E baixando a voz, de novo em tom confidencial, ajuntou:
— Além disso, é preciso que os dois primos que se encontrem professem ambos a lei de Mafamede.
— Porquê a de Mafamede?
— Porque é a mais completa em sortilégios!
Álvaro nada mais disse. E, agora em silêncio, os dois homens continuaram o seu passeio.
E muitos outros passeios deram pelos campos fora, falando sobre o mesmo assunto, comentando-o cada um deles à sua maneira...
Até que, em certa linda tarde de Primavera, quando juntos deambulavam nas margens do rio Vouga, viram descer de um dos montes vizinhos uma princesa jovem e esbelta montando um ginete branco. A seu lado cavalgava uma formosíssima aia, montada num cavalo negro.
O velho El Haturra e o seu companheiro quedaram-se encantados com tão magnífico quadro vivo, na moldura da natureza enebriante. E a princesa e a aia mais belas se mostravam à medida que se aproximavam.
Especialmente a aia apresentava um curioso e estranho contraste entre os seus olhos azuis e a sua trança muito negra...
De súbito, Álvaro agarrou com força o braço de El Haturra e apontou a vara que o outro segurava.
— Vede! Olhai! O vosso bordão está a reverdecer!
E a voz de El Haturra, como que remoçada, confirmou também:
— É verdade... Cumpre-se a profecia do grande Cid Alafum! Acreditais agora?
— Decerto que sim!
Mas já o próprio Álvaro se assombrava mais ainda diante da profunda e inesperada transformação de El Haturra. Desaparecera o velho por completo. O corpo endireitara-se, os ombros tinham alargado, as rugas do rosto sumiram-se, os olhos ganharam novo brilho, o cabelo voltou a ser negro e farto. El Haturra era agora um jovem como ele!
E Álvaro, intrigado, confuso, mal pôde articular uma exclamação de surpresa.
— É fantástico!... Estais jovem e belo!
El Haturra soltou uma risada fresca.
— Ainda bem que testemunhastes tudo quanto se passou, meu bom Álvaro. Assim não tendes mais que duvidar...
A voz de Álvaro balbuciou uma pergunta a medo, demorada e hesitante:
— Quer então dizer... que... nas antigas terras de Cid Alafum... se encontraram dois descendentes seus?...
— É isso mesmo, Álvaro!... No instante em que a olhei, senti logo dentro de mim que algo iria passar-se.
— Referis-vos à princesa, El Haturra?
O agora jovem mouro abanou a cabeça num decidido gesto de negação.
— Não, meu amigo! Falo-vos da aia. A bela aia de cabelos soltos e que montava o cavalo negro... Essa, sim!... Tenho a certeza que é essa que eu encontrei… Ainda oiço a música da sua presença dentro de mim!...
Desde esse dia, não mais El Haturra teve sossego. E o moço Álvaro também não, já que desejava acompanhá-lo na sua aventura. Seguindo no encalço das duas jovens, acabaram por saber que se dirigiam à corte do rei de Portugal. E eles lançaram-se também no mesmo caminho...
Conta a história velhinha que depressa o novo El Haturra conseguiu que a bela aia correspondesse ao seu amor. Tudo os atraía, como se esse encontro estivesse, de facto, marcado pelo Destino...
E, graças à influência de Álvaro e da sua família, fácil foi alcançar também a permissão do rei de Portugal para que o casamento se realizasse o mais rapidamente possível.
Simplesmente, o rei impôs uma condição. Condição essa que a jovem e bela aia se apressou a transmitir ao enamorado El Haturra, pedindo-lhe que viesse falar com ela.
Ele não se fez esperar.
— Aqui estou, minha bem-amada… Passa-se algo de grave?
— Um tanto, sim, meu senhor… Trata-se do nosso futuro.
Os nervos de El Haturra puseram-se em alerta. Desconfiados. Excitados.
