APL 2790 Lenda do Bom Sucesso

Embora alguns leitores possam pensar que se trata do Bom Sucesso, vizinho de Lisboa — dir-lhes-ei desde já que o cenário desta evocação lendária fica bem distante da capital portuguesa — nada menos nem mais do que no concelho de Celorico da Beira, aí a uns dez quilómetros da sede do concelho.
Existe aí uma freguesia que tem o nome de Baraçal. E nessa freguesia encontra-se uma curiosa capela conhecida por Capela da Senhora de Bom Sucesso. Capela que tem uma história. História que vou contar...
 
Aí nasceu aquele que, mais tarde, durante a campanha contra as invasões francesas, foi conhecido como o coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães. Tinha ele como seu impedido um homem do campo, de aspecto abrutalhado, mas de alma sã. Alfredo era o seu nome.
No intervalo das lutas, e compreendendo que podia confiar amplamente na sua simplicidade e na sua dedicação, o coronel habituara-se a tomá-lo como confidente.
Ora, um dia, chamou-o de parte e disse-lhe:
— Eh, Alfredo!... Parece-me que andas abatido, taciturno... Aconteceu-te alguma coisa, homem?
O outro continuou de olhos presos ao chão.
— Meu brigadeiro, eu cá nem sei o que sinto em mim... Mas tenho cá um pressentimento de que vai acontecer alguma coisa...
O coronel Magalhães sorriu com indulgência.
— Ora, deixa-te disso, homem!... Estás sempre a imaginar tragédias... e afinal nada se passa...
Supersticioso, sincero na sua ingenuidade, o moço soldado fez o sinal da cruz.
— Ah, meu brigadeiro, não fale assim, pelo amor de Deus!
E baixando a voz, desconfiado e medroso:
— Eu estou certo que os franceses vão atacar... E não demora muito!
— Tanto melhor, homem, tanto melhor!... É a maneira de nos despacharmos depressa de tudo isto.
E, num desabafo, confessou.
— Sabes, Alfredo? Estou desejoso de voltar a minha casa...
Houve um momento de silêncio. Depois, ainda a medo, a voz do impedido voltou a fazer-se ouvir.
— O meu brigadeiro há-de perdoar... Mas acredite que isso vai ser difícil, muito difícil!
E diante do ar surpreendido do chefe, Alfredo rematou, num esgar de nervosismo:
— Diz-me o coração que vamos sofrer muito!
O coronel fez o possível por sacudir aquela opressão.
— Pobre Alfredo, não passas de um tonto!...
E logo, num ar de superioridade consciente, acentuou:
— Não há ninguém que nos resista! Compreendes, Alfredo? Os Portugueses são os melhores soldados do Mundo!
Resignado, suspirando, Alfredo limitou-se a erguer os olhos para o alto e a dizer baixinho, como quem reza:
— Deus o oiça, meu brigadeiro, Deus o oiça!
E ainda em tom mais íntimo, confessou:
— Mas eu... tenho medo!
 
E, de facto — correspondendo ao estranho pressentimento de Alfredo — os franceses atacaram nessa noite. Furiosamente. Doidamente. Obrigando os nossos soldados a verdadeiros prodígios de bravura.
A certa altura, o coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães e os seus homens, perante um inimigo muito superior, sentiram que poderiam resistir até à chegada de reforços. Mas que importava isso? Aqueles, eram ainda portugueses de antes quebrar que torcer...
 
