APL 1257 Pedir orações pelos mortos
Era no tempo da Quaresma de um dos primeiros anos do século dezanove. Havia ainda o hábito nas freguesias das bandas do norte da ilha de S. Miguel de as pessoas, durante as noites desse tempo santo, subirem ao outeiro mais alto do povoado e cantarem cânticos a pedir orações para os mortos, para os que sofriam e choravam e para os que não tinham lar nem pão.
Naquela noite ninguém se tinha atrevido a sair de casa. Estava escuro como breu e a fúria do vento assim como a força da chuva amedrontavam mesmo os mais afoitos e crentes. Entre eles contava-se o moleiro da terra que decidiu deitar-se: Despiu-se, meteu-se na cama e pediu perdão a Deus por não ter tido coragem de sair de casa para continuar uma devoção que não podia ser interrompida a não ser por motivo de doença.
Passado um bocado, sentiu que atiravam para o chão a roupa com que se cobria, embora não estivesse ali mais ninguém. O moleiro benzeu-se apavorado, levantou-se para a apanhar e tornou a deitar-se. Alguns segundos depois a roupa voltou a escapar-lhe das mãos, embora a segurasse bem. Compreendendo que eram as almas que estavam a fazer-lhe aquilo, vestiu-se apressadamente, pôs pelos ombros a manta mais grossa da cama e saiu.
Chovia como se fosse um dilúvio e o barulho dos trovões fazia um eco medonho. Mas o moleiro nunca parou para se abrigar e, chegando ao cimo do monte, a sua voz melodiosa e triste ouviu-se em todas as casas da freguesia, pedindo orações.
Logo que acabou a sua devoção, voltou a casa desfigurado do frio e da chuva, mas aliviado da alma. Foi tirar a manta, porém, ao tocar-lhe com as mãos, sentiu que estava completamente seca, embora tivesse apanhado muita chuva.
O moleiro caiu de joelhos e rezou fervorosamente, agradecendo a Deus a graça que lhe tinha concedido.
- Source
- FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias , Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.82
- Place of collection
- PONTA DELGADA, ILHA DE SÃO MIGUEL (AÇORES)