APL 3042 Lenda de Leandro e de Elena
Numa povoação muito antiga que tomou o nome de Celas, existia antes da nacionalidade um grande castro do qual era senhor Hermenegildo Mendes. Hermenegildo tinha dois filhos: Aires e Leandro. Aires seria o seu sucessor; e em Leandro, embora não estivesse na linha do condado, punha grandes esperanças.
Na verdade, quando D. Afonso III de Leão conquistou aos Mouros a cidade de Coimbra, Leandro, que teria apenas quinze anos, destacou-se de tal forma, que o próprio rei quis que o levassem à sua presença para o conhecer e agraciar.
Nessa viagem, Leandro teve ocasião de mostrar mais uma vez o seu valor. Numa povoação a caminho da corte tinha havido um recontro entre cristãos e mouros. Leandro e seu irmão Aires reuniram os que pareciam já desbaratados, e correram com o inimigo. Foi aí que o jovem encontrou uma linda menina de cinco anos apenas, chorando amargamente. Perguntou-lhe:
— Que tendes?
— A minha mãe está a morrer!
— Onde?
— Ali, naquela casa!
A pequenita apontou uma casa apalaçada. Leandro correu, com a menina ao colo. Entrou na casa saqueada, que parecia deserta. Perguntou:
— Onde está a vossa mãe?
A pequena desceu para o chão e correu à frente de Leandro, dizendo:
— Vinde depressa! Ela morre...
Abrindo uma porta meio despedaçada, a menina correu para um divã sobre o qual, pálida mas bela ainda, uma dama estava agonizando. Porém, ao ver a filha, teve forças para exclamar:
— Senhor... guardai... a minha Elena!
Leandro perguntou:
— E o vosso esposo? Morreu?
Uma lágrima correu pelo rosto da moribunda. Já não respondeu. Momentos depois, entregava a alma a Deus.
Leandro tratou de todos os preparativos para enterrar a dama, que soube chamar-se Irene de Argüelles, nobre de nascimento mas a quem ninguém conhecera esposo. A própria Elena dizia que o pai morrera antes de ela nascer. Mas não sabia o nome do pai. Não havia, portanto, nada que o pudesse identificar. Elena ficara, assim, sem família e sem recursos.
Não esquecendo o pedido da moribunda, Leandro, tão generoso como valente, levou Elena consigo na visita que fez ao rei e com ele a trouxe para Celas. O pai mandou-o chamar e perguntou-lhe:
— Leandro, meu filho, que história é essa de uma pequena órfã que trouxeste contigo?
Sem mostrar o receio que tinha de qualquer má vontade por parte de seu pai, Leandro esclareceu:
— Senhor, se me permitis, das rendas que me cabem tirarei uma parca mesada, e Clotilde, a mulher que foi minha ama e mora perto daqui, numa casinha junto ao bosque, cuidará de Elena.
— E quem é Elena? Donde veio? Quem são os seus pais?
— Elena tem cinco anos. Não conheceu o pai, que talvez tenha morrido, ou viva sem se importar com a existência da filha.
— E a mãe?
— Morreu dos maus tratos dos infiéis. Saquearam-lhe a casa e destruíram tudo. Salvou-se a criança porque fugiu.
— Mas quem era a mãe de Elena?
— Uma dama descendente de nobres famílias, mas afastada delas por motivos que ignoro.
— E que pensas fazer?
— Quando Elena tiver mais idade, mandá-la-ei educar. Dar-lhe-ei depois um pequeno dote e poderá casar-se. Aí acabará o compromisso que tomei à hora da morte de uma linda mulher, que os infiéis não pouparam por lhes ter resistido.
Calou-se Leandro. O pai ficou pensativo. Depois, olhando-o com simpatia, disse:
— Meu filho, criaste uma grande responsabilidade. Queira Deus que não venhas a sofrer algum dissabor! Vai. A minha curiosidade está satisfeita.
Leandro visitava com frequência a casinha do bosque. Aos oito anos, a menina foi mandada educar. Teve os melhores mestres, e damas competentes ensinaram-na a lidar com gente de alta condição. Quando voltou à casa do bosque haviam passado mais sete anos. Ao vê-la, Clotilde pôs as mãos, numa acção de graças. Tinha lágrimas nos olhos.
— Como está linda, a minha menina!
Elena abraçou-a, também comovida.
— Clotilde, que saudades eu tive de ti e desta casinha do bosque!
Clotilde olhou em volta. Pareceu confusa.
— Esta casa já será humilde para vos acomodar. O meu senhor irá pensar o mesmo, visto que quis dar-vos tão grande educação.
Elena empalideceu. Deixou de sorrir. Voltou-se levemente, para não mostrar a ansiedade da sua expressão. Perguntou:
— Clotilde, tens visto muitas vezes o meu benfeitor?
— Tenho, sim. Vem ver-me todas as semanas quando está no palácio. Mas esteve três anos fora, em guerras. Fiz tantas promessas para que ele voltasse!
— E quando voltou?
— Foi há quase um ano.
— E... já está, decerto, bem casado!
— Não! Por enquanto, não. Quem casou foi o senhor D. Aires. E que casamento! Ela ainda é parente d’el-rei D. Afonso!
Elena não respondeu. Fez-se um silêncio, que momentos depois a velha ama cortou:
— Já vistes o meu senhor?
— Não. Julguei que era ele quem iria buscar-me, mas... foi um primo.
— O senhor de Gusmão?
— Não. Creio que se trata do senhor Emínio.
— Ah! Um velho muito sorridente e amável?
— Sim. É velho, sorridente e amável.
— É muito amigo do meu senhor! Decerto irá também arranjar-vos onde morar. Mas vou sentir a vossa falta!
— Eu não sairei daqui!
— Que dizeis?
— Que me agrada esta casa e esta paisagem.
— Mas, aqui, não encontrareis noivo… a não ser algum lenhador... ou caçador furtivo!
— Não importa!
— Elena, tendes de casar! Senão ficareis sempre como um fardo para o meu senhor!
A jovem mordeu os lábios.
— Clotilde! Feriste-me com essa dura verdade! Mas ainda bem que a disseste. De facto, não tinha pensado nisso.
— Pois pensai! Pensai!
— Se eu casar... qual será o meu dote?
— Pequeno, mas tê-lo-eis, que eu bem sei. Várias vezes o meu senhor falou nisso.
— E se eu professar?
A estupefacção de Clotilde foi grande.
— Quereis professar?
— Talvez!
— Porquê? Tendes mesmo vocação...
Clotilde cortou a frase, para gritar, cheia de contentamento:
— Menina! Aí vem o meu senhor! Vede como ele monta bem a cavalo!
Elena perturbou-se. Teve um movimento para fugir. Mas conseguiu agarrar-se a toda a sua coragem para ficar ali.
Já a velha Clotilde ia ao encontro do seu menino, gritando:
— Vede o que fizestes da menina que um dia aqui chegou! Parece uma rainha!
Leandro apeou-se e olhou a jovem. A surpresa que se lia no seu semblante era sincera. Embora soubesse Elena bonita, nunca imaginara que se fizesse tão bela mulher!
Caminhou para a jovem e beijou-lhe a mão.
— Senhora, o meu coração alegra-se de ver-vos!
Elena tremia de emoção e contentamento.
— Contemplai a vossa obra! Se do Alto as almas podem ver os entes queridos que estão na Terra, minha mãe decerto estará contente.
Leandro fez sentar a jovem.
— Elena, contai-me o que foram estes anos de estudo. Depois vos contarei as minhas peripécias.
Sentou-se ao lado da jovem, feliz. Conversaram e riram, esquecidos das horas que passavam. Foi necessário a velha Clotilde lembrar:
— Senhor! Vosso pai sempre foi rigoroso com certas praxes. Não falteis à hora da ceia!
Leandro saiu e prometeu voltar breve. E esse breve durou apenas algumas horas. No outro dia, mal a manhã sorriu, lá foi ele, cavalgando, para a casinha do bosque. E isto aconteceu dia após dia, até que certa vez a boa Clotilde achou meio de dizer o que atormentava a sua alma. Estavam eles brincando como crianças. As suas gargalhadas eram sadias. Mas Clotilde parecia alheada. Então, o jovem perguntou:
— Clotilde, que tendes? Estais doente?
Ela meneou a cabeça e declarou:
— São preocupações, Senhor!
— Preocupações? Acerca de quem?
— De vós!
— De mim?
— E de Elena!
— Que há?
— Já pensastes, Senhor, que seria da pobre menina se, de súbito, chegasse a hora de vos casardes?
Ele deixou de rir.
— De facto… não penso nisso senão nas noites de insónia. Junto de Elena não tenho tristezas!
— Mas tendes de casar... e ela também!
Leandro olhou a rapariga:
— Elena! Tendes alguém em vista?
Ela quase gritou:
— Oh, não!
— Pois eu tenho!
Ela baixou o olhar. Apoiou-se a um cadeirão.
— Senhor! Se pensais em casar... acho melhor que visiteis menos esta casa.
— Porquê? Receais que vos comprometa?
— Só casarei depois de vós!
— Na verdade sois mais nova. Mas as mulheres bonitas casam-se cedo!
— Sou uma órfã sem nome de pai. Já fizestes quanto poderíeis fazer para o encontrar. Portanto, talvez nem encontre noivo que me queira.
— Pois tendes junto de vós um pretendente, que vos pede com humildade a vossa mão!
Elena tapou o rosto. As lágrimas correram-lhe. Não atinava com o que dizer. Ele afagou-a.
— Então, Elena! Chorais? Acaso vos melindrei?
Ela destapou o rosto.
— Leandro! Porque me mostrais o Céu se não devo tirar os pés da Terra!?
— Porque pensais assim? Não compreendestes ainda como vos amo?
— Desde que vos vi que o meu coração vos pertence! Sempre! Mesmo desde menina! Ou vós… ou Cristo! Como vedes, olho sempre para bem alto...
— Pois que Cristo me perdoe, mas tentarei arrebatar-vos a Ele.
— Vosso pai não consentirá!
— Tentarei tudo o que humanamente for possível. E já! Até amanhã, Elena! Que Deus me ajude!
Leandro reuniu o conselho de família para expor o seu caso. Porém, seu pai foi inflexível: Leandro não casaria com uma jovem filha de pai incógnito.
Desesperado, Leandro mandou recado a Elena, dizendo-lhe que saía por alguns dias, mas que não perdesse a fé. Montou a cavalo e partiu, de facto, a caminho da corte. Iria falar com el-rei. Iria pedir-lhe de joelhos que o ajudasse a realizar o seu mais ardente desejo de felicidade.
El-rei D. Afonso recebeu o jovem com carinho e ouviu-o complacente. Fez várias perguntas. Talvez o pai de Elena pertencesse à corte e, assediado pelo monarca, tomasse conta da filha. Para isso quis saber tudo o que fosse possível acerca da mãe de Elena. Leandro não esqueceu qualquer pormenor. Chegou mesmo a mostrar a D. Afonso uma medalha que Elena lhe havia dado e que sua mãe trazia ao peito. Então, o monarca, visivelmente emocionado, pareceu fascinado na contemplação dessa medalha. Murmurou numa voz alterada:
— Meu filho, quis Deus que viésseis ter comigo! Reconheço esta medalha. Fui eu que a dei há alguns anos a uma jovem dama de alta estirpe a quem amei! Depois, as obrigações da coroa afastaram-me de Irene, quando a minha filha tinha três meses. Elena é do meu sangue, meu bom Leandro! Dizei a vosso pai que venha falar comigo. Eu darei um dote e um nome a Elena. Devo essa reparação à pobre Irene.
Calou-se o monarca. Leandro beijou-lhe as mãos e saiu. O seu cavalo galopava como vento em dia de tempestade. A primeira pessoa com quem falaria era seu pai. Depois, a sua querida Elena!
Pouco tempo depois Leandro e Elena casavam com a maior pompa, tendo por padrinho el-rei D. Afonso III de Leão. E embora recebessem convite para ficar mais perto da corte, o jovem casal pediu licença, que foi concedida, para transformar a pequenina casa do bosque numa casa magnífica, que seria daí por diante mais um lar feliz.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 331-336
- Place of collection
- Santo António Dos Olivais, COIMBRA, COIMBRA