No meio da refrega, quando o combate era mais brutal e impiedoso, o jovem Alfredo apareceu de súbito, com ar alucinado, junto do brigadeiro.
— Senhor, senhor, deu-se um milagre!
Exausto, quase desorientado, o comandante da pequena força olhou-o, sem o compreender.
— Que dizes? Um milagre?..
— Sim, meu brigadeiro! Um milagre!...
E num tom suplicante ajuntou:
— Venha comigo, por favor!
O brigadeiro recobrou um pouco de calma, a tentar raciocinar.
— Estás doido, homem? Não vês como eu faço falta aqui?
Mas então Alfredo endireitou-se. E a sua voz soou firme. Resoluta. Imperativa.
— Acreditai no que vos digo... Vinde comigo... E, depois, sereis mais útil.. Muito mais útil!
Embora contrafeito, o oficial lá o seguiu. Não andaram muito. Apenas até junto duma árvore que Alfredo indicou. Pararam. Emocionado, trémulo, o moço soldado apontou a metade superior duma imagem sagrada, que se encontrava caída ao pé da árvore. E disse, como que em êxtase.
— Meu brigadeiro, encostai aqui o vosso ouvido... Escutai!
Indeciso, desconfiado, o oficial voltou a olhá-lo, bem de frente.
— Tu não terás endoidecido, Alfredo?
— Não, meu brigadeiro, não endoideci! Escutai... Escutai, por favor!... Aqui, junto do coração da imagem...
Devagarinho, ainda céptico, o coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães inclinou-se e encostou o ouvido ao coração da imagem. E o que escutou deixou-o surpreendido. Surpreendido e maravilhado. Era uma voz feminina, doce, irreal, vinda do fundo da serra ou do alto dos Céus, nem ele sabia explicar. E a voz dizia meigamente, num jeito de música:
— A vitória será dos portugueses!... Defendem a sua terra e a sua honra. Eu hei-de protegê-los, para que alcancem um bom sucesso.
Ainda espantado, o brigadeiro ergueu-se.
— Meu Deus, estarei sonhando?
F segurando Alfredo pelos ombros, num arranque de entusiasmo, quase gritou:
— Como é possível tamanho milagre?
— Precisamente pela graça de Deus, meu brigadeiro!
O outro respirou forte, a ganhar confiança em si próprio.
— Tens razão, Alfredo!... Isto somente pode acontecer pela graça de Deus!
E, de repente, como que movido por uma ideia obcecante, o oficial ordenou:
— Olha, Alfredo... Monta já no melhor dos meus cavalos e leva este fragmento de imagem para minha casa... Ouviste? Compreendeste? Se alguém perguntar pelo resultado da luta, diz-lhe que venceremos, custe o que custe!
Num novo impulso de entusiasmo, recomendou:
— Parte imediatamente... E vai o mais depressa que puderes!
Feliz, satisfeito, abraçando a metade da imagem, o impedido perfilou-se.
— Sim, meu brigadeiro, as vossas ordens serão cumpridas!
E, daí a momentos, o impedido já corria à desfilada, estrada fora, montando o melhor dos cavalos do coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães...
 
Porém, uma desagradável surpresa estava para acontecer ao jovem Alfredo. Quando o povo do Baraçal o viu chegar assim, a toda a velocidade e montando um dos melhores cavalos da região, julgou-o pura e simplesmente um miserável traidor. Os mais velhos obrigaram-no desmontar, e foi preso sem demora, e rodeado pela multidão, que o insultava impiedosamente.
O moço Alfredo em vão tentou proclamar a sua inocência.
— Ouvi... Ouvi.., meus amigos! Estais todos enganados... Eu sou bom homem... um bom patriota... Gosto muito da minha terra e nunca seria capaz de a vender ao inimigo! ... Estou aqui apenas porque me deixaram vir... Foi o senhor coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães... Eu quero que todos me oiçam... Posso dizer-lhes que assisti a grande milagre... Tenham dó de mim! Não me façam mal... Eu não sou traidor... Estou aqui a cumprir ordens!
Mas de nada serviram, nem as explicações, nem as súplicas, nem lágrimas do moço Alfredo, pois os mais velhos resolveram condená-lo, com o pleno acordo da multidão, enraivecida contra ele. E logo ali se começou a erguer uma forca, para que o criminoso traidor pagasse o seu crime sem tardar!
 
