APL 2891 Lenda da Senhora dos Remédios

A lenda que vou contar surgiu no ano de 1551 e no pitoresco bairro de Alfama da cidade de Lisboa. Havia nessa altura, numa das suas antigas ruelas, uma ermida do Espírito Santo. A seu lado, existia uma fonte. E, perto dessa fonte, as casas modestas dos pescadores de Alfama. Pois foi numa dessas casas que começou a lenda da Senhora dos remédios.

A tarde mostrava-se na sua maior pujança. O Sol, embora caminhando para o ocaso, era luminoso e quente. Esgueirava-se por todas as frestas das casas pobres e oferecia-lhes o ambiente claro que não possuiriam sem ele.
José, um rapaz de vinte anos, olhava sem ver essa promessa saudável de vigor. Olhava através da sua pequena janela, como se o seu corpo estivesse adormecido e só o seu espírito vivesse. Vendo-o assim, a mãe afligiu-se. E tentou chamá-lo à razão:
— José, meu filho, não fiques assim de olhar parado! Essa maleita que te assaltou não será obra ruim!
José fechou os olhos. Depois encarou a mãe e estendeu-lhe as mãos com desespero, dizendo-lhe:
— Olha para isto, mãe! Tenho as mãos em chaga! E vossemecê não quer que isto seja obra ruim?
A mãe tentou disfarçar a mágoa que lhe causava aquele desespero. Perguntou quase serena, embora triste:
— Doem-te muito?
Ele encolheu os ombros:
— Não é a dor que me atormenta. Mas como posso eu ir trabalhar?
A mãe aproximou-se. Tocou-lhe os cabelos castanhos.
— Ouve, meu filho. Porque não vais ter com a senhora Joana? Ela diz que conhece umas ervas capazes de te curarem.
José pareceu enfadar-se.
— Já lá fui! Já fiz tudo o que ela me mandou. Mas nada! Nem as ervas da senhora Joana, nem as rezas da filha conseguem curar-me!
A mãe tentou desviar a conversa.
— É verdade! A Rosário muito tem rogado por ti! Olha que a cachopa bebe os ares pelo seu José!
O rapaz teve um sorriso de sabor a lágrimas.
— Pobrezita! Ela bem roga... mas para quê? Cada dia que passa sinto-me pior. Olhe para isto. Já vai no pulso, amanhã estará no braço e irá alastrando... alastrando...
A mãe afligiu-se.
— Cala-te, José! Sai um bocado para te distraíres!
Ele olhou para fora da janela e murmurou entredentes, mas de forma ainda audível:
— Qualquer dia desapareço daqui!
A mãe gritou quase:
— Que dizes? Não penses que é para me ver livre de ti que te peço para saíres. É porque me custa ver-te com essa expressão consumida! Tu és um homem de trabalho, como o teu pai, que Deus haja!
José atalhou:
— Sim… sou um homem de trabalho que se sente apodrecer!
— Credo! Santo Nome de Deus! Estás a exagerar!
— Sei o que digo, minha mãe! Bem ouvi o que a senhora Joana estava ontem a pregar à Rosário.
— E que estava ela a pregar?
— Ora! Coisas...
E batendo com um cotovelo sobre o espaldar de uma cadeira:
— Pois se ela não quer que a filha case com um leproso... vou-me embora!
A mãe gritou, horrorizada:
— Cala-te, José! Não digas tantos disparates!
Nesse mesmo momento soaram duas pancadas na porta da rua. A mãe de José perguntou:
— Quem é?
De fora, uma voz bonita e fresca respondeu:
— Sou eu, tia Inês!
A mãe de José apressou-se a abrir a porta.
— Olá, Rosário! Entra, minha filha!
A jovem entrou. Beijou a senhora Inês e dirigiu-se para o canto de onde José olhava para a rua. Observou o seu rosto triste. E todo o seu entusiasmo arrefeceu como por encanto.
— Que tens, José? Não me queres falar? Que mal te fiz?
Ele encarou-a. Duro. Firme.
— Não quero que venhas a casar com um leproso! Deixa-me!
Rosário pegou-lhe num braço.
— E eu não quero tornar a ouvir-te falar dessa maneira, José! Tu não és um leproso!
— Mas a tua mãe assim o diz!
— Quem te meteu essa na cabeça?
Ele exaltou-se.
— Ninguém! Ouvi eu, entendes? Ouvi eu!
Rosário levou uma das mãos ao rosto e murmurou:
— Pobre José! Que tristeza teres ouvido isso!
E tentando desfazer a má impressão:
— Mas olha que a minha mãe não estava a dizer o que pensava. Ela não pode acreditar nessa patranha que lhe foram impingir...
— Ah! Como vês… há mais quem pense assim...
— Há... mas eu não acredito, José!
— Fazes mal! Eu acredito!
A senhora Inês sentou-se numa cadeira, chorando baixinho. Rosário, disfarçando a angústia que tentava dominá-la, falou quase serena:
— Sossega! Tu estás, na verdade, doente. Mas, com fé em Deus e na Sua Mãe Santíssima, tudo se há-de remediar. Verás que tudo isto ainda irá parecer-nos um mau sonho.
José encolheu os ombros sem nada responder. Também ele tinha necessidade de acreditar nas palavras de Rosário. Respirou fundo. Ela, mais animada, puxou-lhe pela manga do casaco.
— Vem comigo, José!
— Aonde?
— Olha... Eu vou buscar água à fonte. Acompanha-me.
— Não.
— Porquê?
— Não quero comprometer-te. Já disse que de hoje em diante és livre.
Ela mostrou-se zangada:
— José!... Deves estar louco! Mas apesar disso quero a tua companhia!
E, gaiata, numa mudança súbita, insistiu:
— Vens comigo?
Ele não conseguiu resistir-lhe. Mas tentou manter a sua primeira resolução.
— Pois bem, Rosário: acompanho-te apenas como vizinho!
No fundo da sala, a senhora Inês, ainda com o rosto molhado pelas lágrimas, teve um suspiro de alívio. Se José safa de casa, já era meio caminho andado... pelo menos para a cura daquela melancolia.

O caminho era curto. As ruelas estreitas. Lado a lado, o par seguia sem trocar palavra. Com os olhos postos no pórtico da ermida do Espírito Santo, Rosário orava no silêncio do seu coração atormentado. Chegou à fonte. A água corria generosamente, da bica para um tanque. Ela estendeu a bilha. A água cantou dentro da vasilha oca. José aproximou-se. Olhou a imagem da bilha reflectida no tanque. Uma imagem inversa. De súbito, os seus olhos abriram-se mais, como para ver melhor. De dentro do tanque, uma imagem da Virgem sorria-lhe. Num gesto que não soube dominar, enfiou a mão e o braço dentro do tanque. Queria agarrar a imagem. Tocou-lhe. Retirou-a da água. E de súbito teve um grito simultâneo de pasmo e de alegria:
— Rosário! Olha a minha mão! Está limpa!
Assombrada, Rosário não sabia o que dizer. Tanto a surpreendia a cura de José como o facto do noivo segurar a imagem da Virgem. Mas já ele retirava do tanque a outra mão completamente curada, e que havia mergulhado no tanque mal se apercebera do que havia sucedido com a mão direita. O rapaz gritava, como louco:
— Estou curado! Estou curado!
Perplexa, Rosário conseguiu perguntar:
— Onde arranjaste essa imagem?
— Aqui, na fonte!
A água corria já para fora da bilha, cantando contente pela libertação. Rosário, com o rosto coberto de lágrimas, orava ao Céu:
— Bendito sejas, Deus meu! A Tua misericórdia é infinita!
E sem mais cuidar, nem da bilha, nem de José, abalou correndo pela rua abaixo a gritar:
— Senhora Inês! Senhora Inês! Venha cá depressa! E venham todos! Todos! O José está curado!

Junto à fonte, o burburinho era enorme. Todos queriam ver o milagre. Todos queriam saber como fora. Todos tinham novos milagres a pedir. E José ia esclarecendo, contando como tudo aquilo acontecera. Mas o burburinho ia aumentando. Queriam a Senhora! Queriam vê-la, apalpá-la, senti-la também sua! E foi então que alguém chegou e falou alto, impondo a sua autoridade:
— Esta imagem da Senhora...
O povo cortou-lhe a palavra:
— ... Senhora dos Remédios!...
A autoridade continuou:
— Pois bem! A Senhora dos Remédios, para que a todos possa acudir, irá ficar na ermida do Espírito Santo! Aí a poderemos venerar!
 
Na verdade, a imagem de Nossa Senhora que José retirara da fonte foi colocada na ermida do Espírito Santo. E de tal forma a Senhora continuou a proteger o povo de Alfama que a ermida mudou de nome: passou a chamar-se da Senhora dos Remédios! E ainda hoje se diz que as águas de Alfama são milagrosas...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 299-303
Place of collection
, LISBOA, LISBOA
Narrative
When
1551
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography