APL 3025 Lenda das Rosas de Rosais

Rosais é uma pequena vila muito bonita da ilha de S. Jorge.  E a lenda que vamos contar remonta aos seus primeiros habitantes.

Lúcia e João amavam-se. Desde pequenos que as suas bodas estavam marcadas. Ele era de famílias distintas, simpático, bom, generoso, boa figura. Ela era bela e doce como uma flor — dizem os antigos. Viviam um para o outro. Espreitavam-se receosos de que algum deles tivesse algo de sofrimento a esconder. Uma simples dor num dos enamorados atormentava o outro. João era mais velho três anos do que Lúcia. Logo que ela chegou à idade de casar, os pais de ambos aprontaram o casamento e o dia da boda foi marcado. Porém, uma semana depois, quase nas vésperas da grande cerimónia, uma triste notícia assombrou as duas famílias tão felizes: João fora chamado para a guerra.
Atormentado, ele correu a levar consolo à sua pobre Lúcia. Encontrou-a tão desesperada que nem queria comer, nem falar, nem ver ninguém. João insistiu. Por fim, ela correu a lançar-se-lhe nos braços, soluçando:
— Porque te levam agora da minha beira?
Ele, com um nó na garganta, tentou reanimá-la.
— Querida! Todo o homem que se preza tem de ser experimentado no campo das armas. Eu voltarei em breve, se Deus quiser.
Ela meneou a cabeça.
— Tenho medo! Tenho tanto medo de não mais tornar a ver-te!...
— Não desesperes. Pensarei em ti dia e noite!
— Mas não te verei, não ouvirei a tua voz. E depois... esta incerteza que me fica de não saber o que pode acontecer-te... irá matando a minha alegria e o meu desejo de viver!
João não respondeu logo. Estava demasiadamente emocionado e receava trair-se. Também ele partiria cheio de incertezas, de interrogações. Mas sabia que era forçoso partir e nem por sombras lhe passou pelo pensamento escusar-se.
Como Lúcia continuasse a chorar, o rapaz procurou consolá-la.
— Então, não chores assim!... Sabes como sofro vendo-te sofrer. Dá-me um pouco de ânimo!
Ela murmurou:
— Se ao menos eu pudesse saber o que se ia passando contigo!...
— Querida! Vamos pedir a Nossa Senhora um sinal. Em redor das nossas casas não há vegetação. Pois bem. Tudo continuará assim enquanto eu estiver vivo. Se, porém, este chão der espontaneamente rosas vermelhas, é sinal de que fui ferido e deixei de viver.
— Não, não quero que morras!
— Também não é esse o meu desejo. Contudo, só Deus sabe o destino que nos está reservado. Se o meu for morrer longe de ti... não poderei lutar contra ele!
Lúcia não respondeu. Continuava agarrada ao noivo como se, largando-o, o perdesse para sempre. E foi necessário que o pai a levasse para outro aposento para que João, com a alma desfeita, partisse para cumprir com o seu dever de soldado.
 
O tempo continuou a girar, sem perder tempo a interessar-se pela vida daqueles que por ele iam passando. Lúcia esperava dia a dia notícias de João. E em cada manhã que surgia levantava-se alvoraçada e olhava o campo em redor. O campo continuava como sempre fora. As notícias chegavam tardias, mas chegavam, consoladoras mensagens de um amor forte que nem a separação fizera esfriar.
Assim passou um ano. Depois outro. Entrou o terceiro. Mas já não trouxe notícias. Lúcia alarmou-se. Porque não escreveria o seu bem-amado? Olhava fixamente o solo, num desespero. Porém o campo em redor continuava sem flores.
Certa tarde, um frade chegou à povoação e perguntou por Lúcia. Vinha de longe e trazia novas de João.
Lúcia, pálida e trémula, mandou entrar o frade. Este aproximou-se e falou docemente:
— Minha filha! Os desígnios de Deus são insondáveis para nós, que parca inteligência possuímos comparada com a Divina!
Ela assustou-se.
— Que quereis dizer?
— O vosso amado ausente esteve comigo prisioneiro durante muitos meses. Suportámos grandes afrontas. Sofremos graves doenças. Quis Deus, porém, que fossemos resgatados. Como recordação das horas que ele só falava na Virgem e em vós, aqui vos trago as grilhetas com as quais nos prendiam.
E o frade tentava entregá-las a Lúcia. Esta, porém, chorando copiosamente, nem se atrevia a tocar-lhes. O frade insistiu:
— Guardai-as. Foi o vosso noivo que me pediu que as trouxesse até vós.
Ela conseguiu falar:
— Padre!... Se estais aqui... porque não está ele também?
— Deixei-o enfermo… muito fraco...
— E porque o deixastes?
— Porque ele me pediu que vos procurasse.
— Mas ele deve precisar de vós!
— Assim lho disse.
— E que respondeu ele?
— Que vós ireis precisar mais de mim do que ele. Confessei-o. Recebeu os últimos sacramentos. Morrerá na paz do Senhor.
Ela soltou um grito:
— Morrerá?
— Não há esperanças de o salvar!
— Só um milagre!
— O milagre que ele pediu foi que este campo árido se convertesse em rosas quando deixasse de viver na Terra.
Lúcia levou as mãos ao rosto.
— Como pode ele encarar a morte sem mim?
O frade não respondeu. Olhava pela janela — e viu o campo a florir, cobrindo-se de rosas vermelhas! Murmurou:
— Bendito sejas, meu Deus, que ouviste o Teu servo João e o guardas contigo!
Lúcia, ouvindo tais palavras, destapou o rosto e olhou o frade.
— Que dizeis?
O frade continuava a fitar o campo, como se nada mais houvesse no mundo. Lúcia chamou-o:
— Padre! Porque orais baixinho e não me respondeis?
Como ele continuasse surdo às suas palavras, seguiu o olhar do frade. Então, descobrindo o maravilhoso espectáculo de rosas vermelhas cobrindo todo o campo, deu um grito e caiu inanimada.

Lentamente, Lúcia foi regressando à vida. Porém não falava, nem comia. Passava horas consecutivas à janela, olhando em silêncio as rosas vermelhas desse rosal lindíssimo que assombrara os habitantes de léguas em redor. Dois meses depois, Lúcia falou ao frade, que não mais a abandonara:
— Padre! Pedi a Nossa Senhora outro milagre.
O frade sorriu.
— E que pedistes, minha filha?
— Que ao tomar a minha alma, espalhe algumas rosas brancas entre estas tão vermelhas como o sangue do meu João!
O padre sorriu de novo e falou-lhe com carinho:
— Descansai! A Senhora atenderá o vosso pedido.
Calou-se a bela Lúcia. E não mais falou. No dia seguinte, quando o Sol espreitou esse canto da Terra, encontrou mais rosas nessa povoação de milagre. Rosas brancas, em botão, junto das vermelhas, cor de sangue!
Espreguiçou-se o Sol e veio espreitar pela janela do quarto de Lúcia. Estendeu-se mais ainda, passou ao de leve pela mão esguia do frade que orava baixinho e foi beijar a testa fria da donzela adormecida para sempre.
Assim, de um grande amor sem ventura, nasceram os rosais que deram o nome a uma terra de Portugal.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 207-210
Place of collection
Rosais, VELAS, ILHA DE SÃO JORGE (AÇORES)
Narrative
When
15 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography