APL 2853 Lenda da Cova Encantada
Na serra de Sintra, perto do Castelo dos Mouros, dominando o belo panorama, existe um rochedo que se ergue altivo, como a lembrar ao mundo a sua permanência através dos séculos. À sua volta cresce o matagal. E, meio oculta pelo mato, existe uma espécie de corte na rocha que — segundo diz a tradição — marca a entrada de uma profunda e escura cova, conhecida como Cova da Moura ou Cova Encantada. Diz-se ainda que esta cova tem comunicação subterrânea com o castelo. E a ela está ligada a lenda que vou contar.
No tempo em que os Mouros dominavam Sintra, os cristãos faziam frequentes incursões contra eles, chegando por vezes muito próximo do castelo.
Num desses recontros travou-se junto do castelo uma renhida batalha. Mas os cristãos foram vencidos porque o seu chefe — um nobre cavaleiro — havia tombado ferido e logo fora aprisionado pelos infiéis.
Conduzido ao castelo, encerraram o ferido num húmido calabouço com cadeias nos pés e nas mãos. O intuito era deixá-lo para ali abandonado, sem alimento nem tratamento até que morresse. Porém, ao atravessar o pátio para dar entrada na prisão que lhe destinavam, foi visto pela filha do alcaide, que estacou petrificada, tal a impressão que o jovem cavaleiro lhe causara. Tentou a donzela saber onde o encerravam. E pela calada da noite, com o auxílio de uma das suas aias, foi visitar o prisioneiro.
O silêncio e a escuridão reinavam no cárcere acanhado onde o cavaleiro português estava encerrado. Cautelosamente, a jovem moura abriu o portão de grades e entrou. Deu apenas dois passos. A escuridão era intensa. Ouvia a respiração agitada do prisioneiro. Acendeu um pavio, e a fraca luz iluminou mal o triste cubículo. Mas o cavaleiro português distinguiu perfeitamente o lindo rosto da jovem moura. Perguntou:
— Que quereis, donzela?
Ela respondeu, com aparente serenidade:
— Curar as tuas feridas e trazer-te de comer.
— Quem vos mandou?
— A minha consciência.
— E se vos virem?
— Espero que não.
— Quem sois?
— Zaida, a filha do alcaide.
Docilmente, o cavaleiro português deixou-se tratar pela bondosa e linda sarracena. Quando terminou, ela disse-lhe como despedida:
— Até amanhã.
Dia após dia, Zaida não faltava à entrevista. Com grande espanto dos mouros, as feridas do cavaleiro cristão começaram a sarar. E porque, de fora, várias tentativas eram feitas no intuito de ser conseguido um resgate pelo importante prisioneiro, os mouros começaram a dar-lhe de comer.
Certa noite, Zaida entrou na prisão. O cavaleiro já estava curado. Disse-lhe numa voz emocionada:
— Venho dizer-te adeus.
Ele tomou-lhe uma das mãos com arrebatamento:
— Zaida! Porque dizes isso?
— A tua família e o teu rei ofereceram um grande resgate. Vais sair amanhã, mal o Sol romper. E não mais te verei!
Ele atraiu-a a si.
— Zaida! Vem comigo!
Ela esquivou-se.
— Não posso. Seria uma traição que a minha consciência não aprovaria.
— Mas eu amo-te, Zaida! Amo-te mais do que à minha vida!
— Também eu te amo, mas tudo nos separa.
— Zaida! Vou ficar aqui!
Ela meneou a cabeça.
— Não poderás ficar. Os meus querem o resgate e os teus anseiam por te reaver.
— Voltarei!
— Serás de novo ferido, ou talvez morto!
— E se vencer?
— Talvez seja eu quem deixe de existir!
O cavaleiro cerrou os punhos, num desespero.
— Juro-te que sem ti não poderei viver!
— Nem eu!
— Então… porque não vens comigo?
— Porque darei a vida por ti, mas não a honra. Também de ti não quero mais, nem tu mais cederias. És nobre, és valente! Não peço que me esqueças! Desejo mesmo que nunca mais a minha imagem e a minha voz saiam dos teus olhos e dos teus ouvidos. Contudo… sou eu que te digo: vai… e não voltes!
O cavaleiro cingiu a linda moura com arrebatamento. Beijou-a nos cabelos, na testa, nos olhos. Ela voltou a esquivar-se. Chorava em silêncio. E murmurou, afastando-se:
— Adeus, meu único amor!
Novamente no meio dos seus amigos, familiares e companheiros, o cavaleiro português foi recebido com grandes demonstrações de alegria. A sua libertação foi celebrada com grandes festas. Mas, apesar dessa exuberância de carinhos, o cavaleiro sentia uma tristeza infinita. Voltou às armas. Dir-se-ia ávido de novas conquistas. E as suas expedições eram sempre contra os Mouros. Queria aturdir-se. Queria esquecer Zaida. Mas a sua imagem e a sua voz — tal como ela havia desejado — continuavam na sua retina e nos seus ouvidos, mesmo no mais aceso das batalhas.
Desesperado, depois de contínuas noites de insónia, fazendo do seu segredo uma força secreta, resolveu atacar de novo os mouros de Sintra, desafiando-os para novo recontro. O seu intento era assaltar o castelo — ou morrer! Reuniu maior número de combatentes e entusiasmou-os a tentarem fazer essa oferta ao seu rei e senhor. Todos os seus companheiros se mostraram dispostos a segui-lo e rapidamente se ultimaram os preparativos.
De surpresa, os cristãos subiram a serra. Era de noite. Uma noite quente de Verão. Tentaram assaltar o castelo. Mas os sarracenos, verificando o reduzido número de combatentes cristãos, saíram ao seu encontro, dando-se novo combate corpo a corpo. O ardor posto na luta por parte dos cristãos era tanto que lograram entrar no castelo, fazendo-o cair em seu poder.
