APL 2885 Lenda da Tentação Infernal

Foi há muitos, muitos anos. Existia ainda o majestoso castelo de Ala, fortaleza erguida não se sabe ao certo por quem. Nessa fortaleza vivia como castelã uma mulher solteira. Teria, na época em que situamos a lenda, uns trinta anos. Era formosa e boa. Mas não casara ainda, porque até à data não lhe aparecera o cavaleiro dos seus sonhos. Vivia no alto da serra, num soberbo castelo, apenas com os seus criados. Acolhia, contudo, com franca hospitalidade quantos surgissem pela noite invernosa a pedir o seu agasalho. A sua bondade já tinha fama. Só um defeito lhe apontavam: o desejo invencível de mandar e não ser mandada.
O Inverno chegara com o seu cortejo de desgraças. Caía a neve, cobrindo os caminhos. A noite descera, rápida, matando o dia. Havia frio, inquietude, mal-estar. O fogo ardia na lareira do castelo de Ala. De súbito, os cães ladraram. Alguém estava à porta do castelo. Alguém que não era dali. Alguém que vinha, certamente, pedir um pouco de calor na noite fria.
D. Guntina — tal era o nome da castelã — fez sinal ao mordomo para que fosse ver quem havia chegado. Quando correram os ferrolhos da grande porta ferrada do castelo, depararam com um cavaleiro caído por terra. Levantaram-no e levaram-no para um dos aposentos destinados aos hóspedes. D. Guntina foi vê-lo. Apenas se inclinou sobre o seu rosto alumiado pela luz das velas, sentiu-se perturbada. Havia beleza máscula nas feições daquele homem. Tentou disfarçar a sua comoção e ordenou ao mordomo:
— Tirai-lhe a túnica e a camisa. Este cavaleiro está ferido. Vede as manchas de sangue!
O mordomo cumpriu a ordem sem objectar coisa alguma. Com o tronco nu e a ferida a descoberto, o cavaleiro tornava-se ainda mais impressionante. A castelã fitou o ferido desmaiado e pediu:
— Tragam-me água e preparos. Eu própria quero tratar deste jovem cavaleiro.
D. Guntina foi prontamente obedecida. E com cuidados quase maternais, a castelã lavou a ferida, que não era recente. Ao contacto da água fria, o jovem cavaleiro abriu os olhos azuis, profundamente azuis, de longas pestanas castanhas. Fitou a castelã e tentou agradecer-lhe, mas custava-lhe a falar. Ela fez-lhe sinal de que se conservasse calado. Com ternura até aí não usada, a castelã cobriu a ferida com um emplastro de ervas medicinais e ligou-a. Depois, num requinte de galanteria, tocou com os seus dedos nas pálpebras do cavaleiro, para que cerrasse os olhos e descansasse. Em seguida retirou-se. Não quis cear. Recolheu pronta aos seus aposentos. Estava perplexa consigo mesma. Algo encontrara na feições tristes e belas do jovem cavaleiro que despertara vivamente o seu coração, até aí tão cerrado às paixões humanas. Não conseguia separar-se da sua imagem.
D. Guntina dispensou as camareiras e não se deitou. Ficou toda a noite reclinada sobre o seu leito de donzela, com pensamentos que até aí nunca tivera. Aquele homem fascinava-a, conquistara o domínio de si própria, sempre tão independente. Tentou dormir. Mas em sonhos o caso tornou-se pior... Via-se ao lado do ferido. Ouvia-lhe a respiração. E ele olhava-a, olhava-a naquela sua expressão profunda e agradecida. Subitamente, sentiu necessidade de se aproximar. E quando ia já a tocar-lhe, um pássaro enorme e negro lançou-se do tecto sobre ela, batendo-lhe na cara com as asas. D. Guntina acordou sobressaltada. Tinha tido um pesadelo. Abriu os olhos. Era manhã.
 
Três horas depois, convenientemente preparada, D. Guntina entrou nos aposentos do ferido. Este havia recobrado os sentidos por completo e, mal viu a castelã, saudou-a com cortesia:
— Que Deus vos dê em graças o que me destes em alívio, senhora!
Ela sorriu-lhe.
— Como chegastes até aqui? Que vos aconteceu?
Ele ficou um momento olhando no vago, como a viver de novo a odisseia, e por fim contou:
— Regressava de Santiago de Compostela onde havia ido em peregrinação, por um voto que fiz num momento de grave perigo para a minha vida. Nessa ocasião recebi esta ferida, que parecia ter fechado. Comecei a fazer marchas forçadas, desejoso de chegar à minha pátria. Porém, não tomei precauções, confiei demasiado nas minhas forças. Bem me aconselharam que não viajasse de noite. Mas não quis ouvir o estalajadeiro da terra vizinha donde venho, que me falou de neve e lobos esfaimados. E na verdade, mal a noite caiu, começou a nevar. Ao chegar a uma encruzilhada junto a um calvário de pedra, fiquei sem saber que caminho tomar. Optei por um, ao acaso. Era péssimo. As patas do cavalo estavam entorpecidas pelo frio. Escorregava a todo o momento, enterrando-se nas camadas de neve, cada vez mais espessas. De súbito, o cavalo tropeçou nalguma pedra ou raiz e caiu, arrastando-me na queda. A neve amorteceu o choque, mas não o bastante para impedir que a ferida abrisse de novo. Comecei a sangrar e a perder as forças. Com muita dificuldade voltei a montar e, quase desmaiado, segui caminhando, até que vi as luzes do vosso castelo. Aproximei-me. Quando me inclinei para bater à porta da entrada, caí desamparado, e não me recordo senão de ver uns lindos olhos negros a observarem-me, um olhar muito doce a envolver-me... E do contacto dulcíssiino da vossa mão ao tratar-me... Por tudo vos agradeço, senhora!
D. Guntina continuava a fitá-lo. O ferido dava mostras de cansaço. A castelã sorriu-lhe:
— Sossegai agora! Não quero que torneis a falar tanto, enquanto não estiverdes refeito. Permanecereis no meu castelo até ficardes curado. Porei ao vosso dispor um dos meus servos.
— Obrigado mil vezes! Que Deus vos recompense!
D. Guntina retirou-se. Ia, de novo, perturbada. Sentia um desejo incrível de lançar os braços em roda do pescoço do ferido e declarar-lhe o fogo que lhe ia na alma. Mas sentia-se ridícula, e tentava mortificar-se para esquecer tais loucuras.
Os dias foram passando. Incapaz de furtar-se ao convívio do cavaleiro, cada dia com melhor aspecto, D. Guntina chegara ao ponto de comer as refeições com ele, mesmo no quarto do ferido. Mandava em seguida que as suas aias cantassem trovas de amor, e olhava-o febrilmente, sem poder esconder os seus sentimentos. Mas então, com muita amargura, ela começou a notar que o ferido já não lhe sorria como nos primeiros dias em que ali chegara. Dir-se-ia que evitava, até, o seu olhar. D. Guntina, porém, não querendo desiludir-se, atribuiu essa atitude à presença das aias. E no dia em que o cavaleiro se levantou, convidou-o a passearem juntos nos jardins...
 
A manhã estava clara e fresca. O cheiro da terra molhada dava mais vida à própria vida. Sem poder conter-se, D. Guntina deu a entender ao jovem que o amava e não desejaria vê-lo partir. Atordoado, o cavaleiro declarou ser eterna a sua gratidão, mas havia prometido a si próprio partir no dia seguinte. E sem a deixar retorquir, ajuntou:
— Perdoai, se agora me retiro, senhora, mas tenho de cumprir com as minhas orações da manhã.
E retirou-se, de facto. Aturdida, a dama ficou só. O desespero começou a dominá-la. O destino fora bem cruel, pois a levara até aos trinta anos sem conhecer o amor, para depois a deixar naquele desespero. Recolheu ao castelo e não saiu do quarto.
A noite chegou. Uma noite de lua cheia. D. Guntina não podia dormir. O amor desprezado e o seu orgulho ferido tinham-na posto como louca. À meia-noite acendeu um archote e encaminhou-se para a capela. Tentou ajoelhar-se aos pés da Cruz, mas quedou-se perplexa; à luz do archote, distinguiu no Cristo as feições do jovem cavaleiro! Horrorizada, sentindo que algo de estranho a estava tomando, fugiu dali, mas não teve forças para regressar ao quarto. Deixou-se ficar no terraço, iluminada pela luz da Lua, deixando que o vento lhe desmanchasse os cabelos. Estava frio, mas esse frio não a incomodava. O desespero crescia dentro dela. Queria a todo o custo o amor do jovem cavaleiro. Fincou as unhas nas próprias mãos e exclamou, desvairada:
— Se o Diabo o pusesse a meus pés, nem sei o que lhe daria em troca!
Nesse mesmo momento surgiram nuvens no céu, que encobriram a lua cheia. Um grande morcego voou por cima da torre. D. Guntina sentiu medo e fez um movimento em direcção ao castelo. Mas um desconhecido trajado de negro, vindo não se sabia donde nem como, postou-se na sua frente dizendo:
— Porque te vais, se me chamaste?!
A castelã olhou o homem com aterradora surpresa.
— Quem sois? Não chamei ninguém!
— Lembra-te que me invocaste dentro da minha hora e do meu reinado. E bem sabes porque o fizeste. Eu tenho o poder de dar-te o que tão ardentemente desejas. Assim me pagues tu.
D. Guntina tremia, mais de medo que de frio. Sentia que algo de mau podia acontecer-lhe. Quis persignar-se, mas as mãos pareciam enregeladas e não o conseguiu. Repetiu, alucinada:
— Dizei-me o vosso nome! Preciso saber quem sois!
— O nome não importa. Tenho vários nomes e a todos acudirei, mal o pronunciarem. Não descobriste já quem sou? Talvez… mas não tens a certeza... E sabes porque não tens a certeza?... Porque me julgavas horrível, com dois chifres e rabo de macaco!
O desconhecido soltou uma risada e continuou:
— Achas-me atraente, não é assim? Pois acredita que posso ser jovem e belo. Poderoso e grande senhor. Posso até dar-te esse homem que tanto desejas. Queres ou não?
A medo ela balbuciou:
— E que pedes em troca?
— A tua alma!
Ela horrorizou-se:
— A alma, não! Dar-te-ei toda a minha fortuna!
— Para que a quero? Sou tão rico! Dá-me a tua alma e serás feliz amanhã mesmo.
D. Guntina ficou uns momentos calada. Ele insistiu:
— Verás o homem que amas a abraçar-te e a beijar-te. Tê-lo-ás sempre rendido a teus pés. Terás honras e grande fortuna.
E como ela começasse a ceder, ele continuou:
— Pensa nas tardes calmas de Primavera, passeando por estas alamedas com esse homem a teu lado. E compara-as com as que tens passado aqui sozinha, à espera da velhice e da morte!
Calou-se. Mirou-a intensamente e volveu a perguntar:
— Que resolves?
Quase num murmúrio, ela balbuciou:
— A minha alma será tua!
Nesse mesmo instante o desconhecido desapareceu e as nuvens desfizeram-se, descobrindo o luar e iluminando em cheio a torre da capela. Um morcego veio direito ao seu rosto, fustigando-o com as asas. Ela soltou um grito e caiu desmaiada.
 
Só na manhã seguinte as criadas vieram encontrar D. Guntina, ainda desmaiada, na alameda. Levaram-na para a cama e tentaram reanimá-la. Mal abriu os olhos, soergueu-se no leito e pediu com voz cheia de ansiedade:
— Chamem o cavaleiro! Quero vê-lo!
Admirados, os criados entreolharam-se e o mordomo achou coragem para informar:
— O senhor cavaleiro, apenas amanheceu, pediu o cavalo e partiu em direcção àquele penedo alto.
D. Guntina cerrou os dentes. Levantou-se de um pulo e conseguiu gritar:
— Preparem-me já um cavalo!
E voltando-se para os criados:
— Vão buscar-me roupa conveniente. Quero segui-lo.

No alto da serra, sentado numa grande pedra, o jovem cavaleiro orava:
— Senhor! Graças Vos dou por ter conseguido libertar-me e continuar fiel ao meu juramento!
Ficou-se, depois, silencioso. Honrava a Deus nas Alturas, pela Sua Grandeza, elevando ao Céu apenas o pensamento.
Nisto, ouviu um grito. Olhou. D. Guntina havia-o descoberto e cavalgava na sua direcção. O coração bateu-lhe apressado. Voltou a orar:
— Senhor! Valei-me!
Sentiu-se reconfortado. Entretanto a dama chegava ao cimo da serra, exclamando:
— Assim me agradeceste o que fiz por ti?
Ele desculpou-se:
— Perdoai-me, senhora. Motivos imperiosos assim o determinaram.
Esquecida de todo o pudor próprio de uma dama, e para mais donzela, ela acercou-se dele.
— E partias sem mim! Não vês que te quero, que não poderei viver sem o teu amor? Não leste isso nos meus olhos? Não o ouviste da minha boca?
Sereno, ele concordou:
— Li e ouvi, senhora, e por essa razão fugi do vosso castelo.
— Porquê? Não és homem como os outros?
— Sou, senhora. Mas não poderei pertencer-vos. Reconheço que sois uma das damas mais formosas que vi até hoje. Mas dediquei a minha alma e a minha vida só a Deus. Só a Ele, portanto, poderão pertencer.
D. Guntina olhou o cavaleiro como se o estivesse a ver pela primeira vez.
— Que estais dizendo?
— A verdade, senhora. Esta madrugada uma tentação imensa quase me sufocava. Senti desejo de vos abraçar, de vos beijar, de ficar ao vosso lado. Se fechava os olhos, só vos via a olhar-me com esse amor palpitante, com esse corpo cheio de vida. Levantei-me para vos procurar, mas dei com os olhos no meu relicário…
Ela interrompeu-o:
— No relicário?
— Sim. Sou cavaleiro cruzado e fiz voto de castidade junto do Santo Sepulcro. Peguei no meu relicário e pedi a Deus forças para resistir à maior tentação de toda a minha vida. Então, imediatamente senti uma paz indefinível que descia sobre mim. Compreendi que tinha sido vítima de terrível tentação e achei por bem afastar-me. Foi apenas por isso que cometi a indelicadeza de partir sem vos agradecer o que fizestes por mim.
D. Guntina começou a tremer. Nuvens escuras encheram o céu, ameaçando tempestade. O trovão já se ouvia ao longe. A castelã abriu os olhos como louca e gritou para o cavaleiro:
— Não me deixes aqui sozinha! Ele vem buscar-me! Já o oiço chamar por mim! Ele vem buscar-me!
— Ele… quem?
— Ele… o que me apareceu ontem à noite enquanto dormias! Pediu-me a alma em troca do teu amor! E dei-lhe a minha alma… porque te queria!
O cavaleiro fez-se pálido:
— Senhora! Perdestes-vos?... Não pode ser!
— Sim... perdi-me! Perdi-me por teu amor!
Ele afligiu-se:
— Ó meu Deus! Valei-lhe a ela também!
Lembrou-se do relicário. Mas já ela pulava para o cavalo. Ele segurou-lhe as rédeas com as mãos de aço:
— Aonde ides?
— Ele chama-me!
— Descei!
E ajudou-a a desmontar.
— Agora deixai que vos toque com um pedaço do Santo Lenho! 
E juntava a acção às palavras. O cavalo deu um salto e despenhou-se no abismo. Mas D. Guntina estava junto do cavaleiro. Chorava silenciosamente. Deixara de tremer. O céu começou a abrir, a claridade a voltar. Um passarinho passou, piando. Então, a castelã voltou a fitar o cavaleiro. Desta vez o seu olhar era diferente.
— Senhor! Como vos agradeço!
— Não é a mim que deveis agradecer, mas a Deus que vos subtraiu ao nosso pior inimigo.
— Sinto uma paz imensa dentro do meu peito! Deixai que vos beije humildemente as mãos!
— Beijai antes a Santa Relíquia!
— Oh, sim! Com Ela, sinto-me outra!
— Vou levar-vos a casa e depois partirei.
— Agradeço-vos, cavaleiro! E orai sempre por mim!
— Não o esquecerei. Montai o meu cavalo, já que o vosso… ele o levou.
Silenciosamente, ela montou. Dali a pouco, apeava-se junto do castelo. O cavaleiro do Santo Sepulcro tornou a montar, e desapareceu numa nuvem de pó.
D. Guntina fez uma vida tranquila durante o tempo em que viveu, e nunca mais voltou a cair em tentação. Todavia, diz a lenda, nas noites de tempestade, quem atravessar a serra de Ala ainda hoje pode escutar na voz do vento e dos trovões um chamamento imperioso:
— Guntina! Guntina! Guntina!...
Mas Guntina estava segura no seu castelo. Ela havia beijado o Santo Lenho e sentira o remorso de ter cedido por momentos à infernal tentação.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 2247-253
Place of collection
MOGADOURO, BRAGANÇA
Narrative
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12 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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