— Mas que há? Dizei depressa! Bem sabeis como vos amo... El-rei voltou atrás com a sua palavra?
Ela sorriu, a acalmá-lo.
— Que ideia, meu senhor!... Bem sabeis que palavra de rei não volta atrás...
E inclinando-se para ele, confidenciou-lhe:
— Sim, el-rei consente na nossa união, e até me prometeu como presente de noivado o senhorio destas terras... Porém, impõe uma condição.
De novo, os nervos de El Haturra se alteraram.
— Uma condição? Qual?
O sorriso da bela aia tornou-se ainda mais doce.
— Apenas isto, meu bem: el-rei de Portugal quer que vos baptizeis!
A reacção foi imediata e violenta.
— Quê? Baptizar-me, eu? Eu que sou um mouro… um descendente do grande Cid Alafum?...
Ela tentou envolvê-lo com a sua sedução.
— Por isso mesmo, meu senhor! El-rei deseja que sejais um dos nossos.
Ainda desta vez El Haturra se refugiou na sua obstinada recusa.
— El-rei pede-me o impossível!
Foi a vez dela se mostrar retraída. Magoada. Chorosa.
— Não aceitais?
Sem a olhar sequer, como que falando consigo próprio, o mouro repetiu monocordicamente.
— Não aceito... Não aceito...
E a donzela, aproximando-se mais, falou-lhe num misto de ternura amimada e de aflita emoção:
— Pensai bem, meu senhor!... Se consentirdes em ser baptizado, el-rei dar-vos-á todas as terras dos vossos antepassados e eu poderei ser a vossa esposa fiel e dedicada... Que mais quereis, meu senhor?
Ele segurou-lhe as mãos. Longamente. Apaixonadamente.
— Amo-vos tanto, senhora... E el-rei pede-me tanto também!
A jovem e bela aia arriscou então uma pergunta decisiva.
— Valerá mais a vossa fé do que o vosso amor?
E logo El Haturra respondeu, como ela esperava que ele respondesse:
— Não, mil vezes não!... Sem vós, eu não serei nada! Só desejo na vida possuir o vosso amor!
— Pois ele vos dará igualmente todas estas terras... Aceitais?
Sem olhar mais para o passado, voltado apenas para o futuro, El Haturra respondeu:
— Aceito!... Aceito, sim, meu amor!
Tudo se aprontou, portanto, para o casamento de El Haturra com jovem e bela aia. Porém, antes da cerimónia nupcial, conforme estava combinado, houve que proceder ao baptismo do noivo. E pela força das circunstâncias este viu-se obrigado a deixar a caninha verde fora da igreja...
Então aconteceu algo de extraordinário. Ao ser baptizado, El Haturra instantaneamente deixou de ser o moço forte e garboso em que se tornara, para se transformar de novo no velho alquebrado e feio que já fora. Conforme fora transmitido de geração em geração, a magia da caninha verde só se realizava se os dois parentes de Cid Alfum obedecessem à lei de Mafamede!
Segundo se diz, a noiva desmaiou de comoção. Quando recobrou os sentidos fugiu para o palácio — e não mais quis ouvir falar do seu estranho noivado.
Por seu turno, El Haturra desapareceu também para sempre. Não se voltou a falar dele. Mas a caninha verde foi arrecadada e guardada em sítio secreto, para nunca mais ser descoberta.
Contudo, reza a tradição popular, se na mesma hora e no mesmo local de Fataunços em que se deu o encontro entre os dois descendentes do grande Cid Alafum alguém gritar três vezes: «Viva o fidalgo da caninha verde!» (como o povo ficou a chamar-lhe), logo se escutam pelos montes vizinhos gargalhadas argentinas, seguidas do sussurrar plangente das águas do rio Vouga. Para o bom povo da região trata-se da alegria das mouras encantadas que se julgan libertadas do seu cativeiro, e logo compreendem que tudo continua na mesma...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 143-148
- Place of collection
- Fataunços, VOUZELA, VISEU