APL 62 Figueiredo das donas
Numa aldeia montanhosa da pittoresca Vouzella existem as ruinas do paço que deu o nome á freguezia de Figueiredo das Donas. Está desmantelado e inhabitavel. As paredes, cujos vãos de antigas janellas com seus poiaes de pedra ainda permittem se trace na imaginação, com probabilidades de acerto, a divisão interior, estão apenas seguras pelas heras, que foram trepando, trepando, como abraços de ferro com que a natureza provê á incuria dos homens.
Lá dentro cresceram, vão-se desenvolvendo e dando vila áquelle ermo algumas arvores. Um mattagal de silvas, enleando-se em caprichosas curvas, protege-as desconfiado dos passos do visitante, um investigador talvez e portanto amigo, mas que póde ser um dos enthusiastas do progresso ancho e vaidoso de que falava Herculano, d’esses que não cabem ao pé de velharias, e por isso isso podem examinal-as, sem levar comsigo o alvião destruidor de quanto nos legou o passado.
Junto d’estas pedras, ennegrecidas pelo roçar de muitos seculos, braceja um gigantsco lodão, que, no dizer de alguem, quando está prestes a seccar, faz novo esforço para viver o tempo que as ruinas se conservarem de pé.
O panorama é surprehendente. Desce em amphytheatro a montanha; lá ao fundo serpenteia entre penedias o Vouga, que a distancia parece um fio de agua crystallina.
Voltai-vos um pouco á esquerda, e ide percorrendo com a vista esse horisonte largo, até o extremo da vossa direita. Vêde como se ergue altivo o cêrro de Alafon, do moiro que deu o nome ao velho couto, dividido hoje em tres concelhos; admirai o oiteiro gracioso de onde Nossa Senhora do Castello abençoa todas essas povoações de crentes, penduradas pelos alcantis da serra.
Descobrireis o castello de Vilharigues, sentinella perdida de tempo que não volta, pertença da antiga casa da Cavallaria, onde nasceram S. Gil (o Fausto portuguez) e o valente Decepado.
Apparecem agora Beirós, S. Pedro do Sul; adivinha-se Oliveira de Frades. E ao longe, em segundo plano, semilhantes a enormes vagalhões, que se vão esbatendo, esbatendo, até onde a vista alcança, enxergareis as serras de Carvalhaes, S. Macario e Monte do Muro.
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Se tendes imaginação, leitor, descei pelo monte abaixo, e á esquerda, a poucas braças de distancia, procurai nos penhascos uma cabeça de cavallo formada num dos penedos; mas não exaggereis descobrindo imperfeições no largo pescoço, ou na falta de orelhas e de olhos, que a chuva e o granizo durante mais de onze seculos tém porventura desfeito. Lembrai-vos que essa memoria foi talhada na pedra pelas mãos finas de mulher gentilissima, procurando tornar eterno o alvejar de uma esperança, que em transe horrivel divisou lá ao longe, muito ao longe, despontando naquella serra de Carvalhaes; lembrai-vos — e mais indulgente sereis para a esculptura — que essa mulher era branca, muito branca e loira, e tinha olhos garços, misto de verde e azul, em que se alliam num mysterioso enleio as venturas do mundo com as esperanças do ceo.
Orelia se chamava ella, a mais formosa que ainda a Beira viu. Era neta de um antigo senhor d’esse castello que vêdes quasi no chão, mas no qual podereis ainda conhecer vestigios da torre, desde longos tempos alçada para defeza de seus inimigos e dos inimigos de el-rei.
Mau rei, muito mau, e pessimo christão era esse Mauregato, que então avassallava a Hespanha! rei intruso, que, para se fazer senhor de tantos remos, tractára alliança com o emir de Cordova, a quem promettêra o foro annual de cem donzellas!
Na divisão do singular tributo ficaram aquellas terras da Beira obrigadas a dar vinte e cinco de suas mais bonitas filhas, que iam sendo fechadas na torre do Paço de Figueiredo pelos moiros e castelhanos, occupados noites e dias inteiros nessa estranha caça de altanaria.
Assim se vingava o bastardo de Affonso o Catholico do altivo nobre que ás portas de Vizeu se batêra denodadamente contra a união torpe da cruz e do crescente, e lá deixára no ultimo recontro seu unico filho!
As tres meninas da casa haviam sido poupadas atéli; nem ao valente soldado passára nunca pela mente que os homens de el-rei ousassem tocar em suas netas. A tanto não subiria a infamia! Se assim fôra, que segurança poderiam ter as mais elevadas ricas-donas de Leão e Castella?! Em bom e generoso sangue nenhuma havia por lá que se atrevesse a discutir prosapias com as senhoras do Paço de Figueiredo!
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Todavia, anno chegou do cabo dos quadrilheiros annunciar ousado que, se escasseassem, como previa, as donzellas de rara belleza, teriam de completar o numero Orelia e suas irmãs! E partira numa ultima correria, dobrando as atalaias á torre, com ordem de seguirem a distancia as tres beldades.