Mas logo em seguida os soldados portugueses foram acometidos de enorme e dolorosa surpresa. O seu chefe procurara a formosa moura filha do alcaide e ambos haviam caído nos braços um do outro. Entregues à embriaguez desse momento de encontro, o cavaleiro e a jovem pareciam esquecidos de tudo o mais. Então os mouros começaram a reagir e os cristãos, privados do seu chefe, em breve se sentiram rodeados de perigos. Os mouros haviam conseguido reforços. Da atalaia divisava-se uma fila enorme de tropas sarracenas que vinham juntar-se às do castelo. Os cristãos ficaram cercados. Só então o cavaleiro enamorado se deu conta da gravidade da situação. Soaram trombetas. Levantou-se a ponte levadiça. Organizou-se o combate. Havia quase dois dias que ali estavam os cristãos esperando ordens de D. Afonso Henriques, a quem haviam mandado um mensageiro. Mas a mensagem enviada ao rei cristão já não correspondia à verdade. A causa estava praticamente perdida. O chefe cristão separou-se da jovem moura, vestiu de novo a cota de malha, e travou-se o combate, heróico de parte a parte. Por fim, depois de uma encarniçada luta na qual pereceram muitos chefes cristãos, o cavaleiro chefe também caiu, ferido.
Ao vê-lo caído por terra e coberto de sangue, Zaida ficou como louca. Tratou de arrastar do pátio o seu bem-amado e de escondê-lo num dos corredores. Aí, com esforço inaudito, e depois de verificar que não a estavam espiando, abriu uma lousa. Uma entrada subterrânea ficou a descoberto. Com mil dificuldades, entrou pela abertura, levando consigo o ferido, que havia desmaiado. Fechou a lousa atrás de si. Depois, quase sem luz e continuando a arrastar a sua preciosa carga, foi percorrendo galerias subterrâneas até chegar a uma sala preparada numa cova, que recebia luz indirectamente.
Nessa sala havia uma saída que ficava fora do castelo e já quase a meio da serra. Colocando o ferido num divã coberto de tecido precioso, Zaida pegou numa bilha e procurou a saída. Perto havia uma nascente. A moura sabia da sua existência. Encheu a bilha de água e voltou a tratar do ferido, tal como fizera meses antes. O cavaleiro abriu os olhos. Recobrou o alento e ficou estupefacto quando soube onde estava. Quis saber dos seus companheiros. Ela beijou-o ternamente, dizendo-lhe:
— Que importa o que acontece aos outros? Estamos aqui os dois. Não te basta?
Ele meneou a cabeça, demonstrando o seu sofrimento.
— Não, não me basta! Fui eu que os atraí a este combate para o que não estávamos ainda preparados. Só pensei em mim. Não podia continuar a viver sem ti! Mas vejo agora que não devo viver à custa das suas vidas!
Com voz dolorida, ela perguntou:
— Mas que pensas fazer?
— Juntar-me aos meus companheiros!
— Foram desbaratados, não penses mais neles! Pensa antes em ti, que não tenho a certeza de poder salvar!
Ele fechou os olhos. Sofria. Moral e fisicamente.
No dia seguinte, mais fraco ainda, pediu:
— Dá-me de beber... Tenho sede!
Ela observou:
— Meu amor, terei de ir buscar mais água. Esta acabou-se. Mas volto já!
Ele segurou-lhe uma das mãos:
— Não... Deixa-te ficar... aqui... ao pé de mim...
Ela beijou-lhe a testa escaldante.
— Não demorarei. Prometo que não demorarei...
Saiu. A algazarra havia terminado. Dir-se-ia que o combate chegara ao fim. Zaida encheu a bilha e encetou a caminhada para a sala subterrânea. Porém, quando estava já próxima da entrada, uma seta vinda do lado do castelo acertou-lhe em cheio. Caiu de joelhos agarrada à bilha da água, que verteu metade. Teve forças, porém, para se arrastar até ao local onde o mato tapava a entrada. Rastejando e perdendo sangue, Zaida só caiu junto do seu cavaleiro. A bilha caiu também e a água perdeu-se. Zaida havia desaparecido do mundo dos vivos.
Desesperado, o cavaleiro soergueu-se do leito e veio ajoelhar-se junto da sua bem-amada. Suplicou:
— Ó Deus Misericordioso! Perdoai-nos os pecados que cometemos neste mundo… e juntai-nos... de novo… no Céu!
Com o esforço feito, a ferida do cavaleiro voltou a abrir e o sangue cristão do jovem misturou-se com o sangue mouro da linda Zaida. E esse sangue só parou de correr quando ambos pareciam já duas estátuas de mármore.
No castelo, os mouros haviam mais uma vez repelido o ataque dos cristãos. Procuravam Zaida e o ferido por toda a parte. Foi então que um soldado descobriu o rasto de sangue deixado pela filha do alcaide. Seguindo-o, foi encontrar os corpos sem vida do cavaleiro cristão e da jovem moura, lado a lado, numa larga cova distante do castelo.
Desde então, diz a lenda que, em certas noites de luar, quem tenha a ousadia de vaguear pela serra de Sintra verá sair de uma larga cova, junto a um penedo, uma formosíssima donzela vestida de branco, com uma bilha na mão. A passos apressados, a jovem de branco dirige-se para uma nascente de águas finas. Depois, regressa à mesma cova donde saíra, com a bilha já cheia. A meio do caminho solta um doloroso gemido. Depois, desaparece, qual branco fantasma...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 371-375
- Place of collection
- Sintra (São Pedro De Penaferrim), SINTRA, LISBOA