APL 2169 [O Bom Jesus salva Pescadores]
Notara por diversas vezes o sacristão de Alvor, quando abria a porta principal do templo, uns passos molhados no pavimento, desde a porta até o altar do Senhor Jesus; e notara tambem por essas occasiões os joelhos da santa Imagem a rever sangue. A repetição d’esses casos e a sua coincidencia com diversos naufragios nas costas de Alvor, em que eram salvos os naufragos, deram que pensar ao sacristão, que de si para si resolveu pôr-se de espreita.
Em uma noite viu o sacristão o Senhor Jesus descer da cruz, encaminhar-se para a porta, e sair. Esperou. Minutos depois, viu entrar o Senhor, deixando no pavimento os sinaes molhados dos pés, subir o altar, e collocar-se na cruz.
Ficou o sacristão convencido de que o Senhor Jesus tinha saído e entrado; e por isso dirigiu-se para sua casa a descançar a noite.
No dia seguinte, ouviam-se altas vozes nas ruas, e alguem batia á porta do sacristão.
— O que quer? respondeu o sacristão, abrindo o postigo da porta, e apresentando-se em roupas menores,
— Bordeje acolá até á porta da igreja, e abra a porta, porque a maritiga quer entrar — respondeu um homem do mar.
— Já o esperava — observou o sacristão.
— Se nos esperava, tinha obrigação de se apresentar noutro facho — advertiu o marujo, vendo o sacristão em roupas menores.
O sacristão voltou para dentro, vestiu-se á pressa e correu a abrir a porta principal do templo. Quasi ao mesmo tempo entravam os maritimos da povoação, caminhando na frente cinco dos seus companheiros, entoando himnos ao seu Bom Jesus, levando um d’elles o leme partido da sua embarcação. Todo o povo de Alvor acompanhava os maritimos, entoando o Bendito e a Salve Rainha.
Soube então o sacristão que na noite passada, á meia noite, fôra uma pequena embarcação, tripulada por cinco maritimos de Alvôr, apanhada, alto mar, por um temporal desfeito; e vendo-se os maritimos perdidos, tinham tentado abicar á praia; em frente dos tres irmãos (tres rochas), é que então se erguera uma vaga temerosa e arremessara o barco com impeto de encontro a uma das rochas; partido o leme com o impulso, a mesma vaga tentou novamente arrastar o barco de encontro a outra rocha. Viram-se perdidos os pobres maritimos, e postos de joelhos, erguendo as mãos ao céu, imploraram com a fé que transporta montanhas o auxilio e a protecção do seu Bom Jesus. Ao mesmo tempo apareceu-lhes uma luz, que vinha do seu templo, e logo que a luz chegou ao mar, este desusou manso e pacifico, e o barquinho veio varar na praia, salvando-se todos.
O sacristão contou o que presenciara na noite passada; não pôde confirmar a sua narração com os sinaes molhados no pavimento, porque a esse tempo estava a egreja apinhada de gente, mas apontou a todos os joelhos do Bom Jesus, que ainda reviam sangue. Toda a gente se lançou de joelhos em frente do Senhor Jesus de Alvôr, que, no seu altar, conservava a sua doce fronte reclinada sobre o seu coração amantissimo.
E sempre, não obstante a corrente intempestuosa da descrença, que tenta alagar o mundo christão, os maritimos de Alvôr, quando o temporal os ameaça, em mar alto, erguem os olhos ao céu, e invocam o auxilio do Senhor Jesus de Alvôr.
Menos em contacto com os que se chamam intellectuaes do nosso tempo, o maritimo conserva radicada na sua alma a crença dos seus ancestres.
- Source
- OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde A Monografia de Alvor , Algarve em Foco, 1993 [1907] , p.194-196
- Place of collection
- Alvor, PORTIMÃO, FARO