O velho chamára as netas, e dissera-lhes que se preparassem, porque elle, á despedida, faria com que os esbirros só podessem levar ao moiro tres cadaveres, que a deshonra não conseguisse manchar.
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Ao longe, muito ao longe, lá no sopé da montanha sussurrava brandamente o Vouga, e as tres desditosas carpiam entre os rochedos do monte a sua enorme desgraça.
De repente pareceu-lhes divisar um vulto na cumiada de Carvalhaes, e a donzella de olhos garços sentiu no coração vaga esperança.
Os salgueiros das margens, baloiçados pela aragem, fustigavam o rio, que ao longe, muito ao longe, parecia deslizar sereno.
O vulto era o de um cavalleiro, que desceu a vertente, vadeou as aguas.
Os passaros gorgeavam cantigas de esperança, e voando perdiam-se, ao longe, muito ao longe, na vastidão dos ares.
O cavalleiro vinha subindo a montanha de Figueiredo. Era Guesto Ansures, que habitava Arouca; saíra á caça com varios companheiros; erguera-se-lhe a meio da encosta um bando de perdizes, que elle viera seguindo, á espera de poder lançar o falcão. Chegado ao alto da serra, continuára em direcção ao castello. Fôra curiosidade apenas? Iria para ali a caça que buscava, ou houvera impulso mysterioso que forçára Ansures a guiar o cavallo para aquelle pombal de innocencia, perseguido pelos gaviões moiriscos?
Não o poderemos dizer, mas o certo é que dentro em pouco estava o cavalleiro junto das angustiadas moças, inquiria d’ellas o motivo das lagrimas, e assegurava-lhes que as libertaria a ellas e a quantastavam já presas na torre.
Mas Guesto despediu-se, e as irmãs de Orelia, sem confiança na temeraria promessa, continuavam a chorar. Ella porém animava-as, dizendo-lhes que, se os sicarios viessem prendel-as, não fossem despedir-se do avô, e seguissem afoitas, e certas do auxilio de Deus, que pelo valor do arouquez as livraria da morte e da infamia.
Que estranho fulgor illuminava a physionomia da esperançada Orelia? Porque dava ella tanto credito ás palavras do caçador desconhecido? E que tamanha alegria se lhe entornára na alma, ha pouco attribulada, avigorando-a com energia extraordinaria, que mal podia communicar ás irmãs?!
Não sabemos. Lembra-nos porém a velha quadra popular que assim canta:
Os olhos dos namorados
Tém um certo não sei quê,
Que serve de sobrescripto
A carta que se não lê.
Certamente as irmãs não leram a carta, que só ella soubera traduzir pelo coração.
* *
Luzida era a caravana e ajaezada a primor.
Emir de Cordova, folgai!
Vinte e cinco donzellas de formosura sem par cavalgavam hacaneias alvas, tão, alvas como a neve que o sol ainda não derretêra nas planuras. Levavam as mãos atadas atrás das costas. Palafreneiros moiros iam ás arreatas. Em redor, montados em soberbos cavallos de combate, escoltavam-nas vinte cavalleiros infieis e quarenta homens d’el-rei.
Luzida era a caravana e ajaezada a primor.
Folgar, folgar, emir de Cordova!
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Haviam principiado o caminho; estavam a meio do figueiral espesso que ficava á direita da casa. Sentiu-se tropear estranho, peno, mais perto ainda; mas as arvores em cerrada matta não permittiam descobrir o que fosse.
Orelia, relanceando os olhos ás irmãs, alevantou-os depois ao ceo em agradecimento mudo. E, ou milagre de Deus, ou da natureza, que tão finos lhe formara os pulsos — para outras cadeias destinados, que não para amarras duras de agarenos, — ao irreflectido movimento que fizera, as mãos, habituadas a erguerem-se quando os labios murmuravam uma prece, deslisaram rapidas pelos nós das grossas cordas.
O moiro espantado soffreou o animal, e ia a agarrar os braços da donzella, quando um cavalleiro, que rapido lhe appareceu em frente com a espada nua, castigou a audacia do atrevido, abrindo-o de meio a meio.
A espada partiu-se, e o interventor ficara desarmado, não podendo defender-se dos alfanges que o rodearam logo. Empinou o cavallo, que aparou no peito os primeiros golpes; esgarçou um ramo de figueira, e, servindo-se delle como arma, arremetteu para a confusa massa de cavalleiros e peões, gritando:
— A mim, a mim, lusitanos!
Os companheiros de Ansures vinham em seu encalço, e não fôra precisa a chamada, para que valentemente o auxiliassem na refrega.
Eram trinta apenas e armados á ligeira; os adversarios quasi o triplo e bem aprestados; mas nunca entre gente da nossa terra se pensou em contar a diferença de numero nos campeões, se temos justiça no desigual combate!
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Que horas amargas estava passando no castello o velho senhor de Figueiredo! A cada instante lhe parecia ver entrar as netas para a derradeira benção, que jurára havia de ser a morte que as libertasse do opprobrio.
Os duros golpes de seguidos recontros não lhe haviam amollecido a rija tempera da alma; o corpo esse porém estava prostrado pela velhice e vida cançada que levára. Sem forças physicas, mal podia já dar dois passos desauxiliado do arrimo das netas, que desde vespera não quizera tornar a ver.
Matal-as-ia, sim, para que o moiro não ultrajasse nas mesquinhas uma raça de heroes!
Mas, se na hora extrema as cingisse ao peito… como poderia cumprir esse juramento de sangue?!...
Elle no carinho servira-lhes de mãi, que tão meninas perderam. E a esse mesmo peito, a que havia de apertal-as, se encostára o filho, que no arranco final lhas havia entregado!
E então vinha-lhe á memoria a sua ultima peleja.
— Não! havia de defendel-as, e morreriam todos ali, no vetusto solar, alanceados pe!os ferros de el-rei! covarde rei, filho de uma escrava impudica! Oh! haviam de contar-lhe depois como sabiam morrer os homens de pundonor!
E o velho seccava as lagrimas, empunhava a espada; mas a mão tremia, e a arma ficava inerte...
Arrastára-se em impeto de devoção aos pés da imagem de uma Virgem, e num mixto de loucura de honra e piedade christã pedíra com frenesi á Mãe do Salvador que lhe désse forças para matar as... ; mas não pudéra terminar a phrase, e caira de bruços junto da Senhora.
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Que tempo esteve assim nem elle o saberia dizer.
A porta abriu-se, e entraram as duas netas mais moças. Orelia ficára assistindo ao final do combate. Ella bem comprehendia que parte grande do valor sobrehumano de Guesto era devida á sua presença, e queria tambem participar do perigo em que ainda o via; mas lembrou ás irmãs que fossem consolar o avô.
Este ergueu-se a custo e abraçou as netas, sem comprehender o que se passára, antes suppondo o peor, porque lhes viu as mãos atadas.
Abraçou-as em ancia dolorosissima, e a boa nova confundiu-se com phrases inter-cortadas do ancião, que, preoccupado com a sua ideia fixa, dizia:
— Não posso, não posso; a Virgem de Figueiredo não me dá forças para vos matar, e não as tenho para defender-vos. E a primeira vez que dia não salva esta casa da deshonra. Não posso, não posso nada.
E em largo pranto beijava as donzellas, que não conseguiam explicar o engano.
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Mas de golpe fez se no espirito do soldado grande clarão; compoz o rosto, ordenou com voz firme que o deixassem, e indireitou para a porta.
— Filhas — disse, — agradecei á Virgem, que protege a nossa raça; eu vou cumprir o meu dever ao lado dos nossos salvadores. Escudeiros, depressa! o meu arnez trançado! Pagens, sellai rapido o meu cavallo morzello!
O antigo campeão da cruz parecia tansfigurado no paladino da mocidade. E por maravilha ia seguindo para a sala de armas gritando:
— Asinha, asinha o meu corcel de batalha!...
Curta foi porém a illusão. De repente, ou porque as forças lhe faltassem, ou percebesse que nem pagens nem escudeiros já tinha, pois todo o signal de grandeza lhe arrancára o despota, largou a espada que floreava, levou as mãos aos olhos, como se acordasse de largo sonho, estendeu os braços pretendendo encontrar alguma coisa a que se amparasse, e tombaria desabaladamente se não caisse nos braços de Orelia e de Guesto, que nesse momento entravam contentes e victoriosos.
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Poucos dias depois o valente campeador e a mais bella que ainda a Beira viu uniam-se para sempre nessa capellinha que vêdes á direita das ruinas; e a irmã mais moça da noiva teimou durante o serão, acariciando o avô, “que a imagem da Virgem de Figueiredo, ao mesmo tempo que parecia enviar aos desposados um sorriso de bençãos, olhava de soslaio o velho castellão, como se zombasse do pedido insensato que elle fizera no dia terrível”. Mas ninguem mais reparou em tal; seria ilusão de creança!
Do ousado cavalleiro a memoria popular conserva apenas o nome e a proeza,— e basta. O vulto de Orelia, esse, trabalhado pela phantasia de quarenta gerações, que lhe desmaterialisaram de todo a formosura, tem o que quer que seja de um pedaço de neve que o sol vai doirando e esbatendo. Elle paira naquellas ruinas da montanha, animando-as com o mysterioso encanto de seus olhos garços, mixto de verde e azul, em que se alliam num mystico enleio as illusões da terra ás certezas do ceo.
- Source
- BERTIANDOS, Conde de Lendas , Hospital Conde de Bertiandos, 1993 [1898] , p.3-18
- Place of collection
- PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
- Collector
- Conde de Bertiandos (M)