Entretanto, longe dali, o coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães via-se rodeado pelos inimigos, cada vez mais numerosos e mais aguerridos. Desvairado, tendo a derrota por inevitável, lembrou-se fazer um último apelo. Apelo de esperança e de fé. E ajoelhando, de mãos sobre o peito, alheio por momentos à brutalidade da batalha, ele orou:
— Oh, minha Nossa Senhora, como fui tolo em vos ter afastado do local! Quis guardar-vos só para mim, fui egoísta... e estou certamente a receber o castigo do meu acto... Mas, perdoai-me, minha Nossa Senhora, perdoai-me!... Dai-nos a vitória, Senhora, e eu vos prometo solenemente, solenemente vos juro que mandarei erguer na minha terra uma capela em louvor de Vós, e em paga, minha Nossa Senhora, do bom sucesso que vos imploro!
E diz-se que, nesse mesmo instante, ele viu-se envolvido por uma auréola de luz sobrenatural e escutou a mesma voz, estranhamente doce e bela.
— Aceito a tua oferta... Sim, a vitória será dos portugueses... Podes contar com um bom sucesso... Mas tu... tu tens de correr para salvar o teu fiel Alfredo.
Boquiaberto, o coronel perguntou em voz trémula:
— Senhora, onde estais?
— No Céu, que é a minha terra.
— E que sinal me dais da vossa presença, Senhora?
— Olha em redor... Os franceses estão a fugir, derrotados, desbaratados...
De um salto, o oficial pôs-se de pé. A sua voz ganhou ainda maior emoção.
— É verdade, é verdade... Eles fogem... derrotados!... Obrigado, Senhora, mil vezes obrigado por este milagroso bom sucesso!
Mas logo, lembrando-se do que escutara, voltou a perguntar, inquieto alvoroçado:
— Senhora, ensinai-me!... Como poderei eu salvar o meu fiel Alfredo que, segundo dizeis, está em perigo?
Docemente, meigamente, como sempre, a voz estranha e bela fez-se ouvir:
— Leva ao povo da tua terra a outra metade da minha imagem...
— Mas onde está ela, Senhora?... Eu não sei e peço-vos...
Porém desta vez a voz bonita interrompeu-o logo.
— Sabes, sim! Olha para as tuas mãos!
E, por autêntico prodígio, o coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães viu surgir nas suas mãos a outra metade da imagem que ele já conhecia! Benzeu-se rapidamente e segurou o primeiro cavalo que encontrou ao alcance da mão.
— Obrigado, minha Nossa Senhora!
E abalou, correndo também a toda a brida, a caminho do Baraçal...
 
Chegou precisamente no momento exacto. O moço Alfredo, chorando e protestando, estava já a ser arrastado para a forca que acabara de ser montada.
Mas o coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães desceu de um salto e colocou-se à frente do seu fiel Alfredo e do povo que o rodeava.
— Alto! Que ninguém toque mais neste homem! Ele está inocente e veio aqui apenas cumprir as minhas ordens!
Os outros recuaram, entreolharam-se, tímidos e desorientados. Se o coronel-brigadeiro falava assim, não havia mais dúvidas. Afinal, Alfredo tinha razão. E logo os mais velhos — os mesmos que o tinham condenado e prendido — correram a libertá-lo.
O coronel-brigadeiro estreitou o seu impedido num abraço forte e demorado. Depois, dando largas ao entusiasmo que ardia dentro dele, o oficial gritou bem alto, para que todos ouvissem:
— Vencemos, Alfredo!... Vencemos por completo... Os franceses fugiram em debandada... Foi um verdadeiro bom sucesso!
E baixinho, como quem reza, o impedido repetiu:
— Um verdadeiro bom sucesso!
Então, o coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães levantou os olhos para o Céu e proclamou lentamente:
— Tal como Vos prometi, minha Nossa Senhora, em sinal de gratidão pelo Vosso milagre, aqui mesmo, em vez desta forca, será erguida a capela do Bom Sucesso!

Assim se realizou, segundo diz a tradição, a vontade da Virgem Santíssima... Ainda hoje lá está, na freguesia de Celorico da Beira, a capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso, cuja imagem, no testemunho eloquente da alma popular, se compõe das duas metades encontradas pelo coronel-brigadeiro João Rodrigues de Magalhães e pelo moço Alfredo, seu impedido...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 253-258
Place of collection
Baraçal, CELORICO DA BEIRA, GUARDA
Narrative
When
19 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography