APL 1229 O vinhateiro cativo e a Ermida dos Prazeres

Estava-se em plena época de vindima e, naquela noite sossegada de Verão, o Vinhateiro estava de vigia, não fossem cães, cabras ou ladrões prejudicar a colheita daquela vinha, ali para as bandas do Poço do Aveiro.
 A mulher e os filhos estavam receosos em casa por saberem que ele estava sozinho num dos extremos da Fajã da Maia, lugar onde não havia vigia, e, por isso mesmo, frequentemente invadido pelos piratas.
 Logo que raiou a manhã, uma das filhas foi levar a comida do dia ao pai. Mas, ao descer um atalho entre o lugar da Calheta e a Fajã da Maia para encurtar caminho, ficou apavorada ao ver os vinhedos devastados e profanada a Ermida de Nossa Senhora dos Prazeres.
 Com grande aflição correu para o lugar onde o pai trabalhava e, depois dechamar em altos gritos e de o procurar por todo o lado, convenceu-se que os piratas o tinham levado cativo.
 A notícia correu depressa e os sinos das quatro freguesias dobraram por alma do pobre homem.
 Passaram anos, quinze ou mais, e a família do vinhateiro continuou a viver na sua modesta casa da Calheta, guardando ódio contra os piratas que à sucapa tinham levado o pai.
 Uma certa noite, a altas horas, alguém bateu à porta com insistência. A mãe disse aos filhos:
 — Eh homens, vocês levantem-se que isto é alguma coisa que aconteceu aí na vizinhança.
 Levantaram-se, espreitaram pelo postigo e viram um vulto de pessoa desconhecida, de barba e cabelo comprido.
 — O minha mãe, é um moiro! - Gritaram eles.
 — Vocês espanquem-no que eu não quero moiros em casa! - disse a mãe com raiva.
 Os filhos do vinhateiro armaram-se com paus e, sorrateiros, vieram pelas portas das traseiras e aproximaram-se do homem vestido com trajes de marroquino. O ódio e a sede de vingança pelos moiros cegaram-nos e pegaram à pancadaria no homem, bateram-lhe sem dó nem piedade, até que ele disse:
 — Eu não sou moiro! Sou o pai de vocês! — virou-se para a mulher — Anda cá! Lembras-te que eu tinha um sinal nas costas? Vem ver se sou o teu marido ou não.
 A mulher, receosa, levantou-lhe a camisa, viu o sinal e começou a chorar e a gritar:
 — Vocês não batam que é vosso pai, é vosso pai!
 Os filhos acalmaram-se e tentaram reanimar o homem, dando-lhe a cheirar trapos queimados, vinagre forte e desapertaram-lhe a roupa para que pudesse respirar melhor.
 Ninguém queria acreditar que aquele homem fosse o vinhateiro há tanto tempo desaparecido. A família e os vizinhos passaram muitas horas ouvindo contar pela boca do recém-chegado o que naquela noite distante tinha acontecido. Dois corsários tinham-no amarrado e metido no batel, enquanto outros roubavam uvas e tudo o que estava no interior da ermida, mesmo a imagem da Virgem que fora aproveitada para queimar. Ao fim de algum tempo queriam obrigá-lo a ir piratear, mas tendo resistido, levaram-no para uma masmorra em Marrocos. Não podendo suportar os tormentos, pediu para navegar com os piratas. Ao fim de tempos, o navio em que andava passou por Santa Maria e o cativo sugeriu aos outros, pensando safar-se:
 — Vamo-nos abrigar aqui.
 Os moiros concordaram e ele disse:
 — Vocês deitem-se a descansar que eu fico vigiando.
 Os moiros, sem desconfiar de nada, pegaram no sono. O homem pegou num remo e numa celha grande que era de deitar toucinho de baleia e safou-se para terra, altas horas da noite.
 Durante todos aqueles anos tinha-se mantido devoto de Nossa Senhora dos Prazeres e prometera, caso um dia voltasse, ir descalço por toda a ilha fazer um peditório, para restaurar a ermida destruída e comprar outra imagem.
 O vinhateiro e a família cumpriram o voto, fizeram também, na Fajã da Maia, uma festa de acção de graças à Senhora dos Prazeres que milagrosamente permitira que o vinhateiro acabasse os dias em Santa Maria, junto dos seus.

Source
FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias , Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.45-46
Place of collection
VILA DO PORTO, ILHA DE SANTA MARIA (AÇORES)
Narrative
When
20 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography